segunda-feira, 31 de março de 2008

Sem Reservas


O cinema americano sempre adorou refilmagens. Alguns dos produtos mais célebres que Hollywood produziu tiveram até três versões diferentes, como é o caso de Duas Vidas (posteriormente, Tarde Demais para Esquecer e Love Affair – Segredos do Coração) e Ana e o Rei do Sião (depois, O Rei e Eu e Anna e o Rei). Mas a eterna febre por remakes vem ganhando uma feição inusitada nos últimos anos: agora os americanos andam se especializando em refazer filmes europeus lançados pouquíssimos anos antes. Ou seja: pegam um filme independente que fez sucesso no circuitinho dos cinemas de arte, mas não atingiu o grande público, e fazem um clone americano. Geralmente, igualzinho ao original. Aliás, isso tem acontecido não apenas com filmes europeus. O excelente longa argentino Nove Rainhas (2000) foi transmutado sem a menor cerimônia no fraquinho Criminal apenas quatro anos depois. Considerando essa preguiça intelectual, foi com uma certa má-vontade que fui assistir a Sem Reservas, primo ianque do alemão Simplesmente Martha (2001). Mas não é que dessa vez a receita não desandou?

A protagonista dessa nova versão é Kate Armstrong, a talentosa e estressada chef de um dos melhores restaurantes de Nova Iorque. Enquanto a carreira vai de vento em popa, a vida pessoal é inexistente. Seu temperamento obsessivo e controlador entra em choque quando o animado subchef Nick invade sua cozinha e logo conquista todos com seu jeito empolgado e descontraído. Ao mesmo tempo, Kate tem que lidar com a inesperada responsabilidade de criar Zoe, sua sobrinha de 9 anos.

A história é praticamente gêmea à do longa alemão, com direito inclusive a seqüências idênticas. Mas, de alguma forma, Sem Reservas consegue ser um filme mais simpático do que seu inspirador. Certamente isso se deve ao muito bem escolhido elenco. Aaron Eckhart (o canalha charmoso de Obrigado por Fumar) é infinitamente mais carismático e também melhor ator do que Sergio Castellito. Outro ponto negativo de Simplesmente Martha era a sem-gracice da menininha alemã, aqui substituída pela fofíssima Abigail Breslin – indicada ao Oscar do ano passado por Pequena Miss Sunshine. Até mesmo Catherine Zeta-Jones, que não é uma atriz que se pode chamar de "simpática", consegue criar identificação com a mulher moderna, consumida pela vida profissional, ao se mostrar levemente desarrumada e sem o seu habitual ar de grande dama na maioria das cenas. Sem contar que seu característico jeito mal-humorado casa perfeitamente com a personagem.

A única coisa que se perdeu na transferência de cenário foi a piada do choque de culturas. No filme original, o personagem de Castellito atraía tanta atenção pelo fato de ser um escandaloso italiano no meio de contidos alemães. Mas a verdade é que isso não fez tanta falta no resultado final. O roteiro de Sem Reservas também foi sábio ao extirpar a subtrama envolvendo o pai da sobrinha da protagonista, já que esse desvio, além de desnecessário, conferia uma certa pieguice ao filme.

O diretor Scott Hicks, que é mais conhecido pelo conturbado Shine - Brilhante (1996), mostra aqui que sabe filmar com leveza também. E essa é a melhor palavra para definir o filme: leveza. Uma comédia romântica de receita bem parecida com tantas outras, mas que acaba agradando ao paladar por possuir os ingredientes certos. Recomenda-se consumir. Sem reservas.

Sangue no Pescoço do Gato


A Escola de Teatro Leonardo Alves (ETLA), no Catete, vem apresentando espetáculos de formatura que conquistam o público pela originalidade e ousadia. A peça atual é Sangue no Pescoço do Gato, um texto do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder. Phoebe, um espírito, é enviada à Terra com a difícil missão de compreender a condição humana. Embora ela tenha aprendido as palavras, não entende o significado das mesmas. Uma vez em meio à diversidade de tipos e personalidades que compõem a espécie humana, Phoebe observa as pessoas e tenta aprender os sentimentos humanos através delas. Mas como um espírito inocente absorveria nossas contradições e incoerências?

Já os tipos "humanos" são arquétipos, máscaras que muitas pessoas usam para definir os outros ou até mesmo a si próprias. O policial tem uma exagerada masculinidade; o açougueiro visa o dinheiro para disfarçar as carências; o gigolô satisfaz os outros, mas só pensa em si próprio; as amantes entregam o corpo, mas não o coração; o soldado precisa de ordem e comandos para que sua vida tenha sentido; a mocinha não sabe exatamente o que fazer com a mulher que começa a surgir; o professor sabe tudo de literatura e nada de inteligência emocional; a modelo acha que sua vida só terá sentido enquanto for bela; e a viúva do soldado se acostumou demais a ser a esposa de alguém.

A direção é de Marcio Moreira que, além de professor de interpretação da escola, foi um dos criadores do espetáculo Expectantes, sucesso da Fundição Progresso no ano passado. A concepção da peça é pop, moderna. Logo de início, chama atenção o uso de um telão que alterna imagens dos personagens propriamente ditos – mostrando uma espécie de lado oculto de cada um – com outras dos atores se preparando, além de um pout-pourri de imagens da mídia que vão desde Osama Bin Laden a Hebe Camargo, passando por trechos do Hamlet de Laurence Olivier. Ou seja: aquela salada ali é o mundo, com tudo de bom e ruim que nele existe. É. Phoebe está em apuros, coitada.

