quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Corredor Noturno


Eduardo é um executivo de uma companhia de seguros multinacional e vive sob constante pressão no trabalho. Sua única válvula de escape é correr. Até que um dia, voltando de uma viagem de negócios, conhece no aeroporto um homem amigável e misterioso que, a partir de uma conversa casual, passa a forçar uma amizade com ele. A princípio o sujeito parece genuinamente preocupado com o bem-estar de Eduardo, mas assim que não encontra reciprocidade da parte do novo amigo passa a persegui-lo. Baseado no romance El Corredor Nocturno, de Hugo Burel.

O Corredor Noturno é um thriller bastante vibrante, com clara inspiração no mito de Fausto. O estranho Sr Conti, que a princípio parece um maluco obsessivo qualquer, logo começa a tomar a clara forma de uma espécie de consciência do mal de Eduardo – que tampouco é o pobre inocente que parece à primeira vista. Mesmo porque em nenhum momento fica totalmente claro para o espectador se o tal Sr Conti realmente é alguém de carne e osso.

Outro aspecto que chama a atenção no longa é a visão crítica do modus operandi das grandes corporações, pintadas como criadores de pequenos monstros ao estimular a competitividade em níveis absurdos, fazendo com que colegas de trabalho se voltem uns contra os outros para galgar os degraus do poder. Essa abordagem, aliás, lembra um pouco outro filme argentino, o excelente El Método (lançado aqui no Brasil como O Que Você Faria?).

Nos papéis principais, dois bons atores: Leonardo Sbaraglia é o executivo perseguido que aos poucos revela os podres de sua própria ambição e Miguel Angel Solá o maníaco que parece muito ciente do mecanismo irresistível de atração de seu raciocínio tortuoso. Na direção, o espanhol Gerardo Herrero realiza um filme ágil e de postura bastante incisiva em relação ao mundo empresarial e aos ditos homens bem-sucedidos. Só o título parece um pouco deslocado, já que o fato de Eduardo correr para aliviar o estresse é um detalhe que não tem lá tanta importância para a história.

Nota: 8,0

(El Corredor Nocturno, de Gerardo Herrero. Esp/Arg, 2009. 95min. Panorama do Cinema Mundial)

Conversando com Gerardo Herrero



Produtor requisitado, com mais de 90 filmes no currículo, o espanhol Gerardo Herrero também costuma transitar atrás das câmeras quando se encanta por algum projeto em especial. Foi assim com O Corredor Noturno, filme que traz Herrero pela primeira vez ao Festival do Rio.

Entrevista: 


Você trabalha mais como produtor do que como diretor. O que te apaixonou no livro O Corredor Noturno para que resolvesse assumir a direção?

Na verdade, eu já dirigi doze ou treze filmes (segundo o IMDb, 16). Mas ganho a vida como produtor. E de vez em quando aparecem histórias que eu mesmo quero contar, como foi o caso desta. O que eu gosto nesse filme é poder falar também do cotidiano, porque ele tem duas tramas: é um thriller na superfície, mas também um filme que me permitiu falar sobre as relações de poder, ambição, o que se faz para manter o posto, o duplo, a personalidade oculta de cada um.

Você vê Eduardo como um Fausto moderno?

Sim.

E o fato do chefe ser americano contém uma mensagem política?

Não nesse sentido, mesmo porque depois também tem um executivo italiano. É mais o mundo das multinacionais, a postura do estrangeiro que chega a um país com o qual não tem nenhuma identificação, nenhum contato. Isso lhes permite uma maior frieza na hora de tomar decisões.

Você também é produtor de dois outros filmes que estão neste Festival, Cornucópia e O Segredo dos Seus Olhos. É a primeira vez aqui?

No Rio de Janeiro, não. Mas no Festival sim.

E o que está lhe parecendo?

Tenho a impressão de que é um Festival que movimenta bastante a cidade, estive na sessão de O Segredo dos Seus Olhos e as salas estavam todas cheias. Parece que há muita identificação da parte do público.

Você é espanhol, mas faz muito cinema na Argentina. Como é essa relação?

Fico encantado, adoro conhecer novas sociedades e fazer novos amigos. Eu acho que sou um pouco como o personagem do filme, tenho uma dupla personalidade, meio espanhola, meio argentina. E ainda temos a vantagem do mesmo idioma.

O Corredor Noturno é uma adaptação fiel ao livro do Hugo Burel?

Não sei bem o que é fidelidade, já que quando mudamos de um meio literário para outra arte como o cinema obrigatoriamente é preciso fazer uma série de adaptações. Mas o autor do livro ficou muito satisfeito, então eu acho que isso é um bom sinal.

Você acha que essa história tem uma abordagem parecida com El Método, do Marcelo Piñeyro, no sentido de mostrar as grandes empresas como entidades “sem alma”?

Não havia pensado nisso, mas é bem apontado. Sim, as multinacionais realmente não tem alma. Eles oferecem benefícios e poder, mas tiram tudo das pessoas quando elas não mais lhes convém e vão buscar uma mão-de-obra mais barata onde conseguirem. Os empregados de multinacionais são como peças descartáveis, sendo despedidos quando já não lhe dão a mesma rentabilidade.

Para encerrar, tem uma frase que o Sr Conti diz no filme que eu gostaria que você comentasse: “a moral é uma invenção dos fracos”.

É uma dura reflexão sobre a vida corporativa feita por um personagem complicado, mas que diz uma verdade. É complicado resumir assim fora do contexto, mas acho que Conti quer dizer que as pessoas se refugiam na moral para não precisar aceitar determinadas coisas.

O Segredo dos Seus Olhos


Benjamín Espósito trabalhou a vida toda em um tribunal penal. Quando finalmente se aposenta, decide que usará o tempo livre para escrever um livro baseado em um acontecimento que marcou sua vida: 25 anos antes, em 1974, ele esteve encarregado de investigar um crime bárbaro cuja solução ficou inconclusa. Ao remexer o passado, Benjamín também tenta nova aproximação com uma colega de tribunal por quem foi intensamente apaixonado. Passado e presente se mesclam e as memórias terminam por afetar intensamente sua vida.

O Segredo de Seus Olhos, por sua trama, pode ser considerado um filme policial. Mas um policial diferente, com uma abordagem sensível, sin perder la ternura. Conforme bem pontuou o diretor Juan José Campanella em entrevista “é um policial com gente normal”. Não espere ver diálogos artificiais, um protagonista cínico e amargurado ou mulheres absurdamente bonitas e fatais. É um filme de detetive, mas com pessoas cotidianas que foram confrontadas por um crime violento e um processo penal aparentemente sem solução, passando por um pano de fundo político (a época foi uma das mais repressivas na história do país).

