quinta-feira, 24 de março de 2011

O Retrato de Dorian Gray


A repaginação do mito de Fausto criado por Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray vem fascinando e aterrorizando leitores desde 1890. Nele, o jovem e belo Dorian Gray deixa-se seduzir pela efervescente Londres vitoriana e, principalmente, pela celebração do prazer proposta pelo bon-vivant Henry Wotton. Obcecado pela própria beleza, Dorian fica tão extasiado ao ver-se retratado pelo artista Basil Hallward que afirma levianamente que daria sua alma em troca de poder ter para sempre aquela aparência. Seu funesto desejo se concretiza e, conforme os anos passam, Dorian continua com suas belas feições inalteradas, enquanto o quadro começa a apresentar cada vez mais evidentes sinais de degradação, numa analogia para a sua decadência moral e espiritual.

Oliver Parker, cineasta de filmes bacanas como Othelo e O Marido Ideal, derrapa feio ao transformar o impressionante conto moral de Oscar Wilde em terrorzinho barato, com direito a portas rangendo e sons estridentes na trilha sonora. Mas seria precipitado jogar a culpa apenas nos ombros do cineasta, mesmo porque provavelmente não foi dele a decisão mercadológica de limar a complexidade dos personagens em prol de sustinhos bobos e sangue esguichando gratuitamente na tela. Seria o filme resultado de uma tentativa de criar um produto pop, a exemplo do que foi feito recentemente (com muito mais competência, que fique bem claro) por Guy Ritchie com outro ícone da literatura inglesa em Sherlock Holmes?

O roteiro do estreante Toby Finlay tampouco ajuda, criando personagens e desdobramentos não somente inexistentes no livro como também desnecessários. Mas esse nem é o maior dos problemas do longa, porque nada poderia ser mais danoso ao filme do que a total incompetência do bonitinho Ben Barnes em interpretar o personagem-título. Barnes, mais conhecido como o Príncipe Caspian dos filmes As Crônicas de Nárnia, é um total desastre como Dorian Gray e alterna sua interpretação entre a total cara de paisagem e as caretas melodramáticas das quais se vale para tentar expressar o horror de Dorian Gray com sua terrível maldição. E, com isso, o que deveria ser trágico acaba soando cômico.


Sorte do filme – e de nós, espectadores – é ter Colin Firth no papel de Henry Wotton, o responsável por incutir o gosto pelo hedonismo na cabecinha fraca de Dorian Gray. Não apenas Wotton é detentor das melhores falas do filme como Colin, com seu charme incontestável, também reveste seu personagem de um cinismo divertido e eleva o nível de cada cena na qual aparece. Enfim, com uma abordagem equivocada do roteiro, uma direção sem personalidade e um péssimo ator como protagonista, podemos dizer que o único sustentáculo que resta ao filme tem nome e sobrenome: Colin Firth. Bendito seja ele.

Amanhã nos cinemas, para os que ousarem.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Não Me Abandone Jamais


A clonagem, desde seus primeiros experimentos, vem levantando polêmicas. Em sua maioria, por restrições de ordem religiosa. Estaria o homem querendo tomar o lugar de Deus? Confesso que tais opiniões sempre arrancaram de mim um sorriso irônico, por considerar seus emitentes ingênuos e/ou retrógrados. Claro que a clonagem é um avanço, um benefício capaz de curar pessoas e salvar vidas. Mas e se tal avanço da medicina fosse levado a extremos cruéis, reproduzindo em série seres humanos para serem utilizados como uma grande loja de departamentos? É com essa perspectiva sombria que flerta a trama de Não Me Abandone Jamais.

Kathy, Tommy e Ruth foram educados no tradicional internato de Hailsham, situado numa propriedade campestre afastada do restante da civilização. Criados sob severas regras e ouvindo histórias ameaçadoras sobre crianças que teriam encontrado um terrível destino ao se aventurar fora dos limites da escola, os três cresceriam na mais absoluta inocência não fosse a atitude destemperada de uma professora, que revela aos alunos o indefectível destino reservado a todos. Como clones criados para suprir transplantes em seres humanos, eles devem começar a doar seus órgãos vitais assim que atingirem a idade adulta e estão, portanto, fadados a perecer dentro de um curto período de tempo.

Mesmo diante de tão chocante revelação, os personagens não se revoltam ou experimentam rancor. Talvez porque seja difícil para aquelas crianças dimensionar exatamente a que estão condenadas. O futuro parece irreal em perspectiva de sentimentos muito mais palpáveis, como, por exemplo, a descoberta do primeiro amor e da sexualidade. Kathy se apaixona por Tommy, que parece corresponder, mas depois cede aos encantos de Ruth. Permanecendo unidos, apesar dos desencontros amorosos, os três se tornam adultos e, a exemplo do andróide de Blade Runner, o valor da vida só lhes chega em toda sua plenitude conforme se aproxima o momento de deixá-la para trás.


