sexta-feira, 30 de março de 2012

Um Método Perigoso


O filme aborda a relação de Sigmund Freud com seu principal discípulo – e posterior opositor – Carl Gustav Jung. No início do século XX, Jung inicia a colocar em prática um novo método que seu mentor, Freud, ainda mantinha na teoria: a cura através da fala. A primeira paciente a ser tratada desse modo é Sabina Spielrein, uma jovem russa atormentada por severas perturbações e crises de histeria. Paralelamente, é enfocada a aproximação entre Freud e Jung e também o envolvimento deste último com a paciente, rompendo as barreiras éticas e trazendo um sério dano à sua reputação. Sabina, curada, estuda medicina e vem a tornar-se a primeira psicanalista do sexo feminino. Ao mesmo tempo, Jung começa a questionar os dogmas de Freud e a trilhar um caminho próprio, que irá não apenas afastá-lo do antigo mestre, mas também criar uma disputa que levará ao rompimento definitivo da amizade. Selecionado para a competição do Festival de Veneza 2011.

A relação entre o pai da psicanálise e aquele que foi seu maior admirador e, posteriormente, opositor por si só já costuma gerar debates apaixonados, por ter criado uma divisão definitiva entre o caminho a ser seguido por todos os profissionais que vieram desde então. O inteligente roteiro de Christopher Hampton – vencedor do Oscar por Ligações Perigosas e indicado por Desejo e Reparação – analisa com propriedade as ideias, modo de vida e personalidades conflitantes desses dois grandes gênios (deixando claro que o rompimento viria cedo ou tarde, mesmo sem um catalisador) de um modo abrangente e, ao mesmo tempo, simples, sem deixar de fora o espectador que não possua um conhecimento prévio da história. O longa consegue, ainda, não tomar partido entre a rigidez moral e científica de Freud e a busca mística e os caminhos pouco ortodoxos de Jung.


Um Método Perigoso também mostra com despudor o perturbador caso de Sabina e como o jogo de aparências da sociedade europeia do início de século XX poderia levar à loucura uma pessoa com desejos um pouco fora dos padrões ditos normais. E a verdade incontestável é que, se por um lado Jung foi tremendamente antiético e ultrapassou todos os limites com a paciente, por outro ele de fato a curou. Também podemos notar um interessante paradoxo entre a recuperação progressiva de Sabina e uma certa decadência emocional da parte de Jung, cheio de conflitos mal-resolvidos em relação a Freud. O filme adota o ponto de vista de que o suíço, embora tenha tomado um rumo profissional diverso, ainda não estava pronto para o rompimento emocional que isso acarretou. E não se pode deixar de sentir a ironia no fato da frase de despedida entre os dois ser uma fala de Hamlet (o resto é silêncio), personagem com uma relação tumultuada com o pai. É nos pequenos detalhes que fica mais evidente ainda a brilhante direção de David Cronenberg, com seu equilíbrio delicado entre ousadia e bom gosto. Considerando, ainda, o destaque que Cronenberg costuma dar às pulsões sexuais em seus trabalhos, não consigo pensar em escolha melhor para estar à frente deste projeto. 

O elenco maravilhoso só ajuda a tornar o filme ainda mais fascinante. O alemão Michael Fassbender, o ator europeu mais em ascensão do momento, compõe um Jung apaixonado pela psiquiatria e eternamente assombrado por seus desejos. E embora o filme seja do princípio ao fim de Fassbender, Viggo Mortensen é preciso como Freud, fazendo o contraponto perfeito sempre que necessário. Com sua característica barba e seu eterno charuto, o pai da psicanálise é o responsável pela melhores falas de um filme repleto delas, como por exemplo, “nunca confie em um ariano”, petardo que destila sobre Jung após decepcionar-se com ele. Keira Knightley também está surpreendentemente bem, sendo protagonista dos aspectos mais polêmicos do longa. O filme ainda conta com a participação luxuosa de Vincent Cassel como uma sedutora mistura de médico e de louco que termina por se mostrar uma influência perniciosa sobre Jung.