Campanella, diretor de histórias ternas como O Filho da Noiva, O Clube da Lua e O Mesmo Amor, a Mesma Chuva, consegue imprimir a este filme de características mais tensas a mesma delicadeza de sentimentos que marcam seus longas anteriores. Para tanto, é primordial o talento de seu colaborador constante, Ricardo Darín, no papel principal. Darín é daquele tipo raro de ator que, apenas com sua presença, consegue fazer com que um filme cresça em importância. Sua interpretação é sempre tão verdadeira que o espectador se sente imediatamente envolvido por qualquer conflito que seus personagens vivam. Neste filme, a obsessão pelo passado se desdobra em duas vertentes: a frustração de não ter prendido o assassino e o resgate do grande amor da juventude, desdobrando-se num turbilhão de emoções.

A trama, baseada no romance de Eduardo Sacheri La Pregunta de Sus Ojos, foi adaptada pelo próprio diretor, que mescla com perfeição a história de amor irrealizado à tensão e suspense policial em um roteiro instigante que prende a atenção do espectador até o impressionante desfecho – que, aliás, foge do lugar-comum. Trata-se de um filme extremamente bem realizado, dirigido com a mais absoluta precisão, lindamente fotografado, com uma direção de arte elegante e trilha sonora precisa. Resumindo, um filme sem defeitos onde cada pequeno detalhe contribui para a excelência do todo.

Nota: 10

(El Secreto de Sus Ojos, de Juan José Campanella. Arg/Esp, 2009. 129min. Première Latina)

terça-feira, 29 de setembro de 2009

DoceAmargo


Em tempo: também vale a pena dar uma conferida no curta DoceAmargo, que fez sessão dupla com Bellini na sessão de gala de ontem. Imaginem um casalzinho fofo discutindo relacionamento enquanto agoniza depois de um acidente de carro. Pois é. Muito legal.

O Dia da Saia


Sonia Bergerac é uma professora que vive alguns dramas típicos das escolas públicas francesas: alunos agressivos e desinteressados, rixas e provocações entre as diferentes etnias, apatia da direção em conter os conflitos. Movida a anti-depressivos e abalada com problemas pessoais, um dia ela dá um basta em tudo. Depois de mais um começo de aula difícil e de sofrer o desrespeito habitual, Sonia encontra uma arma em poder de um dos estudantes. O rapaz a ameaça e ela, assustada, dispara acidentalmente, o que dá início a um dramático e inesperado conflito.

As ameaças que sofrem os professores é assunto grave e sério, seja na França ou em qualquer outro país. Muitos profissionais desenvolvem distúrbios psicológicos irreversíveis ao ter que lidar diariamente com alunos que não apenas desrespeitam sua autoridade como docente, mas também ameaçam sua integridade física. Logo no princípio, o filme deixa evidente o quanto Sonia está em uma situação-limite. Insatisfeita profissionalmente e com problemas emocionais, é uma questão de tempo até que a professora tenha um colapso. Só que cada um reage de um jeito à pressão e, por uma conjunção de fatores, a reação de Sonia acaba ganhando proporções trágicas.

Um grande mérito do filme é lidar com um assunto realmente sério e pesado com um toque de loucura, no melhor estilo “um dia de fúria de Isabelle Adjani”. Sonia foi uma vítima sim, mas a partir do momento em que surta deixa de lado a postura frágil e mostra a coragem e desprendimento da qual só os desesperados são capazes. Ponto para a intensa e apaixonada interpretação de Adjani, que por muitos anos teve seus talentos dramáticos ofuscados pelo carma de ser uma das mulheres mais belas do cinema. Mais madura e nesse papel isento de glamour, a musa submerge e vem à tona a ótima atriz.

Só é uma pena que um filme de tantas qualidades tropece em besteiras, como inserir depoimentos tolos para explicar didaticamente as bases do problema ou destacar personagens não tem absolutamente nenhuma função, como a colega de ofício que defende Sonia e o ex-marido arrependido. Mas o maior tropeço está no desfecho, que escorrega em um sensacionalismo barato que o dinamismo e humor ácido da trama vinha evitando até então.

Em todo caso, O Dia da Saia – sim, esse título procede – é um trabalho visceral e bastante surpreendente que vale a pena conferir.

Nota: 7,5

(La Journée da la Jupe, de Jean-Paul Lilienfeld. FRA / BEL, 2008. 88 minutos. Panorama do Cinema Mundial)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Teatro de Guerra


O ano é 2006 e Mãe Coragem e Seus Filhos, clássico anti-belicista de Bertolt Brecht, está sendo ensaiado em Nova Iorque. A adaptação é do dramaturgo Tony Kushner, do premiado Angels in America, e Meryl Streep encarnará a personagem-título. O filme acompanha os bastidores dos ensaios da peça, ao mesmo tempo em que usa o sempre atual texto de Brecht para discutir questões como a cultura de tendências bélicas dos Estados Unidos e o modo como interpretam a mensagem do dramaturgo alemão. O filme ainda faz um retrospecto da trajetória do autor, contando com depoimentos e imagens de arquivo passagens como sua fuga da Alemanha de Hitler e o modo como conseguiu se livrar das perseguições do Comitê de Atividades Anti-Americanas.

Um filme simplesmente obrigatório para quem é envolvido com atividades artísticas, seja como ator, escritor ou até mesmo apenas como apreciador. O documentário de John Walter trabalha em várias linhas distintas: por um lado, temos a oportunidade de observar a sempre maravilhosa Meryl Streep durante o processo de criação de uma personagem, desde uma leitura de mesa inicial até alguns ensaios já com figurino. Na contrapartida, o filme traça um abrangente perfil de Bertolt Brecht, um cara cuja importância como teórico das artes cênicas costuma mascarar suas outras facetas. Brecht, além de autor de peças, teórico e ativista político, também era um ótimo ator. E esse seu lado é mostrado de modo impagável, com imagens de arquivo onde vemos o dramaturgo sendo interrogado pelos senadores macarthistas e representando descaradamente, ao fingir que não sabia falar inglês direito para que lhe fizessem menos perguntas. Só esse trecho já faz o filme valer a pena.

Mas não é só isso o que Teatro de Guerra tem a oferecer. O documentário também conta com depoimentos de Tony Kushner, Kevin Kline, Meryl Streep e ainda da filha de Brecht e Helene Weigel, entre outros. O filme ainda costura todo esse interessantíssimo material com reflexões sobre a mensagem de Mãe Coragem e Seus Filhos. Escrita em 1939 e considerada por muitos como a obra-prima do autor, a peça narra a história de uma mascate que faz da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) seu ganha-pão e acaba perdendo todos os seus filhos por conta dessa escolha. Brecht, obviamente, estava falando de uma guerra para chamar a atenção para outra e também para o uso comercial de um conflito e suas consequências para o ser humano.

Vale lembrar, ainda, que esta é a primeira vez que Meryl Streep permite ser gravada durante um ensaio teatral. Uma oportunidade rara de ver uma grande atriz em processo de construção e também de saber mais sobre a vida e obra de um dos dramaturgos de maior importância para o teatro mundial. Enfim, um encontro de gigantes.