O elenco demonstra uma segurança que nem sempre é comum em espetáculos de formatura e encara com coragem e atitude profissional as dificuldades de um texto fragmentado e provocador. Figura central do elenco no papel de Phoebe, a irretocável Lanna Jacomo chama atenção por sua incrível expressão corporal e facial. A atriz inclusive fica boa parte da peça sem falar e, mesmo assim, consegue ter a platéia na palma da mão. Muito bem estudado o modo como a personagem começa a peça meio "dura" – estilo bonequinho playmobil – e, conforme observa as pessoas, vai ganhando contornos mais maleáveis. O elenco é afinado em geral, com destaque especial para o desprendimento de Rafhael Garcez (que faz um strip-tease que anda dando o que falar), a energia de Marcelo José, a presença cênica de Silvana Medeiros e a veia cômica de Marcel Cavalcante.

O espetáculo tem mais uma apresentação neste sábado, dia 5, às 20h, com entrada franca. Mas essa não é a última chance de assistir à peça. Em breve haverá uma temporada na Fundição Progresso, em datas a serem definidas ainda. A ETLA fica na Rua Corrêa Dutra, 99, sobreloja.

Sangue no Pescoço do Gato, de Rainer Werner Fassbinder. Direção: Marcio Moreira, com assistência de Yuri Calandrino e Raphael Pinta. Trilha sonora: Katia Jorgensen. Produção: ETLA. Elenco: Esthevan Poubel, Karine Coelho, Lanna Jacomo, Luana Duccini, Lucas Abbondati, Marcel Cavalcante, Marcelo José, Marcia Borges, Rafhael Garcez, Roberta Moreira e Silvana Medeiros. 90 minutos.

Elizabeth – A Era de Ouro


Eu me lembro bem da primeira vez que vi Cate Blanchett na tela. Foi em 1998, ao assistir a Elizabeth. Na época, fiquei igualmente impressionada com o talento e o que me pareceu uma incrível feiúra da atriz. Mas bastou que Cate aparecesse belíssima nas premiações para mostrar que a feiúra não passava de um excelente trabalho de caracterização. Ficou apenas o assombro com seu talento dramático que, aliás, continua me encantando até hoje. Sobre o primeiro Elizabeth, era um bom filme, ainda que Cate e sua hipnótica presença sempre tenham sido maiores que ele. Nove anos e um Oscar depois (por O Aviador), a atriz volta a encarnar a mítica rainha inglesa em Elizabeth – A Era de Ouro.

Esta segunda parte da trilogia que o diretor Shekhar Kapur pretende realizar enfoca o período intermediário do longo reinado da chamada "Rainha Virgem". O ano é 1585 e Elizabeth está há quase três décadas no trono quando atrai a ira e ganância do poderoso rei espanhol Felipe II. Católico fanático e devoto dos terrores da Inquisição, Felipe anseia por conquistar a Inglaterra, destronar a protestante Elizabeth e colocar em seu lugar a católica Mary Stuart, rainha da Escócia - além de prima e prisioneira de Elizabeth.

Enquanto se concentra no lado histórico e das intrigas palacianas, Elizabeth até consegue ser um filme interessante. Não apenas por mostrar os meandros do jogo político e da alta traição, mas também pelo modo como a rainha e seu conselheiro, Sir Francis Walsingham, realizam uma espécie de marketing político e torcem a seu favor o fato dela nunca ter se casado nem gerado um herdeiro, habilmente transformando a (suposta) castidade em santidade e dando-lhe uma aura divina.

O grande problema é quando, a certa altura, o filme centra seu poder de fogo no triângulo amoroso formado pelo aventureiro Sir Walter Raleigh, Elizabeth e sua dama de companhia preferida (aliás, o início do filme parece sugerir uma atração entre as duas que não se concretiza). Aí o filme vira novelão mesmo, com direito a ceninhas de ciúme e diálogos inacreditáveis. Nesta segunda metade, a fragilidade do roteiro ajuda a evidenciar ainda mais certos exageros que já estavam ocorrendo, como cenas alongadas muito além do necessário ou seqüências inteiras que nada acrescentam à trama e que parecem ter sido rodadas apenas para exibir a bela fotografia. Sem contar a irritante trilha sonora grandiloqüente, com direito até a violinos sublinhando a morte de um personagem.

Um bom exemplo dessa gratuidade visual está na cena em que Elizabeth aparece à frente de seu exército usando peruca de guerra. Eu explico: ao longo do filme vemos que ela tem cabelos quase tosados (e piolhos) e usa aquelas perucas elaboradas para aparecer na corte. OK. Normal. Mas, mesmo frisando bem este detalhe em inúmeras cenas, quando ela surge à frente do exército está usando armadura e longuíssimos cabelos ruivos ao vento. Por que alguém se vestiria para a guerra de armadura e peruca? Certamente a hair stylist argumentaria que a rainha queria se mostrar bela para os soldados, mas tal desvario só faz o espectador lembrar das rainhas de bateria.

Esse artificialismo pontua todo o filme, mas tudo fica mais incômodo à medida que a trama avança e vai deixando pontas soltas em vários aspectos importantes do lado histórico para se concentrar nos delírios estéticos. Vários assuntos explorados antes perdem importância subitamente, como a revolta interna dos católicos ingleses. Os revoltosos simplesmente desistiram diante da queda de Mary Stuart? Sem contar a batalha no mar, que parece se resolver sem muito esforço. O que não combina muito com uma cena anterior que mostra o poderio esmagador da armada espanhola. Mas, em vez de amarrar esses nós, o diretor prefere anestesiar o espectador com tomadas estonteantes, em que Elizabeth é vista por ângulos privilegiados e iluminada como se fosse o próprio astro-rei.

Claro que Cate Blanchett está, mais uma vez, muito bem no papel. Mas até mesmo esse ponto positivo parece levar esta seqüência a um patamar inferior ao do primeiro filme, já que é uma continuação do mesmo papel e, portanto, a ótima interpretação de Cate como Elizabeth não chega a ser uma novidade.

Elizabeth – A Era de Ouro é como um falso brilhante: belo e fascinante à primeira vista, mas não resiste a um exame mais cuidadoso.

