quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Relatos Selvagens


Estreia hoje o surpreendente e divertido Relatos Selvagens, mais uma bola dentro do sempre relevante cinema argentino. O filme, que foi exibido no Festival de Cannes, se divide em seis episódios. Em cada um deles há pelo menos um personagem que perde completamente o controle. Os motivos são os mais diversos: uma mulher diante do homem que levou seu pai ao suicídio, um xingamento de trânsito levado às últimas consequências, o sentimento de impotência do cidadão perante a burocracia e a corrupção estatal, uma noiva que descobre a traição do amado durante a festa de casamento, e por aí vai. 

A trama busca apresentar situações com as quais o público pode facilmente se identificar e certamente quem já passou por algo parecido teve pensamentos bem violentos a respeito. O que os personagens fazem é transformar tais instintos primitivos do ser humano em ações concretas, potencializando o efeito catártico do cinema. O roteiro poderia ter seguido o caminho do drama, mas em vez disso espertamente optou pelo tom de humor negro. O resultado final é uma delícia de se ver. Especialmente bom é o pesadelo kafkiano protagonizado por Ricardo Darín, contundente em sua pesada crítica às instituições – que na tela são argentinas, mas o espectador brasileiro se verá perfeitamente representado.

Vale muito a pena conferir esse novo exemplar do cinema dos hermanos, ainda mais pelo fato do longa ser o representante argentino para pleitear uma vaga na corrida ao Oscar 2015 de melhor filme em língua estrangeira. Podemos dizer que é uma candidatura bastante ousada, esperemos para ver como será recebida pela Academia. 

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Festival do Rio anuncia vencedores do Prêmio Felix

Rogéria em cena do documentário brasileiro De Gravata e Unha Vermelha

Aconteceu ontem à noite no Centro Cultural Banco do Brasil a cerimônia de entrega do prêmio Felix, criado este ano para contemplar os melhores filmes de conteúdo LGBT exibidos no Festival do Rio. O Prêmio Especial do Júri foi para o australiano Toda Terça-Feira, o de melhor documentário para o brasileiro De Gravata e Unha Vermelha e o de melhor ficção para o grego Xenia. Lembrando que, na edição deste ano, a curadoria da tradicional mostra Mundo Gay resolveu extingui-la, distribuindo os filmes de temática LGBT pelas demais mostras e criando o prêmio Felix.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Mais Sombrio do que a Meia-Noite


Eis mais um filme de conteúdo perturbador em um Festival que está acabando com os nervos dos cinéfilos. Embora possua suas pequenas falhas como produto cinematográfico – o que é totalmente compreensível para um primeiro filme – este Mais Sombrio do que a Meia-Noite se impõe e conquista pela força devastadora desta trama dolorida sobre a morte da inocência.

O filme, exibido na Semana da Crítica do Festival de Cannes deste ano, acompanha a jornada em busca de identidade de Davide, um garoto siciliano de 14 anos e aparência andrógina. Constantemente confundido com uma menina e reprimido pelo pai, um dia ele decide não voltar mais para casa e se refugia junto a um grupo de meninos que se reúne em busca de clientes e diversão em um parque público de Catania. Davide sente-se compreendido e aceito pela primeira vez, mas logo descobrirá que viver a plena liberdade nas ruas tem o seu preço.  

A beleza exótica e a expressão marcante do menino Davide Capone certamente contribuem bastante para o impacto deste filme, que retrata de modo cruel temas como ruptura familiar, incompreensão, exploração de menores e tantos outros. A abordagem do filme é impactante, porém nunca sensacionalista, contrapondo momentos extremamente pungentes de uma vida marginalizada com outros pontuados pelo afeto e amizade entre os meninos. O filme conta, ainda, com uma participação afetiva da estrela Micaela Ramazzotti como a mãe com doença degenerativa. Belíssima a cena do reencontro de mãe e filho nas ruas.

Mais Sombrio do que a Meia-Noite (Più Buio di Mezzanotte), de Sebastiano Riso. Com Davide Capone, Vincenzo Amato, Lucia Sardo Laurier, Pippo Delbono, Micaela Ramazzotti. Ita, 2014. 94’. Expectativa 2014.


sábado, 4 de outubro de 2014

The Face of an Angel


É decepcionante ver um cineasta com uma carreira consistente como Michael Winterbottom realizar uma bobagem dessas. Tomando como ponto de partida um crime real que ocorreu na cidade de Perugia em 2007, Winterbottom desloca a trama para Siena (outra cidade italiana conhecida como polo universitário de estudantes estrangeiros) e cria uma ficção metalinguística em cima do ocorrido. O protagonista aqui é um cineasta que pretende realizar um longa inspirado no assassinato de uma estudante inglesa e do circo que se criou em torno do julgamento dos suspeitos, ou seja, a amiga com quem a vítima morava e seu namorado.