Nota: 9,0

(Theater of War, de John Walter. Doc. EUA, 2008. 95min. Mostra Dox)

Lake Tahoe


Juan tem 16 anos e bate com o carro da mãe em um poste. Tentando resolver o problema por si próprio, acaba encontrando uma galeria de personagens inusitados: Don Heber, um velho mecânico paranóico que só confia em seu cachorro; Lucía, uma mãe solteira adolescente que sonha ser uma pop star; e David, um mecânico admirador de Bruce Lee e fascinado por artes marciais. Ao longo de um único dia, essas pessoas tocarão a vida de Juan e o farão esquecer, ainda que por pouco tempo, da dolorosa situação na qual se encontra. O filme foi vencedor do Prêmio FIPRESCI no Festival de Berlim de 2008.

Um filme extremamente simpático em sua simplicidade. Juan está tendo um dia daqueles, e na sua tentativa desesperada de consertar o carro da mãe vale tudo. Desde invadir a casa de um neurótico até ajudar um novo amigo a roubar a peça que precisa do carro de um conhecido, passando pelas primeiras e tímidas descobertas sexuais. E as peripécias pelas quais passa o rapaz são mostradas sempre com muita graça, dentro da linha “olhando de perto, ninguém é normal”. Destaque para a cena em que a mãe de David tenta convertê-los à mesa e também para todas as cenas de Juan com o cachorro Sica.

O jovem Diego Cataño é um achado, encarando as mais bizarras situações com a expressão mais abestada do mundo (a certa altura do filme, entendemos a razão de Juan estar em tal estado de letargia). A direção leve e segura de Fernando Eimbcke encontra algumas soluções simples e interessantes, como o uso intencionalmente prolongado da tela preta. O recurso é especialmente engraçado na cena em que Juan e David vão ao cinema ver Operação Dragão. A puxada de orelha fica por conta da gratuidade do título. Um diretor tão criativo certamente poderia ter pensado em algo melhor.

Nota: 7,0

(Lake Tahoe, de Fernando Eimbcke. México, 2008. 85min. Première Latina)

Tarantino dá bolo no Brasil


A Universal Pictures acaba de emitir um comunicado informando que Quentin Tarantino não mais virá ao Brasil para participar da divulgação e pré-estréia do filme Bastardos Inglórios durante o Festival do Rio. O diretor diz que sente muito, mas as viagens que tem feito desde maio pelo mundo por conta da divulgação do longa o deixaram exausto.

Poxa... o cara tá viajando há meses e foi ficar cansado logo na hora de vir ao Brasil?

domingo, 27 de setembro de 2009

A Casa Nucingen


William James é um jovem aristocrata americano que vive com a esposa Anne-Marie na fervilhante Paris da década de 20. Um dia William quebra a promessa feita à esposa e aposta alto no pôquer – mas, dessa vez, vence. O prêmio é uma bela propriedade no Chile, próxima à Cordilheira dos Andes. O casal viaja então para conhecer a casa e ter uma tardia lua-de-mel. Mas, chegando lá, encontram os familiares do antigo dono – que se suicidou após o malfadado jogo – e logo percebem que eles não estão dispostos a deixar a residência. Estranhas figuras povoam o local e os relógios parecem não funcionar, deixando William e Anne-Marie sem saber distinguir os vivos dos mortos. Baseado no conto homônimo escrito por Honoré de Balzac.

O chileno Raoul Ruiz tem um modo muito peculiar de fazer cinema. Seus filmes são marcados por um grau de bizarrice e artificialismo que costuma chocar os desavisados. A Casa Nucingen não foge a essa regra, criando um forte contraste entre a atmosfera gótica e surreal do conto de Balzac e uma certa tosquice intencional no aspecto visual do longa e também nas interpretações. Ruiz costuma dar um tratamento bastante estilizado, até mesmo caricatural, às suas produções, associado a uma releitura de gêneros tradicionais. Neste caso, a homenagem é feita aos filmes de terror da década de 70 – a própria fotografia do longa remete a esse estilo de filme.

O filme é um interessante exercício de estilo, embora não possa ser considerado realmente como um filme de terror bem-sucedido. O exagerado nível de estranheza impede um maior mergulho do espectador na trama, fator indispensável para que se crie uma atmosfera assustadora. E as esquisitices da direção, ao contrário, parecem estar ali tão-somente para lembrar a todo momento tratar-se de cinema. Uma espécie de horror brechtiano, que faz questão criar distanciamento. Mais recomendado para o cinéfilo que valoriza a estética surrealista, já que não vale a pena olhar o filme pelo viés da dramaturgia. Destaque para a cena do estranhíssimo jantar e o médico que dorme à mesa quando menos se espera.

Nota: 6,0

(La Maison Nucingen, de Raoul Ruiz. França / Chile, 2008. 94min. Panorama do Cinema Mundial)

sábado, 26 de setembro de 2009

A Falta Que Nos Move


Os limites entre realidade e ficção podem ser facilmente confundidos e aproximados. O quanto um ator doa de si mesmo para um papel é assunto que vem sendo discutido desde sempre e não se chega a um consenso. Isso é pergunta sem resposta, mesmo porque cada um tem seu próprio e particular processo nessa subjetiva arte de criar uma personagem. E o quanto do que acontece em um filme pode ser controlado pelo roteiro, pela direção e demais limites profissionais? São questionamentos como esses que a diretora teatral Christiane Jatahy investiga com extrema perspicácia e originalidade em sua estreia atrás das câmeras.

A Falta Que Nos Move é a versão cinematográfica da peça homônima e foi rodada num único dia, durante treze horas ininterruptas de filmagem. Ao longo da noite de 23 de dezembro de 2007, três câmeras acompanharam os cinco atores. O cenário? A casa de Christiane, que pré-estabeleceu um roteiro que deveria ser seguido e dirigiu os atores durante a filmagem exclusivamente através de torpedos de celular. Vale lembrar que o elenco vinha trabalhando tal pesquisa de linguagem há quatro anos. A trama é simples: os atores se encontram para uma celebração e devem cozinhar, conversar e beber, preparando o jantar para uma sexta pessoa que pode chegar ou não.

Como bem definiu Eduardo Coutinho a respeito de seu filme Jogo de Cena, “diante de uma câmera, todo mundo atua”. Mas o contrário também é válido, ou seja, todo ator acaba doando algo de si para atingir um nível de interpretação verdadeiro. Seria possível viver exclusivamente um personagem ao longo de treze horas? Dificuldade imposta pelo fato dos personagens serem os próprios atores, com seus nomes reais. Nesta arrojada proposta, cabe ao espectador investigar em que momentos os atores estão sendo eles mesmos. Teriam sido pré-programados todos os conflitos ou algumas desavenças afloraram naturalmente depois de algumas taças de vinho? Conseguiram os atores manter seus papéis na íntegra, mesmo quando confrontados com a tensão máxima?

A pesquisa de Christiane encontra ecos no teatro do oprimido de Augusto Boal, dentre outros, mas, ao mesmo tempo, também se presta perfeitamente à linguagem moderna do cinema e mixa de maneira engenhosa o filme a seu making of, que acontecem simultaneamente e sem separação. Por diversas vezes o mecanismo por trás da ilusão é desvelado, ao mostrar o roteiro escrito nas paredes da cozinha, o torpedo que um ator recebe ou até mesmo fazer rebobinar uma cena que aconteceu antes do previsto. Outro ponto curioso é quando os atores discutem como deve ser interpretado um trecho do roteiro. Seria a discussão sobre o roteiro uma parte do roteiro em si, numa dupla metalinguagem?