O Sobrevivente



Filmes sobre a guerra do Vietnã têm sido feitos aos montes, inúmeros diretores já deram sua visão: Francis Ford Coppola no definitivo Apocalypse Now, Stanley Kubrick em Nascido para Matar e Oliver Stone em Platoon são apenas os mais conceituados deles. O alemão Werner Herzog tenta uma ótica diferente, ao narrar a saga de um compatriota a serviço do Tio Sam. O Sobrevivente, recém-chegado às locadoras, é baseado no documentário Little Dieter Needs to Fly, dirigido em 1997 pelo próprio Herzog, e conta a história verídica do piloto Dieter Dengler, que serviu a marinha americana durante a Guerra do Vietnã e foi capturado como prisioneiro de guerra quando seu avião foi alvejado durante uma missão secreta no Laos. Torturado e sem esperanças de ser resgatado, Dengler arrisca tudo ao liderar os prisioneiros, americanos e vietnamitas, num desesperado plano de fuga.

Em primeiro lugar, há que se aplaudir Werner Herzog por ter realizado esse filme com um orçamento de apenas US$ 10 milhões. Sem dúvida que é uma produção realizada com muita competência, porém com pouca emoção. O protagonista é tão seguro de si o tempo todo que o espectador não consegue se solidarizar com suas privações. Ele é excessivamente eficiente, sempre sabendo como agir e qual o próximo passo a tomar. E é preciso ressaltar que Dieter Dengler era um piloto inexperiente em sua primeira missão. Por mais durão que fosse seu temperamento germânico, espera-se ver ao menos um pouco de desespero num homem que se vê prisioneiro de guerra no meio da selva. Mas não. A impressão que o espectador tem, desde o princípio, é que nada acontecerá àquele homem. Sem contar que o fato do filme se chamar em português O Sobrevivente - assim, no singular - já deixa bem claro não apenas seu triunfo como também o fracasso alheio. Mas isso não chegaria a ser um problema. Existem ótimos filmes dos quais já se sabe o desfecho, ainda mais quando inspirados em histórias reais. O pior é a frieza com que tudo é conduzido, como se Dieter estivesse jogando num reality show e não lutando pela vida.

Felizmente, Christian Bale é um ator extremamente habilidoso e não permite que seu personagem vire um Rambo do século XXI. Também é uma boa surpresa ver o eterno engraçadinho Steve Zahn em seu primeiro papel realmente dramático. O ator emagreceu nada menos que 18 quilos para interpretar um prisioneiro à beira da loucura e apresenta um trabalho de primeira linha.

Outro aspecto que incomoda é o ufanismo fanático de Dengler, expresso em declarações cafonas como "Eu amo a América porque a América me dá asas". OK. A frase, aparentemente, é do próprio. Mas é bom lembrar que O Sobrevivente é o primeiro filme de Werner Herzog escrito em inglês e com elenco hollywoodiano; ou seja, seu primeiro longa genuinamente americano. No material distribuído à imprensa, Herzog declara: "Dieter Dengler personificou tudo o que eu amo na América: coragem, perseverança, otimismo, autoconfiança, espírito livre, lealdade e alegria de viver". Não sei não, mas essa súbita paixão do cineasta pelos States me deixa meio desconfiada. Para piorar, o longa tem pelo menos dez minutos além do que deveria. E esses minutos finais não têm outra função senão glorificar a marinha americana. É um pouco decepcionante ver um filme tão arrumadinho vindo de um diretor que tem como trabalho anterior o impactante documentário O Homem-Urso. Mas tudo bem. Cineastas também têm contas a pagar.

domingo, 30 de março de 2008

Hairspray em DVD


Boa nova no mercado de DVD: acaba de chegar às prateleiras das locadoras Hairspray, um dos filmes mais injustiçados nas premiações deste ano. Não bastasse ter saído do Globo de Ouro de mãos abanando, o excelente musical não obteve uma indicação sequer ao Oscar. Mas, felizmente, sua repercussão junto ao público foi mais calorosa. Por aqui, foi o filme mais visto no último Festival do Rio (2306 espectadores) e depois disso fez bela carreira nas telonas.

Confesso que, apesar de gostar muito de musicais, duas coisas me deixavam de pé atrás. Em primeiro lugar, essa mania de remakes (Hairspray, além de ser adaptação de um musical da Broadway, é refilmagem de um longa de John Waters de 1988); em segundo, a caracterização de John Travolta como Edna Turnblad me lembrou Eddie Murphy em O Professor Aloprado (outra refilmagem tosca) e eu temi que Hairspray, por conta disso, se convertesse em um filme mais sobre látex do que sobre laquê.

Para minha surpresa e divertimento, nenhum de meus temores se confirmou. Hairspray é uma explosão de alegria como raramente se vê nos musicais modernos. Seguindo a cartilha de clássicos como Grease (com o qual tem várias semelhanças além da presença de Travolta) e com uma trilha sonora empolgante, o filme é um verdadeiro antídoto para mau humor. A caracterização de Travolta causa choque à primeira vista, mas o curioso é que ao longo do filme nos esquecemos completamente de que é um homem que está por trás daquelas camadas e mais camadas de látex. Especialmente na seqüência em que a doce Edna canta em dueto com o aparvalhado marido (interpretado com surpreendente meiguice por Christopher Walken).

Hairspray é ambientado na Baltimore de 1962 e tem como pano de fundo um país que engatinhava lentamente na integração racial. Ainda havia cordas separando negros de brancos em ocasiões festivas e o programa televisivo de dança tinha um "dia do negro" - fazendo disso uma espécie de escandalosa concessão. Mas o longa não é panfletário e toca nas questões sociais com leveza e bom humor. Um exemplo é quando a protagonista Tracy (também ela discriminada pelo excesso de peso) tenta socializar com a galera excluída do colégio e diz que adora "o dia do negro", ao que o rapaz negro responde "lá em casa é todo dia".