Trata-se de mais uma obra-prima de um cineasta que vem nos acostumando mal: David Cronenberg já possui uma longa e interessante filmografia, mas nos últimos anos vem apresentando filmes cada vez mais maduros e, ao mesmo tempo, tem mantido a ousadia e toque de bizarrice que são suas marcas constantes. E, coincidência ou não, seus três últimos e mais bem-acabados filmes – Marcas da Violência, Senhores do Crime e este – coincidem com a colaboração de Viggo Mortensen. Torçamos para que esta parceria seja mais duradoura do que a de Jung com Freud.

Um Método Perigoso é aquele tipo de produção que conta uma história real tão rica e fascinante que parece fictícia. Elenco perfeito, direção precisa, abordagem ousada, reconstituição de época impecável, roteiro inteligente, e tudo isso a serviço de narrar uma história que vem atraindo interesse e despertando paixões há quase um século. O que mais se pode esperar de um filme?

quinta-feira, 29 de março de 2012

A Novela das 8


Que a telenovela, ao lado do futebol, é o grande passatempo popular do brasileiro ninguém duvida. Algumas novelas foram especialmente emblemáticas, vide que uma recente reprise de Vale Tudo na TV a cabo fez com que as trapaças de Maria de Fatima e a vilania de Odette Roitman voltassem a figurar no topo dos assuntos mais comentados dentre os telespectadores. Outra novela que marcou época foi Dancin’ Days, até hoje lembrada por sua trilha sonora exuberante, que acompanhava a explosão da disco music, influenciando sensivelmente a moda e o comportamento dos brasileiros. O ano era 1978 e o grande paradoxo é que o mundo chique e glamoroso mostrado na TV tivesse lugar enquanto o país ainda vivia uma pesada ditadura militar. É esse paralelo entre as lutas políticas e o deslumbre dos que preferiam acreditar em um país de ficção que Odilon Rocha traça em seu filme.

No filme, Vanessa Giácomo é Amanda, uma prostituta que é totalmente obcecada por Dancin’ Days e tem como grande sonho ir para o Rio de Janeiro e conhecer a boate mostrada na novela. Claudia Ohana é sua empregada Dora, uma mulher calada e sofrida que acompanha avidamente o noticiário político. O jogo de aparências vem abaixo quando Dora reconhece em um dos clientes de Amanda o homem que a torturou anos antes, provocando uma drástica reação que faz com que ambas sejam obrigadas a fugir de São Paulo para o Rio. Enquanto a inconsequente Amanda parece não entender a gravidade do que está acontecendo e encara tudo como uma grande aventura, Dora sabe que é chegada a hora de sair do anonimato e encarar seu passado.

O filme, que teve sua première no Festival do Rio do ano passado, saiu do evento com o Troféu Redentor de melhor roteiro. Em sua estreia na função, o diretor Odilon Rocha realiza um filme que tem como ponto alto justamente a parte, digamos, mais alienada da trama. É na recriação do estilo Dancin’ Days, não a novela, mas a alegria desenfreada das pistas de dança e o visual exagerado com cabelões black power, roupas de cetim e meias de lurex, que Rocha mostra mais desenvoltura, enquanto os trechos que enfocam a repressão política ainda reinante de uma ditadura que teimava em não morrer parecem sempre carecer de um melhor desenvolvimento. No final das contas, o conflito de identidade do adolescente Caio ou momento de decisão do diplomata João Paulo capturam muito mais a atenção e sensibilidade do espectador do que o discurso político de alguns personagens ou as cenas que deveriam ser mais tensas, o que equivale a dizer que A Novela das 8 é mais forte em seu aspecto humano. Também alguns pontos da equação cronologia / idade dos personagens / aspecto físico dos atores podem confundir, mas isso não chega a atrapalhar o bom andamento da trama.