Mas o melhor na produção é que ela não se limita a ser um filme-pesquisa. A Falta Que Nos Move vai além de sua forma e, como cinema, conta uma história tensa e comovente sobre as crises de identidade e angústias de um grupo de amigos vivendo um momento de ruptura em suas vidas e confrontados com a ausência de algo. Seja amor, rumo profissional ou qualquer outra falta que lhes mova, estão todos precisando se afirmar. O roteiro encontra ecos no cinema de Bergman e também de algumas obras anteriores de Woody Allen e é por si só interessante, mesmo sem considerarmos a pesquisa envolvida.

E certamente nada disso seria possível sem a incrível disponibilidade e entrega de Pedro Brício, Marina Vianna, Kiko Mascarenhas, Cristina Amadeo e Daniela Fortes a essa abordagem radical de desnudamento diante das câmeras. Os atores conseguem deixar bastante difuso o limite da realidade, mergulhando sem pudores na proposta do longa.

Uma mentida bem contada, como se diz em determinado momento? Uma realidade exposta? Revelações inesperadas? Ou estava tudo previsto? Cada espectador pode ter sua conclusão particular e é justamente isso que torna A Falta Que Nos Move não apenas um grande filme mas também um projeto de absoluta relevância para a linguagem artística contemporânea. Imperdível.

Nota: 10

(A Falta Que Nos Move, de Christiane Jatahy. BRA, 2007. 95 minutos. Première Brasil – Novos Rumos)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Distante Nós Vamos


Burt e Verona tem trinta e poucos anos e esperam o primeiro filho. Surpreendidos com a notícia de que os pais de Burt se mudarão para a Bélgica justo quando o neto está prestes a nascer, os dois decidem que nada mais os prende à cidade onde vivem. Afinal de contas, os pais de Verona já morreram e ambos tem trabalhos flexíveis. Indecisos sobre o melhor lugar para morar, o casal resolve empreender uma viagem durante a qual escolherão uma nova cidade para assentar a família. Mas, ao visitar amigos e parentes, eles também serão confrontados com diferentes relações e modelos familiares, trazendo à tona dúvidas e questionamentos inéditos.

A viagem de Burt e Verona à procura do novo lar, na verdade, é uma viagem em busca de um lugar – não necessariamente geográfico – onde eles sintam a segurança familiar que ainda lhes falta. Não por carência de amor entre eles e sim pelas inseguranças que passam pela cabeça de qualquer casal e que a chegada de um filho só amplifica. Mas, ao mesmo tempo em que o longa lida com questões da maior profundidade, seu formato road movie lhe confere dinamismo, ritmo e até mesmo leveza. Os momentos mais divertidos ficam por conta do encontro do casal com a prima pseudo-mística interpretada por Maggie Gyllenhaal.

A exemplo do que havia feito no perturbador e dolorido Foi Apenas um Sonho, Sam Mendes torna a apontar suas lentes para a geração dos 30 e poucos anos que não tem muita certeza dos rumos que está dando à vida. E em uma cultura como a americana, tão incisiva em rotular quem são os vencedores e perdedores, não é nada fácil se olhar neste espelho. Burt e Verona, pressionados pela chegada iminente do filho, se veem obrigados a confrontar todos os medos até então empurrados para baixo do tapete. Mas, ao contrário do casal de Foi Apenas um Sonho, eles não são destroçados por seus questionamentos e tem a oportunidade de se fortalecerem como casal. O que equivale a dizer que desta vez o cineasta trocou a desesperança por uma abordagem mais bem-humorada e positiva a respeito dos mesmos dilemas.

O elenco de Distante Nós Vamos é bastante homogêneo, sem que ninguém em especial se sobressaia, mas com boas atuações no geral, nivelando o conjunto por cima - os pouco conhecidos John Krasinski e Maya Rudolph interpretam o par central com bastante naturalidade. Outro aspecto interessante na filmografia de Sam Mendes é o peso que o diretor costuma dar em suas histórias às relações humanas, independentemente do tema escolhido. Sejam soldados no Kuwait, famílias suburbanas ou organizações mafiosas, é o elemento humano que sempre norteia a direção de seu trabalho. E isso certamente é uma visão adquirida em sua formação original como homem de teatro, o que só enriquece seu trabalho na sétima arte. Distante Nós Vamos é mais uma bela contribuição ao cinema de um cineasta sempre inquieto e pertinente.

Nota: 8,5

(Away We Go, de Sam Mendes. EUA / UK, 2009. 94min. Panorama do Cinema Mundial)

Barba Azul


Na França dos anos 50, duas irmãs fazem do sótão de sua casa um território mágico e proibido onde vivem aventuras e assustam uma à outra lendo contos de fadas. Uma das histórias que a irmã menor mais gosta é justamente a do Barba Azul, nobre que decapitava suas esposas e guardava os cadáveres em uma sala de seu castelo. Neste curioso filme, a história clássica do Barba Azul é recontada associando o personagem criado por Charles Perrault a Gilles de Rais, famoso assassino de crianças contemporâneo de Joana d’Arc. Exibido no Festival de Berlim 2009.

A primeira coisa que chama atenção no filme é seu tom deliberadamente falso, com seus cenários artificiais e direção de arte meio tosca. Como se o que vemos no filme “de dentro” saísse diretamente da mente das meninas que leem a história na trama “de fora”. Daí a cenografia meio fora de perspectiva, as roupas que mais parecem fantasias, enfim, uma estética que sugere o tempo todo ter saído do imaginário infantil. Embora no princípio fique a dúvida se é pobreza de orçamento ou opção narrativa, a abordagem da diretora Catherine Breillat vai ficando mais clara conforme o filme avança. Um exemplo disso é a sequência em que Barba Azul e a jovem esposa sobem uma escada que levaria a uma torre e as mesmas tomadas do mesmo trecho são repetidas para dar a impressão de uma escadaria extensa.

Posto dessa maneira, parece um filme esquisito. E realmente é. Mas, curiosamente, essa abordagem bizarra funciona bem na tela e combina com a história do nobre sanguinário e sua esposa curiosa. A escolha por uma narrativa estilizada está presente nos figurinos, na severidade caricata da freira na cena inicial, na geografia contraditória do castelo, na dramaticidade exagerada do empobrecimento da família da mocinha (a cena da sopa de capim é de uma inspiração ímpar) e, sobretudo, na incrível desproporção entre o gigante Barba Azul e a pequenina esposa. E o contraste entre os dois torna mais forte a associação com o infanticida de Rais, embora o longa tome o cuidado de afastar qualquer sugestão de pedofilia.


Barba Azul é um filme bem legal, feito para divertir o adulto que somos e também para dar uns sustos na criança adormecida em nosso subconsciente. Vale lembrar que Catherine Breillat ameaçou seguir um caminho parecido em seu filme anterior – o mal-resolvido A Última Amante –, mas foi tão tímida no flerte com o surrealismo que invalidou completamente suas intenções. Mas nada como um filme após o outro e a cineasta se saiu bem melhor desta vez, pois em Barba Azul ela realmente mergulha na proposta teatral sem medo de ser feliz.