Outro ponto alto do filme é o fato de todos os atores cantarem com suas próprias vozes. De John Travolta e Queen Latifah isso até já era de se esperar, mas todo o elenco solta a voz pra valer. A estreante Nikki Blonsky, com seu carisma e afinação, é um verdadeiro achado. Ao vê-la cantando e dançando a bonitinha Good Morning Baltimore na seqüência de abertura, o espectador já pode sentir que vai assistir a um ótimo filme. Outra boa surpresa é o geralmente apático James Marsden (o ciclope da trilogia X-Men) e sua convincente performance como o moderninho apresentador Corny Collins. Aliás, o ator vem melhorando desde então. Sua participação em Encantada também é bastante interessante.

Parafraseando o que disse um colega sobre Pequena Miss Sunshine, Hairspray é terapia antidepressiva. Não tem como não se sentir feliz depois de assisti-lo. Para aqueles que quiserem continuar o tratamento em casa, recomendo a igualmente empolgante trilha sonora original.

sábado, 29 de março de 2008

Juno


Juno é uma história sensível e engraçada sobre crescimento pessoal e relacionamento amoroso. Juno McGuff é uma adolescente inteligente e cheia de opiniões que um belo dia comete o mais velho dos erros: transa sem proteção com o melhor amigo e engravida. A partir desse argumento simples, o filme acompanha as decisões e descobertas de Juno, que vão muito além do fato de ter ou não um bebê.

Um filme que encanta pela leveza e comove pela simplicidade com que trata do assunto, nunca derrapando no sentimentalismo barato. Assim como a própria protagonista, uma menina espirituosa com quem é muito difícil não simpatizar. Juno tem sempre um questionamento interessante sobre a vida e sobre seus próprios problemas. O que não quer dizer que ela seja um desses personagens irritantes que julgam saber tudo. Pelo contrário, ela faz altas burradas e leva quase o filme inteiro para perceber coisas que o espectador vê logo de cara. Mas a vida é assim: quem está de fora sempre vê com mais clareza do quem vivencia a situação. E o mais gostoso no filme é que todo esse processo de amadurecimento e descobertas é mostrado com naturalidade. Nesse aspecto, é preciso destacar a competência dos diálogos. Um exemplo é quando Juno chega em casa depois de presenciar um barraco entre um casal mais velho e o pai pergunta onde ela esteve, ao que ela responde, confusa: "Lidando com coisas muito acima da minha maturidade". Esse é o tom do filme. Uma espécie de Woody Allen para adolescentes.

O diretor Jason Reitman vem trilhando um caminho pra lá de interessante. Depois do ótimo Obrigado por Fumar, demonstra versatilidade neste novo trabalho. Embora sejam filmes de propostas e temáticas totalmente diferentes, pode-se notar que ambos se destacam pela visão crítica e alta qualidade do roteiro. Reitman está tão seguro do que faz que, a certa altura, até induz o espectador a temer um desfecho piegas e convencional. Mas tudo não passa de mais uma provocação.

Juno já lucrou nos Estados Unidos dez vezes o seu orçamento, além de ter abiscoitado quatro belas indicações ao Oscar: melhor filme, atriz, direção e roteiro original. Ellen Page, que ficou conhecida como a adolescente vingativa de Menina Má.com, domina bem todas as nuances do papel e fez por merecer o reconhecimento à sua interpretação, assim como também foram justas as três outras indicações. O filme acabou levando a cobiçada estatueta de melhor roteiro original; de quebra, o visual exótico da roteirista Diablo Cody se revelou o ponto alto de uma festa que até então estava o maior marasmo.

Nelson Rodrigues e a Falecida


Nelson Rodrigues iniciou a carreira como repórter de polícia aos treze anos no jornal de seu pai e, já naquela época, assombrava os colegas mais velhos por sua capacidade de dramatizar pequenos acontecimentos. Sua migração para o teatro ocorreu muito tempo depois, quase por acaso. Nelson havia acabado de se casar e sua esposa, Elza, estava grávida. O dinheiro estava escasso e um dia, ao passar em frente ao Teatro Rival, ele viu uma enorme fila que se formava para assistir a uma peça e pensou: "por que não escrever teatro?". Escreveu. Em 1941, estreou A Mulher sem Pecado, que ficou em cartaz duas semanas e não teve nenhuma repercussão. Mas o novo ofício o animou e, dois anos depois, surge sua segunda peça, que é justamente a revolucionária Vestido de Noiva. Podemos dizer que a dramaturgia nacional divide-se entre "antes" e "depois" de Vestido de Noiva. Sua estrutura, que se desenvolve em três planos narrativos simultâneos – realidade, delírio e memória – é, até hoje, considerada inovadora.

Até sua morte, em 1980, Nelson escreveu um total de dezessete peças. Está em cartaz atualmente no Rio A Falecida, curioso exemplar de humor negro qualificado pelo autor como "tragédia carioca". Escrita em 1953, transgredia as regras do teatro da época ao narrar, em linguagem coloquialíssima, uma história suburbana com direito a papos sobre futebol e sinuca. A protagonista é Zulmira, uma dona-de-casa que começa a ficar cismada com a idéia de que está à beira da morte e obcecada com o desejo de ter um enterro de gente rica. Como se pudesse, em morte, compensar uma vida inteira de insatisfação.

A excelente montagem do talentoso João Fonseca é dinâmica, engraçada e utiliza de forma criativa algumas cadeiras como principal cenário. Aliás, isso não é surpresa para quem acompanha a carreira de João. Ele já havia feito algo similar com o universo rodrigueano em Escravas do Amor (baseado no folhetim de Suzana Flag) e até mesmo com um clássico grego em Édipo Unplugged. Em A Falecida, as cadeiras se transformam em objetos específicos como um caixão e o público realmente "enxerga" um caixão.

No papel-título, Rafaela Amado (filha de Camilla Amado, que também está no elenco) cria uma Zulmira tragicômica e determinada. Ensandecida por seus delírios de grandeza post-mortem, Zulmira é um personagem mais difícil do que aparenta justamente por estar numa fronteira muito indefinida. Bem coadjuvada por Guilherme Piva como Tuninho – o marido que só quer saber de futebol e sinuca –, Rafaela dá conta de todas as nuances dessa mulher triste e, ao mesmo tempo, histérica. Impagável a cena em que uma vizinha pergunta se ela está com gripe e a doida responde, exultante: "Não, é pulmão!".