Baseado em romance Kazuo Ishiguro, o mesmo autor de Vestígios do Dia, o longa faz uma filosófica investigação sobre o que, afinal de contas, tornaria alguém um ser humano. A trama lembra em alguns aspectos a história de Isaac Asimov, O Homem Bicentenário (também já transformada em filme). A grande e dolorosa diferença é que, enquanto o robô Andrew tinha diante de si uma existência longa e ilimitada por conta da sua condição de andróide, os personagens de Não Me Abandone Jamais tem sobre suas cabeças uma ameaça oposta: a brevidade de suas vidas.

O que torna a história ainda mais triste e chocante é sua ambientação. Ao invés de ser baseada em um futuro asséptico e distante, a trama parte de uma realidade paralela na qual os avanços da medicina teriam dado um enorme salto por volta dos anos 60, o que faria com que o que ocorre aconteça não em um suposto futuro e sim na nossa sociedade contemporânea, tornando cada espectador um cúmplice daquela situação. Ou como diz um dos personagens, ao ter seus limites éticos questionados “mas se perguntássemos às pessoas se elas querem voltar aos tempos do câncer de pulmão, elas diriam que não”.

Apesar de sua beleza comovente, o filme tem alguns pontos fracos. Mesmo com a opção de focar mais na parte filosófica e sentimental, a porção científica que sustenta a trama merecia um pouco mais de atenção. Ninguém queria um tratado sobre clonagem, mas sente-se falta de um embasamento maior sobre as experiências que levaram à criação de todo um sistema de reprodução em massa de clones, assim como a repercussão política que isso causaria na sociedade. Todos estavam cientes disso ou apenas uma parcela representativa? Não ficamos sabendo. Outro aspecto que é apenas mencionado diz respeito às pessoas usadas como “molde”. Por que indigentes? O filme não precisava abordar nada disso, é claro, mas acaba frustrando o espectador pelo simples fato de tocar no assunto e depois não explicar mais nada.


Mas essas lacunas do roteiro não chegam a invalidar um filme tão interessante, que já merecia crédito só pela temática. E ainda mais tendo a maravilhosa Carey Mulligan à frente do elenco. A atriz sustenta toda a carga dramática da história, com sua personagem sensível e introspectiva. Andrew Garfield e Keira Knightley também dão conta do recado, mas nem de longe são tão intensos quanto Carey. O diretor Mark Romanek, o mesmo de Retratos de Uma Obsessão e com uma carreira mais voltada para os videoclipes, conduz a trama com segurança e sobriedade na medida certa. Resumindo, um bom filme que merece ser visto e, principalmente, discutido.

Sexo Sem Compromisso


Um casal que começa pelo sexo e tem que seguir o caminho inverso até o amor é tema que tem povoado algumas comédias românticas atuais, numa válida tentativa de injetar frescor em um gênero quase sempre engessado por sua previsibilidade. Some-se isso a dois jovens atores em voga, e podemos ter algo de interessante em meio aos estereótipos. No caso do recente Amor e Outras Drogas, Jake Gyllenhaal e Anne Hathaway até deram algum charme ao longa, mas o resultado final ficou canhestro pela decisão equivocada de misturar romance com drama médico. Fica a lição: seriedade na hora errada pode atrapalhar. O veterano Ivan Reitman sabe disso e deixou as coisas simples neste Sexo Sem Compromisso, que chega aqui no Brasil na esteira do Oscar conquistado por sua protagonista, Natalie Portman.

Natalie é Emma, uma médica muito dedicada ao trabalho e pouco afeita a sentimentalismos. Ashton Kutcher é Adam, jovem que vive à sombra do pai famoso e que vem esbarrando em Emma ao longo dos últimos 15 anos sem conseguir uma boa aproximação com a moça. Tem sempre alguma coisa atrapalhando, seja o ambiente de uma festa de fraternidade ou uma namorada a tiracolo. A oportunidade de conhecer melhor Emma surge da maneira mais constrangedora: depois de tomar um porre fenomenal ao descobrir que sua ex-namorada está vivendo com seu pai, Adam acorda nu no sofá do apartamento que Emma divide com amigos.

Mas a independente Emma não quer saber de romance e, após uma transa-relâmpago, propõe que eles sejam parceiros de cama e se encontrem apenas para sexo, quando tiverem vontade. Adam, pressionado pelas circunstâncias, concorda, mas o espectador pode ver que aquela não é a praia dele. Numa clara inversão dos valores ainda arraigados na nossa sociedade, acompanharemos a partir deste ponto as tentativas românticas de Adam batendo de frente na parede de concreto que Emma construiu para si. Mas – e aqui entra o mérito da boa direção de Reitman e a sorte de ter uma atriz como Portman no papel – a personagem não age de forma arrogante ou masculina e sim com a praticidade de quem simplesmente não tem jeito nem tempo para ser de outra maneira. Emma não é ríspida ou sádica em relação a Adam, ela apenas vê o mundo de modo diferente.