Nota: 7,0

(Barbe Bleue, de Catherine Breillat. França, 2009. 80min. Panorama do Cinema Mundial)

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Breves comentários


O documentário As Praias de Agnès, da Mostra Panorama do Cinema Mundial, certamente será uma iguaria fina para quem é ligado em cinema francês, especialmente nos filmes da Nouvelle Vague. Agnès Varda, um dos ícones do movimento, desfia para as câmeras reminiscências acerca não apenas de sua carreira como cineasta, mas também de sua origem, sua família, sua infância, seu casamento com o também cineasta Jacques Demy, etc. O título remete à importância que as praias tem para sua vida e o aspecto visual é realmente bem-cuidado e inventivo, embora a diretora abra mão de uma cronologia ou outro foco norteando o roteiro e realize um filme 100% afetivo. Vale lembrar que Agnès Varda é uma das convidadas do Festival deste ano.

O Clone Volta para Casa é um filme japonês totalmente sem sentido que está na grade da mostra Midnight Movies. O que vocês achariam de um filme com o seguinte argumento? Um astronauta, antes de partir em uma missão, aceita participar de uma experiência de clonagem avançada e pede que seu clone seja ativado caso algo lhe aconteça. Claro que algo acontece, ele morre e o clone é trazido à vida. Mas um erro na programação das memórias fez com que o clone fique preso às dores da infância da matriz e recorde a infância e o irmão gêmeo morto... e por aí vai. Como filme trash, certamente renderia bons momentos. Mas o longa se leva a sério, muito a sério. E a ausência de humor torna as incongruências e situações inexplicáveis do roteiro difíceis de digerir. A certa altura, o clone encontra a matriz, vestido de astronauta e tudo, no meio da mata. Como? Um filme assim é até difícil de criticar, dado o alto grau de estranheza. Por sua conta e risco, caro leitor.

Sussurros ao Vento, filme iraquiano da Mostra Limites e Fronteiras, foi um que desagradou em cheio aos presentes nas cabines de imprensa. Eu não achei o filme de todo ruim, não mesmo. Está certo que ele é bastante arrastado, mesmo tendo apenas uma hora e quinze minutos de duração. Mas, por outro lado, não se pode desprezar a poesia triste das imagens e a mensagem da trama. O filme conta a história de um homem que atravessa uma região de conflitos no Curdistão iraquiano e viaja de uma aldeia a outra gravando e transmitindo mensagens de guerrilheiros às suas famílias. Até que um amigo lhe pede que grave para ele o primeiro choro de seu filho prestes a nascer, mas quando ele chega no local descobre que as mulheres foram retiradas porque a região toda está em risco e sua missão torna-se mais difícil do que ele previra. Nos caminhos tortuosos, ele encontra amigos, dor, miséria e, ao fim, um pouco de esperança. É amador em termos técnicos, porém bonito.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Chuva


Durante uma chuva torrencial que para toda Buenos Aires, Alma está em um congestionamento em seu carro quando um estranho lhe pede abrigo. Ele se chama Roberto, é espanhol e veio à Argentina para resolver um drama familiar. Alma, por sua vez, acaba de abandonar o marido e está vivendo temporariamente no carro. Mesmo sem conhecê-lo, Alma acolhe Roberto e o inusitado encontro cria um laço entre os dois estranhos enquanto a chuva castiga a cidade por três dias.

A diretora e roteirista Paula Hernández (a mesma de Herencia) realiza um retrato singelo da solidão e dos encontros e desencontros da vida. Chuva é um filme de poucas surpresas, contemplativo, melancólico, cheio de silêncios. O temporal quase bíblico que domina a tela é mais eloquente do que os personagens, que parecem aprisionados em seus traumas insondáveis. Alma não sabe porque desgostou do marido de um dia para outro; Roberto não sabe como encarar o reencontro com o pai em circunstâncias trágicas – parece que houve um desentendimento entre eles, mas o filme não se detém nisso.

Por vezes, é um pouco frustrante o modo como várias questões ficam no ar, mesmo que o filme deixe claro que sua intenção primordial é levantar questões e não responder perguntas. Em um filme de caráter tão subjetivo, é o bom desempenho de Valeria Bertuccelli e Ernesto Alterio que acaba fazendo a diferença. A humanidade com que os atores revestem seus personagens faz com que nos interessemos por suas dores mesmo quando eles pouco revelam.

Nota: 6,5

(Lluvia, de Paula Hérnandez, Argentina, 2008. 110 minutos. Première Latina)

Eu Matei a Minha Mãe


Hubert tem dezessete anos e simplesmente não suporta a mãe. Tudo lhe incomoda, desde suas roupas de gosto duvidoso até o modo como ela se porta à mesa. A mãe, por sua vez, tampouco facilita a harmonia, ao tentar manipular os sentimentos do rapaz e comportar-se de maneira contraditória e infantil. Hubert torna-se cada vez mais confuso e direciona suas frustrações para a educação que recebeu, ao mesmo tempo em que tem suas primeiras experiências sexuais com o amigo Antoine e desperta o afeto de uma professora. O longa foi exibido na Quinzena dos Realizadores de Cannes deste ano.

O ator canadense Xavier Dolan tem apenas 20 anos e faz seu dèbut como diretor e roteirista com este filme de proposta bastante interessante, embora deficiente sob alguns aspectos. O problema principal do longa é a falta de objetividade do roteiro, que faz com que a trama muitas vezes pareça estar caminhando em círculos. Problema que pode ser creditado à inexperiência de Dolan, que talvez tenha agregado para si mais funções do que poderia administrar.

O resultado é que o filme parte de um argumento original e se perde pelo meio do caminho. Sem contar que o título dá uma ideia equivocada de filme trash, o que não é o caso. Noves fora, restam as boas intenções e uma penca de sequências realmente inspiradas, mas que não chegam a construir um “todo” satisfatório. De todo modo, vale a pena ficar de olho em Xavier Dolan daqui para a frente. O ator/diretor/roteirista deixa claro com este primeiro filme que tem imaginação e energia para realizar coisas bacanas no futuro, faltando-lhe apenas adquirir mais maturidade artística.

Nota: 5,0

(J’ai Tué Ma Mère, de Xavier Dolan, Canadá, 2009. 100 minutos. Mostra Expectativa)

500 Dias com Ela


Contada através de episódios não-lineares, a trama acompanha os 500 dias que o jovem Tom passa perdido de amor pela colega de trabalho Summer. Embora seja formado em arquitetura, as coisas não deram certo para Tom na profissão e seu trabalho atual é redigir cartões de felicitação. Tímido, solitário e descontente com a vida, ele quase não acredita quando a bela Summer se aproxima dele e demonstra apreciar sua companhia. Da amizade ao namoro é um pulo, mas o grande problema é que a moça não acredita no amor e insiste que eles não devem rotular o que estão vivendo como um relacionamento.