A Falecida está em cartaz de quinta a domingo no Centro Cultural da Justiça Federal (Avenida Rio Branco, 241) até 27 de abril. Ingressos a R$ 20,00.

Onde os Fracos Não Têm Vez


Muitos dizem que o western está estéril de novidades, mas, independente do que se diz dele, o gênero está sempre renascendo das cinzas. Pode até agonizar às vezes, mas morto? Jamais. Onde os Fracos Não Têm Vez é o novo exemplar a beber nessa fonte inesgotável. Baseado no romance de Cormac McCarthy publicado em 2005, o filme não se limita a seguir uma fórmula e traz novo vigor para o estilo ao transpor todos os elementos do western clássico para os anos 80 e ambientar a história na conturbada região de fronteira do Texas com o México.

Llewelyn Moss é um sujeito pouco esperto e é justamente sua estupidez que torna possível toda a trama do filme. Durante uma caçada, Moss encontra o cenário de uma chacina no deserto: carros parados, seus ocupantes mortos, drogas num porta-malas e uma mala contendo dois milhões de dólares noutro. Mesmo sabendo a extensão do perigo em que está metendo não apenas a si próprio mas também sua esposa, Moss não resiste e pega o dinheiro. Logo, tem em seu encalço o determinado Anton Chigurh. Mais do que um assassino de aluguel irredutível, Chigurh é um psicopata, uma verdadeira máquina de matar que só vai parar quando recuperar o dinheiro e eliminar Llewelyn. Entre caça e caçador, o xerife Ed Tom Bell busca um meio de evitar o derramamento de sangue que se anuncia.

Embora guarde semelhanças estilísticas com outros filmes dos irmãos Coen (especialmente Fargo e E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?), trata-se de um trabalho bem mais maduro. Os Coen dosam com maestria suas características habituais - como banhos de sangue, humor negro e anarquia - com um lado mais filosófico que não é muito freqüente no estilo da dupla.

Além da direção cheia de som e fúria, também não se pode deixar de destacar o excepcional trabalho do elenco. Principalmente de Javier Bardem, perfeito do primeiro ao último fotograma. Seu assassino frio e controlado, mas não por isso menos sanguinário, é uma espécie de exterminador do futuro de carne e osso. Um trabalho de construção de personagem perfeito, irretocável. Josh Brolin, que também pode ser visto atualmente como um tira corrupto em O Gângster, dá credibilidade a um personagem cuja burrice poderia parecer inverossímil se fosse interpretado de modo pouco convincente. E Tommy Lee Jones cumpre bem a dura tarefa de interpretar o homem da lei e também o vértice mais cansado e frágil desse triângulo de vontades. Seu personagem representa o trabalho duro, a ética, a honestidade, ou seja, o ultrapassado naquela terra de loucos e ambiciosos. Seria essencialmente ele - ou homens como ele - a quem o título se refere.

Mas o mérito maior de Onde os Fracos Não Têm Vez está em seu espertíssimo roteiro e no modo inesperado como tudo acontece. Quando o espectador acha que já sabe para onde a trama vai caminhar, é atropelado por novos acontecimentos e levado por outros caminhos. E essa originalidade, associada a um gênero tradicional como o western, é que torna o longa tão vigoroso. Ao assisti-lo, ficamos tão incertos do destino dos personagens quanto eles próprios. E que personagens! Moss poderia ser o mocinho, mas é obtuso demais para que não se pense um desdenhoso "bem-feito!" cada vez que uma porta se fecha para ele. O assassino freak de Bardem é um vilão acima de qualquer tentativa de empatia. Já o xerife Bell é o único honesto no meio daquilo tudo, mas é tão chato com suas intermináveis histórias sobre o passado que tampouco podemos considerá-lo um herói. E o genial é que, mesmo colocando em cena personagens com os quais não conseguimos nos solidarizar, os Coen fazem o milagre de nos deixar com os olhos esbugalhados e grudados da tela por duas horas.

Meu Nome Não é Johnny


João Guilherme Estrella era um jovem de classe média alta como tantos outros. Inteligente, carismático e rebelde, tinha características de liderança e pouco respeito pelas convenções. Poderia ter sido um astro do rock, mas acabou tornando-se um criminoso. Meu Nome Não é Johnny é a versão para o cinema da biografia homônima do rapaz de boa família que entre os anos 80 e 90 tornou-se o maior traficante de drogas do Rio de Janeiro - mesmo sem nunca ter pisado numa favela.

Mal saído da adolescência, João tornou-se usuário constante de drogas e logo passou a fornecedor preferencial da juventude dourada da zona sul. O negócio prosperou a ponto dele realizar, junto com sua namorada Sofia, uma arriscada entrega na Europa. Preso em 1995, após ser denunciado por um desafeto, teve que encarar o banco dos réus e o submundo do sistema carcerário brasileiro.

Antes de mais nada, o filme chama a atenção pela abordagem escolhida. Meu Nome Não é Johnny fez a ousada opção de falar de tráfico de drogas com leveza e bom humor. Decisão certa, já que João Estrella notabilizou-se mais como bon-vivant do que propriamente como um bandido; pelo contrário, João (ou Johnny) personifica o cara de quem qualquer um gostaria de ser amigo. Nos anos 80, a chamada década do desbunde, ainda era possível haver uma figura assim, que se embrenhou na criminalidade meio por acaso, levado pelas circunstâncias e também pelo fato dos pais sempre terem deixado ele fazer o que bem entendia. Johhny não queria construir um império das drogas, apenas viver em alto estilo sem precisar trabalhar. Isso fica bem claro no diálogo em que seu contato europeu diz que está próximo de sua meta de juntar um milhão de dólares e João responde: "já a minha meta é torrar um milhão de dólares". Tanto que, uma vez realizado o serviço, ele simplesmente convida a namorada para gastar tudo pela Europa.