Claudia Ohana e Vanessa Giácomo se destacam no elenco, cabendo a Claudia a maior sustentação dramática do filme e a Vanessa o alívio cômico – não deixem de reparar na homenagem a Sonia Braga em um dos figurinos de Vanessa. Por outro lado, alguns bons atores como Alexandre Nero e Matheus Solano parecem um pouco prejudicados por personagens que não chegaram a ser totalmente delineados. Noves fora, A Novela das 8 é um bom filme, que presta uma homenagem interessante à paixão do povo brasileiro por esse produto televisivo tão criticado por uns e amado por outros, mas visto pela grande maioria dos brasileiros. Sexta nos cinemas.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Heleno


A incrível história de Heleno de Freitas, talvez o primeiro grande ídolo do futebol a amargar uma trajetória tão vertiginosa em termos de ascensão e queda, constitui um material tão rico e cinematográfico que chega a causar estranheza que sua odisseia tenha levado tanto tempo para ganhar as telas. Felizmente, o diretor José Henrique Fonseca corrigiu essa lacuna com este belo filme, que faz uma homenagem à altura do mito botafoguense.

Heleno de Freitas foi o grande ídolo do Botafogo até o surgimento de Garrincha, além de um dos maiores artilheiros do time. Em 1948, seu passe foi vendido ao Boca Juniors em uma transação milionária e até então inédita no futebol brasileiro. A temporada no exterior, exilado do seu time do coração, provavelmente acelerou a decadência que viria cedo ou tarde por conta da sífilis que o corroía há anos sem que ele aceitasse se tratar. Depois de uma passagem pelo Vasco, Heleno encerrou a carreira no América, onde atuou em uma única partida, conseguindo, ao menos, realizar seu grande sonho de jogar no Maracanã – vale lembrar que o ídolo foi expulso ainda no primeiro tempo.


Com uma luxuosa fotografia em preto e branco e uma reconstituição de época primorosa, o filme mostra como o belo, orgulhoso e arrogante jogador de futebol aos poucos se deteriora física e mentalmente, passando de ídolo aclamado pelas multidões e desejado pelas mulheres a uma personalidade problemática que ninguém conseguia ter por perto por muito tempo. O que se vê nas telas é que, embora Heleno fosse de fato genioso e intratável com seus colegas, ele era também um jogador extremamente apaixonado por seu time, capaz de dar o sangue por ele. Emblemático seu grito de desabafo: “eu não sou jogador de futebol, eu sou jogador do Botafogo!” Enquanto isso, ele era tratado pelo time e seus cartolas como uma mera peça no tabuleiro, um trunfo a ser usado, trocado ou vendido, conforme a ocasião.

O roteiro – também escrito por José Henrique Fonseca em parceria com Felipe Bragança e Fernando Castets – se alterna entre os tempos áureos, quando o emergente Heleno morava em um quarto no Copacabana Palace e dividia seu tempo livre entre a boemia e as belas mulheres, e seu triste fim de vida, passando os seus seis últimos anos de vida internado em um hospital psiquiátrico em Barbacena e já enlouquecido pela sífilis que o mataria aos 39 anos. A fotografia de Walter Carvalho, assumidamente inspirada na de Touro Indomável, ajuda a situar o espectador no clima de glamour e sofisticação do Rio de Janeiro dos anos 40 e 50. A direção de José Henrique Fonseca é precisa, equilibrando com sabedoria as muitas facetas da história sem se perder entre as muitas possibilidades. Fonseca optou por realizar um filme sobre a obsessão e não necessariamente sobre a paixão pelo futebol, tornando-o, assim, muito mais amplo do que uma mera biografia.