500 Dias com Ela é, desde já, sério candidato ao posto de filme-gracinha deste Festival. Com uma estrutura que lembra bastante o brasileiro Pequeno Dicionário Amoroso – com a diferença da contagem dos dias no lugar dos verbetes –, o longa de Marc Webb tem de tudo para agradar em cheio: moderninho, terno, engraçado, com um elenco simpático e uma trama simples (porém, pertinente) sobre todo o processo que vai do encantamento à desilusão, passando pela euforia, briguinhas, recaídas, enfim, todas aquelas fases de um relacionamento amoroso que todo mundo conhece bem.

Nos papéis centrais, os carismáticos Zooey Deschanel e Joseph Gordon-Levitt destilam tanta simpatia que fica impossível para o espectador tomar partido de algum dos dois. Zooey é uma das musas do cinema independente e Joseph tem o perfil do carinha legal, espirituoso, bonitinho, porém absolutamente comum – tipo uma versão mais jovem do John Cusack –, o que combina perfeitamente com o personagem. E a química entre os dois é tão bacana que em nenhum momento do filme parece estranho que aquela menina descolada e experiente se interesse pelo menino retraído e romântico.

O filme é o primeiro longa-metragem do diretor de clipes Marc Webb, que estará no Festival para entrevistas. Seu histórico publicitário/musical fica evidente pela excelente trilha sonora, montagem esperta e, sobretudo, pelo ritmo fluido. Outra solução simples e inteligente foi usar a contagem dos 500 dias para marcar as idas e vindas no tempo. O espectador logo se situa a partir de que dia as coisas começaram a acontecer entre os dois e, depois, desandar.

500 Dias com Ela é um ótimo começo para Webb, seja ele bem-vindo às telonas.

Nota: 8,0

((500) Days of Summer, de Marc Webb. EUA, 2009. 95 minutos. Panorama do Cinema Mundial)

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Julie & Julia


Em 1948, a americana Julia Child muda-se para Paris na companhia do marido diplomata. Sem ter do que se ocupar e grande entusiasta da culinária francesa, Julia descobre sua grande vocação ao ingressar numa renomada escola de gastronomia. Décadas depois, em 2002, Julie Powell sente-se extremamente frustrada com suas finanças e carreira e tem como válvula de escape cozinhar. Seu livro de cabeceira? Dominando a Arte da Culinária Francesa, de Julia Child. Com o incentivo do marido, Julie cria um projeto que prevê que ela testará todas as 500 e tantas receitas do livro dentro do prazo de um ano e publicará os resultados em um blog.

O filme é baseado nas histórias reais das duas quase xarás e se desenvolve em épocas distintas: ao mesmo tempo em que acompanha a ascensão de Julia Child – que, de dona-de-casa glutona se transforma em uma renomada chef – no passado, segue as agruras de Julie no presente e sua busca em recobrar o prazer e a auto-estima. O elo de ligação entre as duas mulheres ocorre por conta da afetividade quase religiosa que Julie começa a desenvolver por Julia, nos dias atuais uma grande personalidade e referência em termos de gastronomia. Mas Julia, em contrapartida, nem sabe que Julie existe – ou, pelo menos, não sabia antes do blog.

Julie & Julia é um filme correto, podemos classificá-lo assim. Levando-se em conta o argumento pouco atraente (eu, particularmente, fui assistir ao filme com expectativa zero), até que o resultado final tem sua graça. E grande parte do mérito vai para o talento das protagonistas Meryl Streep e Amy Adams, que não contracenam no longa e, ainda assim, seguram a barra de seus núcleos com grande competência - curiosamente, as duas estiveram juntas ano passado em Dúvida. O núcleo de Meryl é, de longe, mais rico, não apenas pela reconstituição de época e a crítica ao macartismo, mas pela própria exuberância e divertida afetação da personagem. Já Amy tem a ingrata tarefa de conduzir a personagem menos interessante, mas a atriz faz das tripas coração e consegue torná-la mais consistente.


O filme é bom divertimento, embora o roteiro se atrapalhe um pouco na conclusão e deixe o espectador com a ligeira impressão de que a diretora e roteirista Nora Ephron não sabia muito bem como encerrar seu filme. Nora, aliás, nunca mais conseguiu fazer um filme tão bacana quanto Sintonia de Amor (1993). Mas, considerando que seu último longa foi o pavoroso A Feiticeira, podemos considerar Julie & Julia é uma bela evolução.

Só uma dica: como o filme tem previsão de estréia já para 27 de novembro, talvez não seja uma escolha tão urgente em termos de Festival do Rio.

Nota: 6,0

(Julie & Julia, de Nora Ephron. EUA, 2009. 123min. Panorama do Cinema Mundial)

domingo, 20 de setembro de 2009

Jericó


Após ser dispensado com desonra do serviço militar, Thomas volta a seu vilarejo natal no norte da Alemanha. Endividado, consegue emprego como entregador da rede de lanchonetes do turco Ali após salvá-lo de ser autuado por dirigir bêbado. Thomas logo sente-se atraído por Laura, a jovem e bela esposa de Ali. Ela quer deixá-lo, mas não pode devido a uma dívida e os dois iniciam um caso. Até quando sustentarão essa situação? Mais uma adaptação do livro O Destino Bate à Sua Porta, de James M. Cain.

Jericó é um filme curioso. O roteiro parte de um material que é puro noir para converter-se em um filme sóbrio, cortante, cheio de aridez. Quem viu a versão americana, com Jack Nicholson e Jessica Lange, vai se surpreender com o pouco erotismo da concepção alemã. O sexo entre Thomas e Laura é muito mais uma tábua de salvação do que um momento de sensualidade. Por outro lado, é curioso como a trama tipicamente americana de Cain se adapta bem a qualquer cultura. Talvez por lidar com cobiça, revolta, ambição, ou seja, sentimentos universais.

Jericó tem como pontos fracos a demora em desenvolver o cerne da trama, somada à inserção de algumas cenas que não tem nenhuma importância para o filme. A sequência inicial é um bom exemplo. O trecho não tem outro objetivo senão explicar a situação financeira de Thomas, mas tudo é tão alongado e cheio de detalhes que dá ao ao espectador a impressão de que aquilo terá alguma importância posterior. Não tem. E é meio esquisito que um filme tão curto precise ficar se estendendo tanto.

O destaque vai para o desfecho, bastante impactante e contrário ao que o longa vinha anunciando até então. O diretor e roteirista Christian Petzold, que tem uma carreira mais voltada para a TV, certamente realizou um filme curioso, que vale a pena conhecer.

Nota: 6,0

(Jerichow, de Christian Petzold. Alemanha, 2008. 93min. Panorama do Cinema Mundial)

sábado, 19 de setembro de 2009

Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans


Devido a um ato de bravura logo após o estrago do furacão Katrina, o detetive Terence McDonagh é promovido a tenente. Mas o heroísmo lhe deixa como saldo várias contusões nas costas e ele fica cada vez mais dependente de analgésicos, além do uso constante de cocaína. Quando uma família de imigrantes senegaleses é executada, Terence é encarregado de chefiar as investigações e logo percebe que as pistas apontam para traficantes da região. Para resolver o caso, o policial torna cada vez mais difusos e questionáveis seus limites e toma decisões que podem levá-lo a um caminho sem volta. O filme é um remake de um longa de Abel Ferrara de 1992, que trazia Harvey Keitel como protagonista, e foi exibido em competição no Festival de Veneza deste ano.