Podemos dizer que a estrutura do filme segue o olhar hedonista que João tinha da vida, como se traficar cocaína fosse apenas uma grande aventura. Aliás, há um ótimo diálogo em que um amigo o adverte que seu negócio "não é como vender pulseirinha de crochê em centro acadêmico". E essa irreverência, mesmo para falar de temas pesados, é o grande diferencial para evitar que o longa seja somente mais um filme de ação. Como conseqüência, também existe uma preocupação em não apostar em cenas de impacto. O que não quer dizer que a história toda seja uma grande festa. Os conflitos do personagem estão bem presentes, mas de um modo ilustrativo. É muito curioso ver um filme assim, ainda mais pelo fato de ter estreado apenas três meses depois do visceral Tropa de Elite. E essa diferença de estilos prova que há muitas maneiras de contar uma história, sem que uma escolha seja necessariamente melhor do que a outra.

Mas o longa também tem sua porção barra-pesada, embora em doses homeopáticas. Tanta inconseqüência não pode perdurar e a festa eterna de Johnny acaba abruptamente quando ele é preso. Do presídio onde aguardou julgamento ao manicômio judiciário onde esteve recluso por dois anos, esse período terrível talvez tenha sido a primeira oportunidade real dele refletir. O cara inquieto por natureza é obrigado a ficar estático.

Outro evidente acerto do filme é ter Selton Mello como protagonista. Elogiar o talento do ator chega a ser redundante, já que em todos os seus papéis ele tem domínio absoluto do que faz. Mas, mesmo considerando seu padrão de excelência normal, Selton consegue transcender em determinadas atuações, como no caso do recente O Cheiro do Ralo. Em Meu Nome Não é Johnny, fica claro que seria difícil outro ator que conseguisse reunir tão bem uma forte dramaticidade com o timing de comédia perfeito, ambos necessários para interpretar o charmoso e intenso personagem. Cleo Pires está bem como a inconseqüente Sofia (a cena em que ela joga tarô e enrola a velhinha é muito boa) e é uma boa surpresa ver que a direção não carregou demais na porção ninfeta da atriz. A relação dos dois é mostrada de forma realista, com cenas de intimidade sim mas sem que fique parecendo um clipe publicitário. Sobre o restante do elenco, dezenas de bons atores abrilhantam cada cena com participações muito bem escolhidas. Destaque para Cassia Kiss como a juíza rigorosa que se dispõe a acreditar na recuperação de João. A cena em que ele se explica no tribunal diante do olhar atento dela (que vai da dureza à piedade) é uma das mais belas do filme.

Meu Nome não é Johnny é um filme que vem para expor as feridas das classes mais privilegiadas. João Guilherme não era um excluído e isso o torna uma figura desafiadora dentro da hipocrisia social a que estamos acostumados, porque expõe a complexidade de um problema que costuma ser tratado como uma equação direta em que pobreza é igual a marginalidade quando, na verdade, a falta de estrutura pode atingir jovens de qualquer camada social. Esperemos que o longa ajude nesse diálogo e leve alguns pais a se perguntarem se realmente conhecem os próprios filhos.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Traídos pelo Destino



O diretor e roteirista Terry George ainda dá os primeiros passos em sua carreira. Apesar de ter estreado na direção em 1996 com o obscuro Mães em Luta, passou os oito anos seguintes na geladeira. Em seu currículo, apenas dois trabalhos para a TV. Mas em 2004 George mostrou a que veio com o exemplar Hotel Ruanda. Após capitanear algo dessa estatura, o cineasta geralmente se vê diante de um dilema: se, por um lado, portas se abrem para seus novos projetos, por outro também tem que atender altas expectativas. Um tropeço e pronto: está o sujeito tachado de iniciante que deu sorte - Sam Mendes é um que vive brigando com esse estigma desde Beleza Americana. Traídos pelo Destino, novo trabalho de Terry George, pende a balança mais para endossar do que para desqualificar sua carreira.

Apesar do título pouco criativo em português (impossível não confundir com o Traídos pelo Desejo de Neil Jordan), Reservation Road é um filme construído de forma bastante habilidosa e consegue mostrar sem julgamento os dois lados de uma mesma história. O professor universitário Ethan Learner está voltando com a família do recital do filho Josh, de 10 anos, quando pára em um posto de gasolina na tal Reservation Road. Lá, Josh salta do carro sem que os pais vejam e é vítima de um terrível acidente. O advogado Dwight Arno foi ao jogo do Red Sox com o filho de 11 anos e precisa levá-lo depressa para a casa da ex-mulher, que não pára de ligar para seu celular e fazer ameaças por terem se atrasado. A vida dessas duas famílias se cruza para sempre quando Dwight, num instante de distração, atropela Josh e foge em pânico. Uma investigação policial é instaurada e, conforme o cerco se fecha, fica a cada dia mais difícil para Dwight fazer a coisa certa, enquanto Ethan começa a ficar obcecado por idéias funestas de vingança.

O modo como a vida das duas famílias converge para a inevitável colisão é muito bem estruturado no roteiro, fazendo com que o espectador se solidarize com os motivos de cada um dos envolvidos. Dwight cometeu um erro que pode ser considerado imperdoável, mas tem como atenuante a pressão a que estava exposto: ameaçado pela ex-mulher de não ver o filho ao primeiro deslize, seu primeiro instinto é fugir do local do acidente. Mesmo porque ele mal vê o que atingiu e tem a reação – infeliz, porém humana – de não parar para conferir. Já Ethan, que começa a trama coberto de todas as razões do mundo, vai se afundando em ódios e ressentimentos à medida que percebe que talvez a polícia não encontre o homem que atropelou seu filho. É quando, numa reação também muito humana, começa a se isolar de todos e demonizar a pessoa por trás do volante, como se a vingança pudesse anestesiar a dor que o consome. E Joaquin Phoenix e Mark Ruffalo enriquecem ainda mais o conflito com suas interpretações na medida certa.