O filme já deixa claro seu tom arrogante e preconceituoso quando um dos personagens diz ao protagonista que ele deveria “fazer ficção para poder falar a verdade”. A partir daí o que vemos é um longo ataque de Winterbottom ao sistema judiciário local e uma verdadeira dissertação sobre o quanto todos os italianos de modo geral seriam burros, incompetentes e/ou corruptos. Cabe ressaltar que o filme não fala da inépcia da polícia e do judiciário neste caso em particular: o tom é o de olhar de maneira superior todo o funcionamento do país, chegando a colocar na boca de personagens frases reducionistas como “aqui a justiça é diferente”.

A pequena cidade de Siena é transformada em uma sin city desvairada, cheia de ângulos escuros e tentações irresistíveis. As pessoas mal chegam e no dia seguinte já estão afundadas em orgias e carreiras de cocaína. Tudo isso entremeado por citações aleatórias de Dante Alighieri. Pobre poeta, usado para abalizar uma série de metáforas rasas de um filme que, na verdade, não tem absolutamente nada de relevante a dizer. Sério, Mr. Winterbottom?

Lamentável que dois atores admiráveis como Daniel Brühl e Valerio Mastandrea tenham se envolvido em um projeto desses.

The Face of an Angel (idem), de Michael Winterbottom. Com Kate Beckinsale, Daniel Brühl, Cara Delevingne, Valerio Mastandrea. UK/Ita/Esp, 2014. 100’. Panorama do Cinema Mundial




quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Garota Exemplar


Logo após uma série de exibições no Festival do Rio, eis que Garota Exemplar entra em circuito comercial hoje. O novo filme de David Fincher é uma transposição fidelíssima do best seller homônimo de Gillian Flynn, adaptado para as telas pela própria autora. Quem já leu sabe o quanto o livro é envolvente, sarcástico e absolutamente viciante. Sem contar que o tom já é tão cinematográfico nas páginas de Flynn que diálogos inteiros foram levados para a tela inalterados.

A trama, na superfície, é um thriller sobre uma mulher que desaparece misteriosamente de casa no dia que completaria cinco anos de casamento. Amy Dunne tem uma vida invejável: é linda, inteligente e famosa, já que seus pais escrevem livros infantis inspirados nela. À primeira vista, sinais de luta na cena do crime sugerem um sequestro, mas logo a polícia começa a suspeitar do marido, Nick, conforme surgem pistas contraditórias e a imagem anterior de um casamento perfeito vai desmoronando. A essa altura, o circo da mídia está armado e a opinião pública exerce grande influência sobre a investigação. Mas o que terá realmente acontecido com Amy? Seria Nick um mentiroso ou um homem injustamente perseguido?

Em uma camada mais profunda, Garota Exemplar trata de outros temas sobre os quais não é possível discorrer aqui sem cometer spoilers. O que podemos dizer é que Fincher realiza uma adaptação bastante fiel e eficiente, ao contrário do que tinha feito no remake de Os Homens Que Não Amavam as Mulheres, quando efetuou mudanças para pior na concepção dos personagens. Com um ritmo intenso e uma série de viradas surpreendentes, o filme prende a atenção de tal forma que sua longa duração passa sem que se perceba. Também é um alívio notar que o profundo tom de ironia que é o diferencial da trama foi em grande parte mantido. Por fim, o elenco foi bem escolhido, com destaque para Rosamund Pike em seu primeiro papel de peso. Até mesmo Ben Affleck – ótimo diretor, mas extremamente limitado como ator – encaixa como uma luva neste papel, já que Nick é descrito justamente como um cara meio pateta que não sabe expressar direito suas emoções.

Resumindo, Garota Exemplar é um belo thriller que tem de tudo para virar cult.

Garota Exemplar (Gone Girl), de David Fincher. Com Ben Affleck, Rosamund Pike, Neil Patrick Harris, Tyler Perry. EUA, 2014. 145’. Panorama do Cinema Mundial