Confesso que um filme estrelado por Nicolas Cage e Eva Mendes é motivo para me deixar bastante apreensiva, mas felizmente o Nicolas Cage deste longa não tem absolutamente nada a ver com a figura constrangedora que temos visto nos últimos anos. Voltando em grande forma ao estilo de papel doidão que o consagrou – vide seu Oscar por Despedida em Las Vegas –, o ator prova que ainda pode dar um bom caldo se estiver numa produção decente.

Bad Lieutenant é um filme muito louco, repleto de personagens bizarros e situações idem. Recheado de ação, violência, humor negro e delírios exóticos, este divertido longa ainda tem uma ligeireza e anarquia nos diálogos que lembra muito mais o estilo Tarantino do que o normalmente mais sério Werner Herzog. O personagem de Nicolas Cage passa boa parte do filme num estado alterado de consciência e, muitas vezes, o mundo surreal que ele enxerga toma forma na tela, como se toda a equipe técnica do filme – e o próprio Herzog – estivesse tão chapada como o personagem.

Dentre tantas cenas memoráveis e hilárias, destaco a sequência em que Terence resolve dar um arrocho em duas velhinhas para descobrir onde está escondida uma testemunha. Você simplesmente não acredita em até onde o cara chega, logo depois de anunciar que “estava sendo educado até então, mas isso vinha atrapalhando sua eficiência.” Impagável. Está certo que algumas soluções do roteiro parecem cair do céu, mas, ainda assim, o filme é simplesmente delicioso.

Nota: 8,0

(Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans, de Werner Herzog. EUA, 2009. 121min. Panorama do Cinema Mundial)

35 Doses de Rum


O imigrante Lionel é viúvo e se orgulha de ter criado sozinho a filha adolescente Josephine, com quem tem uma convivência próxima e afetuosa. No mesmo prédio também moram Gabrielle, uma taxista de meia-idade que se desdobra para conquistar a atenção de Lionel, e Noé, um jovem solitário que Josephine encoraja e repele ao mesmo tempo. O relacionamento entre essas quatro pessoas forma uma carinhosa porém mal-resolvida rede familiar.

35 Doses de Rum conquista o espectador aos poucos para seus dilemas prosaicos de pessoas comuns. Também é um filme de ritmo mais lento, mas vale ressaltar que neste caso a calmaria típica do cinema francês não chega a se converter em tédio. A segunda metade do filme rende melhor que a primeira e o espectador que tiver um pouquinho de paciência certamente se deixará envolver com essa trama singela e bem construída. Um detalhe interessante é o modo como a diretora Claire Denis opta por cortar várias sequências antes de sua conclusão, deixando a cargo do espectador preencher as lacunas. E o faz com grande habilidade, de um modo que o que não foi mostrado é facilmente compreensível.

Por outro lado, algumas subtramas que são inseridas na história parecem não contribuir muito para a trama central. Exemplos disso são as cenas que mostram a vida acadêmica de Josephine (em especial o galanteador que surge do nada a desaparece do mesmo modo) e a viagem de Lionel com a filha à Alemanha. Mas, no geral, vale uma conferida.

Nota: 6,5

(35 Rhums, de Claire Denis. Fra, 2008. 100min. Panorama do Cinema Mundial)

Arranca-me a Vida


O filme acompanha a trajetória da jovem Catalina dos quinze aos trinta anos, iniciando o relato quando ela se encanta pelo orgulhoso e autoritário general Andrés Ascensio e se casa com ele. Catalina logo descobre o delicado papel reservado à esposa de um militar com ambições políticas. Andrés quer ser governador e, um dia, presidente e tem expectativas bem definidas para sua esposa. Tendo como ambientação as reviravoltas políticas pelas quais passa o México nas décadas de 30/40, o filme também tece um retrato do papel da mulher na sociedade mexicana da época.

Arranca-me a Vida representa o que há de menos inventivo no cinema latino da atualidade. Excessivamente narrativo e explicadinho, com direito à narração em off da protagonista pontuando diversas passagens, o filme ainda comete o pecado de ser excessivamente arrastado em sua condução. O ritmo moroso, cansativo, as cenas alongadas, tudo isso faz com que seus 110 minutos pareçam durar o dobro disso.

Embora até evite alguns clichês no que diz respeito à construção de personagens (o marido machão tem seu lado afetuoso e a mocinha tem sua porção acomodada e interesseira), o longa em compensação recorre a todos os lugares-comuns em termos de estilo cinematográfico. Cenários idealizados nas tomadas românticas, boleros lacrimosos na trilha sonora, diálogos por vezes risíveis de tão canastrões. Para completar, ainda fica indeciso entre assumir o gênero novelão ou se aprofundar nas questões políticas e sociais. Ficando no meio do caminho, acaba sendo superficial em ambas as vertentes.

Nota: 4,0

(Arráncame la Vida, de Roberto Sneider. Mex/Esp, 2008. 110min. Première Latina)

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Festival do Rio - Contagem Regressiva



Falta apenas uma semana! A partir da próxima sexta, dia 25 – a noite de quinta é apenas para convidados –, o cinéfilo carioca poderá se deliciar com o sempre variado cardápio do Festival do Rio. Este ano, o evento traz como convidados especiais iguarias finas como a musa francesa Jeanne Moreau – dando seguimento ao Ano da França no Brasil – e ninguém menos do que o enfant terrible Quentin Tarantino. Outros petiscos esperados são o argentino Juan José Campanella e uma das precursoras da Nouvelle Vague, a cineasta Agnès Varda.

O Festival do Rio apresenta mais de 300 filmes, divididos por 20 mostras. Alguns destaques são os novos longas de Pedro Almodóvar (Abraços Partidos), Ang Lee (Aconteceu em Woodstock), Michael Haneke (The White Ribbon), Park Chan-Wook (Sede de Sangue) e do já citado Tarantino (Bastardos Inglórios). Mas nem só de nomes de peso é feita a alegria do cinéfilo durante o evento. A palavra-chave é variedade. Tem de tudo um pouco nas diversas mostras, especialmente na tradicionalíssima Midnight Movies, responsável pelos títulos mais bizarros. Esse ano, por exemplo, teremos uma preciosidade chamada Matadores de Vampiras Lésbicas.