A única derrapada do filme acontece justamente em seu desfecho. Conforme a trama vai crescendo em tensão e algumas decisões sérias vão sendo tomadas (de forma premeditada, o que faz toda diferença), tudo leva a crer num final que acaba não acontecendo. Os manuais de roteiro pregam que o desfecho de um filme, seja qual for, tem que dar ao espectador a sensação de que aquele era o caminho inevitável. Claro que isso é uma regra que vive sendo quebrada toda hora e funciona em inúmeros filmes, mas neste caso o ensinamento faz sentido porque o final dá a impressão de que faltou uma "pegada" à altura do que vinha sendo mostrado. Não chega a desmerecer o bom filme mostrado até então, mas deixa no espectador uma sensação de anticlímax.

Noves fora, o saldo é positivo. Vale conferir.

Na Natureza Selvagem


"Eu fui à floresta porque queria viver intensamente e sugar toda a essência da vida, e arrancar de mim tudo que não fosse vida. Para mais tarde, ao morrer, não descobrir que não havia vivido."

A máxima acima de Henry David Thoreau, embora não tenha sido citada textualmente ao longo de Na Natureza Selvagem, é a idéia que norteia seu protagonista. Christopher McCandless acaba de se formar. É um rapaz inteligente. Sua família tem muita estabilidade financeira e nenhuma emocional. No dia de sua formatura, o pai lhe oferece um carro novo e dá indícios de que tem vergonha do seu carro velho. É a gota d’água para Chris botar um mochilão nas costas, abrir mão do dinheiro que tem no banco e sair por aí sem dar satisfações a ninguém numa radicalíssima viagem de autoconhecimento.

A história de Chris McCandless é tão maluca que só poderia ser real. O filme acompanha, mesclando habilmente passado e presente, os dois anos que duraram essa inacreditável aventura. Tendo como objetivo viver em total isolamento nas terras geladas do Alasca e passando por diversas situações ao longo do caminho, a jornada de Chris – que, a determinada altura, assume o hilário codinome Alex Supertramp – não pode ser classificada como o mero delírio de um garotão que se encheu da vida de bacana. Sua viagem tem algo de bastante filosófico, não se resume a uma fútil tentativa de aumentar a adrenalina. Ele quer se afastar de uma vida de mentiras, pois se incorporar ao chamado american way of life, para ele, significa aceitar o legado de seus pais. É também uma celebração ao espírito "easy rider" tão em voga no final da década de 60 e que hoje parece enterrado para sempre nos corações americanos.

Mais um belíssimo trabalho de direção de Sean Penn (outro que vale conferir, num estilo bem diferente, é A Promessa), Na Natureza Selvagem conquista o espectador sem que ele se dê conta. Talvez porque induza a uma curiosa sensação de estar junto com Chris e – quem sabe – também fazendo algumas descobertas sobre nós mesmos ao longo do caminho. E, por incrível que pareça, ver Emile Hirsch onipresente na tela por duas horas e vinte minutos não é a tortura que se poderia esperar. Tudo bem que sua atuação não chega a ser para indicação ao SAG, como ocorreu, mas o que ele demonstra neste filme é um upgrade e tanto para quem costuma fazer coisas como Show de Vizinha. Agora se a mudança é fruto de amadurecimento artístico ou aconteceu graças à boa direção de Sean Penn é algo que só saberemos nos próximos filmes do rapaz.

Outro ponto alto é a trilha sonora, totalmente em harmonia com as belas tomadas de uma porção ainda selvagem dos Estados Unidos e também como as citações que Chris faz de vários autores rebeldes - como Thoreau e Jack London - nos quais se inspira para suas ações e também para seus escritos. A única ressalva que faço à produção é o fato de sua longa duração não ser necessária, já que existem algumas seqüências que poderiam ter passado por uma edição mais rigorosa ou até mesmo ter sido suprimidas. Um exemplo disso é um trecho que prenuncia um romance que não chega a se concretizar e nada acrescenta ao contexto geral.

Foi previsto inicialmente que Na Natureza Selvagem estrearia somente em São Paulo (o que de fato aconteceu há algumas semanas), mas os distribuidores voltaram atrás e revolveram lançá-lo também no Rio. Ainda bem. Este é um daqueles casos em que a tela grande e o som estéreo fazem toda diferença.

A Culpa é do Fidel!


O filme é ambientado em 1970. Anna é uma menina parisiense de nove anos, que tem uma vida confortável e tranqüila. Até que seus pais viajam ao Chile, logo após a eleição de Salvador Allende, e retornam empolgados com idéias socialistas. Subitamente, a vida familiar muda por completo: reuniões políticas, mudança para um apartamento menor, visitas inesperadas de amigos estranhos, enfim, uma nova realidade que Anna não compreende e não deseja vivenciar.

Sabe a Mafalda, aquela garotinha dos quadrinhos que desespera os pais com suas perguntas indiscretas sobre política? Pois a gracinha Nina Kervel, com sua expressão enfezada, é a reprodução em carne e osso da garotinha argentina. E grande parte do mérito do divertido A Culpa é do Fidel pode ser creditado a essa pequena grande atriz. Mas não é só. A trama inteligente faz pensar sobre a viabilidade das utopias na vida diária. Através da mentalidade direta e franca de uma criança, que expõe o que pensa sem meias-palavras, o irônico roteiro evidencia o quanto as convicções e decisões dos chamados adultos podem ser motivadas por impulsos infantis. Os pais de Anna não são socialistas de coração, apenas estão buscando um sentido para suas existências e tentam se redimir de omissões passadas. E Anna não quer saber de palavras de ordem ou filosofia, ela só sabe que tinha uma boa vida que, de repente, lhe foi arrancada simplesmente porque seu pai teve uma tardia crise de consciência e mudou a vida de toda a família sem que ela ou seu irmão pudessem opinar. Divertido e filosófico.