Natalie Portman, obviamente, é o grande atrativo do filme. Mas até que Ashton Kutcher – geralmente expressivo como uma beterraba – demonstra um mínimo de carisma nesse longa. Talvez tenha sido bem-dirigido por Reitman, ou ajudado por Natalie, mas o fato é que, de um modo geral, o marido de Demi Moore não se sai mal dessa vez. Também vale destacar o bom elenco coadjuvante, com o sumido Kevin Kline como o pai egocêntrico de Adam e a ótima Lake Bell, engraçadíssima como uma produtora de TV sexy e cheia de cacoetes bizarros.

O roteiro de Elizabeth Meriwether tem diálogos leves e bem-escritos, com referências cinematográficas divertidas. Um exemplo é quando a colega médica de Emma diz a ela “vamos sair juntas, como em Sideways. Você é o Paul Giamatti. Eu transo”. O diretor Ivan Reitman, famoso nos anos 80/90 por comédias como Os Caça-Fantasmas e Irmãos Gêmeos, não andava em fase muito boa nesse terceiro milênio. O último longa dirigido por ele, há cinco anos, foi o pavoroso Minha Super Ex-Namorada. Com esse novo trabalho, o cineasta se redime e mostra que ainda tem fôlego para ser mais do que o pai de Jason Reitman.

Sexo sem Compromisso é filme para ser visto com o mesmo espírito de diversão descompromissada pregado por Emma. É isso, então, caro leitor: vá ao cinema sem esperar telefonemas no dia seguinte e sairá satisfeito.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Lope


(texto já postado na época do Festival do Rio, mas acrescido de algumas observações)

Há quem estranhe o fato desta coprodução entre Brasil e Espanha – e falada em espanhol – sobre o célebre dramaturgo Félix Lope de Vega ter sido entregue nas mãos de um brasileiro. Andrucha Waddington chegou ao filme através de um de seus roteiristas, que assistiu ao fabuloso Casa de Areia e, impressionado, pediu ao cineasta que lesse o roteiro de Lope. Andrucha se empolgou com o projeto e correu atrás de parceiros para realizá-lo. O resultado é um longa com surpreendente “sotaque” espanhol, não transparecendo nenhum cacoete de olhar estrangeiro sobre o tema.

A trama acompanha o início da carreira de Lope de Vega, sua dificuldade em conseguir que encenassem suas primeiras peças e também os primeiros dos muitos escândalos amorosos associados a seu nome. Na Madri no século XVI e recém-chegado da guerra, Lope entra no teatro pela porta dos fundos, como copista de uma das mais prestigiadas companhias teatrais. O todo-poderoso Velásquez reconhece que o subordinado é talentoso, mas reluta em dar-lhe uma chance porque o trabalho de Lope mistura tragédia com comédia e, portanto, vai contra os cânones teatrais da época.

Ao mesmo tempo em que realiza um filme bastante clássico, puro cinemão de época, Andrucha Waddington também conta a história de um espírito indomável e subversivo. Lope de Vega era, antes de tudo, um rebelde que se insurgiu não apenas contra a caretice teatral de seu tempo, mas também contra as hipocrisias sociais vigentes. E pagou um preço por isso. Justamente quando começava a ser reconhecido, o dramaturgo caiu em desgraça por conta de seus ímpetos passionais e foi acusado de diversos crimes de ordem moral.

Tecnicamente, Lope é perfeito. A fotografia de tons escuros é deslumbrante, chegando a lembrar o estilo das pinturas de Velásquez (o mestre da pintura, não o personagem do filme), e ajuda muito o espectador a entrar no clima da época retratada. Assim como a direção de arte e as locações bacanérrimas. OK, o longa não inova muito em termos de estrutura narrativa e é bastante convencional como cinema, mas todo esse tradicionalismo não chega a ser um defeito quando é realizado com competência. E isso é inquestionável no trabalho de Andrucha Waddington que, com esse filme, prova que está pronto para encarar a direção de qualquer produção em qualquer parte do mundo.


O argentino Alberto Amman está ótimo no papel de Lope de Vega. E dois brasileiros bem conhecidos integram o elenco coadjuvante: Sonia Braga e Selton Mello. Lope chegou a ser considerado para representar a Espanha no Oscar deste ano, mas acabou preterido por También la Lluvia. Aqui no Brasil, não dá para entender porque sua estreia foi adiada tantas vezes e agora o filme foi desperdiçado entrando em circuito às vésperas do carnaval. É o tipo de lançamento destinado aos tapa-buracos da programação, ou seja, aos filmes ruins, coisa que Lope definitivamente não é.