Como escolher o que ver dentre tantas opções? Uma dica sempre válida é evitar aqueles filmes que tem estreia garantida, geralmente grandes produções de grandes diretores. O longa de Quentin Tarantino, por exemplo, entra em cartaz já no dia seguinte ao encerramento do Festival. Alguns outros filmes que já tem data de estreia são Che - Parte 2 (09/10), Distrito 9 (16/10), Coco Antes de Chanel (30/10), Aconteceu em Woodstock (13/11) 500 Dias com Ela (13/11), Abraços Partidos (20/11), Julie & Julia (27/11) e Distante Nós Vamos (18/12). Também vale observar se o filme está na programação do Festival com legenda eletrônica (LEP) ou legenda em português na tela (LP). Ter a legenda já inserida na tela e não no painel abaixo dela significa que o filme já foi comprado por algum distribuidor no Brasil, ou seja, pode até demorar, mas um dia ele será exibido. Quando menos, lançado em DVD. Já os outros...

A lista completa dos filmes participantes será divulgada até o fim da semana, no site do Festival (http://www.festivaldorio.com.br/). Enquanto isso, confiram abaixo alguns títulos já confirmados:

Abraços Partidos, de Pedro Almodóvar
Aconteceu em Woodstock, de Ang Lee
Barba Azul, de Catherine Breillat
Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino
Brilho de Uma Paixão, de Jane Campion
Che 2 - A Guerrilha, de Steven Soderbergh
Coco antes de Chanel, de Anne Fontaine
Desinformante!, O, de Steven Soderbergh
Distante Nós Vamos, de Sam Mendes
Doce Perfume, de Andrzej Wajda
Doutrina de Choque, A, de Michael Winterbottom e Mat Whitecross
Julie & Julia, de Nora Ephron
Maradona, de Emir Kusturica
Nova York, Eu Te Amo, diretores diversos
Praias de Agnes, As, de Agnès Varda
Próxima Estação, A, de Fernando Solanas
Ricky, de François Ozon
Sede de Sangue, de Park Chan-Wook
Segredo dos Seus Olhos, O, de Juan José Campanella
Singularidades de uma Rapariga Loura,de Manoel de Oliveira
White Ribbon, The, de Michael Haneke

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Falando Grego


Há sete anos a comediante canadense de origem grega Nia Vardalos tirou a sorte grande quando a atriz e produtora Rita Wilson – também conhecida como sra. Tom Hanks – se encantou com um monólogo que ela apresentava no teatro. Rita e Tom resolveram produzir a versão para a telona e foi assim que um investimento modesto para os padrões hollywoodianos (US$ 5 milhões) se transformou em um dos maiores sucessos de bilheteria daquele ano: Casamento Grego. O filme não trazia absolutamente nenhuma surpresa, mas era boa diversão e revelou o talento de Nia para o mundo.

Mas o que foi feito de Nia Vardalos depois disso? A atriz sumiu das telonas por anos a fio e eis que, de repente, aparece com dois filmes fracos em um mesmo ano. Primeiro foi Eu Odeio o Dia dos Namorados e agora este Falando Grego, que tenta desesperadamente recriar a fórmula que deu tão certo em Casamento Grego e aqui parece estranhamente requentada. Isso sem falar no cartaz, que pega carona no de Mamma Mia.

Nia é Geórgia, uma americana de origem grega (oh, que surpresa) que trabalha como guia de turismo na Grécia e odeia seu trabalho. Formada em História, se irrita com o fato dos turistas estarem mais interessados em comprar bugigangas do que em conhecer a milenar história grega. Sempre avaliada pelos clientes como mediana, Geórgia recebe sempre os grupos mais problemáticos, é mandada para hotéis baratos, fica com o ônibus mais velho.

Quando Richard Dreyfuss entra em cena como integrante de um grupo de turistas, não precisa ser telepata para adivinhar que aquela excursão está destinada a mudar os conceitos de Geórgia sobre uma série de coisas. Assim como sua relutância em trabalhar com o motorista esquisitão significa claramente que deve ter um grego interessantíssimo escondido debaixo daquele visual “capitão caverna”. Some-se a isso uma fauna de turistas bizarros (não tem uma única pessoa normal no ônibus) e está armado o mais óbvio dos roteiros. E como é cansativo um filme que trata os mais batidos clichês como grandes surpresas. Ao contrário de Casamento Grego, que era um filme sem reviravoltas e não escondia isso, Falando Grego aposta em descobertas pseudo-edificantes que são evidentes para qualquer um menos para Geórgia.


Nia Vardalos, que esbanjava simpatia no filme que a tornou famosa, não consegue manter o carisma quando incorpora uma personagem resmungona e antipática. Geórgia não cria nenhuma identificação perante o público; pelo contrário, inspira indiferença desde o começo e o espectador entende perfeitamente que sua chefe esteja louca para se livrar de uma funcionária como ela. Sem contar sua insistência em posar de mulher bonita, coisa que ela não é pelos padrões gerais. Se em Casamento Grego sua simplicidade e timidez a deixavam mais bela do que é, neste filme é justamente a pretensão que a torna mais feia - a piadinha sobre a Angelina Jolie seria trágica se não fosse cômica.

Para não dizer que o filme é uma perda de tempo completa, salvam-se as locações maravilhosas na Grécia. Podemos ver o Templo de Apolo, o Oráculo de Delfos, uma praia grega, o centro de Atenas, tudo isso acompanhado de explicações sobre o local. É o que resta de positivo: esquecer as reclamações de Geórgia e curtir a viagem. Estreia nesta sexta.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Longas nacionais no Festival do Rio


A organização do Festival do Rio, que este ano acontece de 24 de setembro a 8 de outubro, acaba de divulgar a lista de filmes nacionais selecionados. Na categoria ficção, onze filmes concorrem ao Troféu Redentor e mais três são exibidos como hors concours. Dentre os documentários, são sete concorrentes e dois hors concours. Um competidor que promete levantar altas polêmicas é o novo longa de Aluizio Abranches, Do Começo ao Fim, que mostra uma paixão incestuosa entre dois irmãos. Também são bastante aguardados os novos trabalhos de Beto Brant, Sergio Bianchi e Karim Ainouz.

Confiram a lista completa:

Filmes de Ficção – Competição
Bellini e o Demônio, de Marcelo Galvão
Cabeça a Prêmio, de Marco Ricca
Do Começo ao Fim, de Aluizio Abranches
Histórias de Amor Duram Apenas 90 Minutos, de Paulo Halm
Hotel Atlântico, de Suzana Amaral
Natimorto, de Paulo Machline
O Amor Segundo B. Schianberg, de Beto Brant
Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir Filho
Os Inquilinos, de Sergio Bianchi
Sonhos Roubados, de Sandra Werneck
Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, de Karim Ainouz e Marcelo Gomes

Hors Concours - Ficção
Antes Que O Mundo Acabe, de Ana Luiza Azevedo
Insolação, de Daniela Thomas e Felipe Hirsch
Olhos Azuis, De José Joffily

Documentário - Competição
À Margem do Lixo, de Evaldo Mocarzel
Belair, de Noa Bressane e Bruno Safadi
Dzi Croquettes, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez
Reidy, A Construção da Utopia, de Ana Maria Magalhães
Sequestro, de Wolney Atalla
Tamboro, de Sergio Bernardes
Penas Alternativas, de Lucas Margutti e João Valle

Hors Concours - Documentário
Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski
Alô, Alô Therezinha, de Nelson Hoineff