O Signo da Cidade


A astróloga Teca tem um programa de rádio noturno chamado O Signo da Cidade. Todas as noites, ela tem que lidar com os problemas de vários ouvintes solitários e desesperançados que telefonam em busca de uma solução para seus problemas. Tanto na rádio como nas consultas particulares em sua casa, as pessoas acabam transformando Teca numa espécie de terapeuta e confidente. Até que um acontecimento envolvendo um de seus clientes a leva a questionar até que ponto o que ela diz realmente interfere na vida das pessoas.

Embora Teca seja a personagem de ligação entre as várias tramas paralelas de O Signo da Cidade, a verdadeira protagonista do filme é a cidade de São Paulo. Isso fica evidente pela fotografia, pelas tomadas que não tentam esconder o lado feio e duro da metrópole, mas, por outro lado, buscam extrair certa poesia do concreto. Seguindo o estilo de filme-mosaico celebrizado por Robert Altman, o longa traça um painel do caldeirão de misturas da grande cidade. Tem de tudo um pouco: a mulher que quer se dar bem, o casal em crise, o transformista que sonha com o estrelato, os jovens desajustados, pai e filha com anos de mágoas a superar, desejo reprimido, acidentes, bala perdida, segredos, injustiças, romances que superam barreiras, alguns desfechos felizes, outros nem tanto. Os personagens, de uma forma ou outra, têm alguma ligação com Teca, embora as tramas não necessariamente estejam interligadas.

Os diálogos são naturais, transmitem verdade e fluem bem. Mesmo quando parece que a história tem uma mudança brusca demais, logo a seguir vem um diálogo ou situação que justifica o ocorrido. Um exemplo é a personagem Julia: sua transformação parece súbita demais, mas acaba se justificando por algo que ela diz. O único senão do roteiro é que em algumas passagens tem-se a impressão de que o excesso de personagens impede um maior aprofundamento nas suas histórias – que são todas bastante intensas. Nesse ponto, a competência de Bruna Lombardi como roteirista acabou por criar um impasse: se, por um lado, construiu tipos que cativam nosso interesse, por outro acabou não tendo espaço para se deter um pouco mais em cada uma das boas tramas que criou. Destaque para o núcleo envolvendo o pai de Teca e sua mãe adotiva. Aliás, a bela cena entre Juca de Oliveira e a enfermeira que atende seu último pedido merece aplausos por fugir dos padrões pré-estabelecidos.

A direção de Carlos Alberto Riccelli surpreende pela maturidade e segurança. Percebe-se um olhar carinhoso pelos personagens, por mais problemáticos que sejam. E essa atmosfera acaba fazendo com que o espectador também simpatize bastante com o longa. Confesso que não sabia bem o que esperar desse empreendimento familiar (o filho do casal, a cara do pai, também interpreta um dos papéis), mas Riccelli e Bruna provaram que sabiam o que estavam fazendo. O resultado é um trabalho elegante e sensível.

Atos que Desafiam a Morte


Está estreando hoje nos cinemas Atos que Desafiam a Morte. Arrasado pela morte da mãe, o famoso mágico Harry Houdini aproveita uma de suas turnês para lançar um desafio: está disposto a dar um prêmio de dez mil dólares a quem lhe fornecer uma prova definitiva da existência de vida após a morte. Para tanto, bola um plano que considera à prova de falcatruas: será o vencedor aquele que adivinhar as últimas palavras de sua falecida mãe, ouvidas apenas por ele próprio. Mary McGarvie é uma sedutora médium de araque que, junto com a filha Benji, está disposta a tentar enganar o maior dos ilusionistas com seus encantos.

O filme se utiliza parcialmente da vida real de Harry Houdini para criar seu roteiro. Os dados biográficos sobre a infância pobre do mágico, bem como sobre sua incrível resistência pulmonar e sua habilidade com cadeados e correntes são verdadeiros. Aliás, foi justamente por essas particularidades que ele ficou tão famoso. Tanto que até hoje ninguém conseguiu desvendar seus truques por completo, mesmo tendo ele deixado boa parte de seus segredos registrados em um livro.

A trama é ambientada em 1926, mesmo ano da morte de Houdini, então com 52 anos. A primeira coisa a chamar atenção é que, mesmo com aquela peruca esquisita, o ator Guy Pearce parece ter no máximo quarenta. Sua atuação é sem vida e burocrática, como se tivesse feito o filme apenas para embolsar um dinheirinho extra. Aliás, desde Amnésia o sujeito não faz um filme decente. Já sua partner Catherine Zeta-Jones está, mais uma vez, fazendo o papel de mulher bonita. E só. O único sopro de vida no elenco – que ainda conta com um apático Thimothy Spall – é a garotinha Saoirse Ronan. Revelada no papel da menina ciumenta que detona toda a trama de Desejo e Reparação – o que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de atriz coadjuvante –, Saoirse demonstra uma segurança em cena de fazer inveja a muito ator adulto.

No geral, Atos que Desafiam a Morte é um filme previsível e chato. Não se decide a enveredar por nenhum dos caminhos que insinua e se arrasta superficialmente por todos. E olha que o que não faltam são temas abordados: desde a questão da ética da profissão de ilusionista até o debate sobre vida após a morte, passando pelo romance entre Houdini e a aparentemente fictícia Mary McGarvie, todas as situações são jogadas na trama apenas de passagem. O filme não se propõe a ser uma biografia de Houdini, mas tampouco abraça com liberdade o terreno da ficção – como faz, por exemplo, Shakespeare Apaixonado.

A diretora Gillian Armstrong tem como trabalho mais famoso o drama familiar Adoráveis Mulheres, de 1994. Depois disso, realizou o bom Oscar e Lucinda e o ruinzinho Charlotte Gray. E para piorar a situação de Atos que Desafiam a Morte, não podemos nos esquecer de que o tema ilusionismo foi abordado recentemente em dois outros filmes: O Ilusionista e O Grande Truque. Embora nenhum dos dois chegue a ser um primor, são muito superiores.