E por último – mas nem por isso menos importante – é preciso falar sobre a atuação arrasadora de Rodrigo Santoro como Heleno. Bom ator, com papéis anteriores de destaque no cinema nacional (como em Bicho de Sete Cabeças e Abril Despedaçado), Rodrigo atinge, com este papel, o ápice de sua carreira. E olhem que o que impressiona não é somente a sua incorporação do Heleno louco e decadente; neste segmento do filme, mesmo sendo o mais pungente, existe ainda a ajuda da caracterização. Já o Heleno jovem, arrogante e esplendoroso, sem artifícios técnicos, representa um desafio maior por depender única e exclusivamente do ator transmitir toda a paixão de uma figura que viveu no limite entre o gênio e o megalomaníaco, entre o bon-vivant e o cafajeste, entre o anjo e o demônio. Rodrigo, com fúria e sangue no olhar, nos leva para dentro do torvelinho de sentimentos do polêmico Heleno. Não é exagero nenhum dizer que este é um trabalho para indicação ao Oscar – é claro que as condições para isso tem mais a ver com o poder de penetração do longa no mercado americano, mas mérito e força para isso o trabalho de Santoro tem de sobra.

Desde já, um dos grandes filmes deste ano. Sexta nos cinemas.


quinta-feira, 15 de março de 2012

Protegendo o Inimigo


Podem me chamar de velha e ultrapassada, mas eu sou do tempo em que os filmes de espionagem se concentravam mais nos jogos de intrigas e menos na “macheza”. Se hoje em dia até o antes elegante James Bond distribui socos e pontapés a granel, como reverter essa progressiva diluição do filme de espionagem dentro do gênero ação? Como evitar que as perseguições espetaculares e os longuíssimos tiroteios tomem o lugar do suspense e da guerra de nervos? Essa mudança (ou deturpação) é irreversível e Protegendo o Inimigo apenas segue a tendência do que atrai as plateias de hoje em dia, mas não se pode deixar de prantear a morte de um gênero.  

Denzel Washington (que tem feito variações do mesmo personagem pelo menos nos últimos dez anos) é Tobin Frost, agente desertor da CIA. Depois de passar nove anos na clandestinidade, vendendo segredos do governo americano a seus inimigos, é obrigado a entrar em um consulado americano e se entregar às autoridades depois que uma negociação na Cidade do Cabo dá errado e ele é perseguido e quase morto. Tobin é preso e transferido para uma chamada “casa segura” (a tal safe house do título original), onde poderá ser interrogado e ter seus direitos violados sem que ninguém fique sabendo. O responsável por vigiar o local é Matt Weston, insatisfeito com sua função de zelador e louco por uma oportunidade de ser um agente de campo.

Não chega a ser um spoiler dizer que circunstâncias extremas colocarão Tobin e Matt (personagem de Ryan Reynolds), em uma situação de convivência forçada, já que o próprio título em português indica isso. Algumas situações remetem bastante a filmes como Colateral, como, por exemplo, a progressiva afinidade que vai surgindo entre os dois, desse modo aproximando perigosamente o mocinho do vilão. O elenco coadjuvante, que conta com Vera Farmiga, Brendan Gleeson e Sam Shepard, dentre outros, valoriza o filme com a presença destes bons atores em papéis-chave. Mas, estranhamente, o filme não decola muito além do óbvio, deixando no espectador a impressão de ter visto muitos outros filmes parecidos com esse.


Não deixa de ser um paradoxo perceber que um filme que prima tanto pela adrenalina não consiga empolgar. Os aficionados do gênero (ação, não espionagem) devem gostar, ainda que Protegendo o Inimigo seja mais do mesmo. A partir de hoje nos cinemas.

Sombras da Noite - trailer


Com previsão de estreia em maio nos Estados Unidos, o novo longa de Tim Burton, Sombras da Noite, traz Johnny Depp como Barnabas Collins, vampiro aprisionado 200 anos antes que volta para se vingar da bruxa que o amaldiçoou e restaurar a antiga glória a sua decadente família. Mas os anos setenta parecem muito loucos para alguém que veio do século dezoito. Vejam o trailer e digam se não dá vontade ver esse filme agora! Tudo indica que o longa, que é baseado numa série de TV antiga, segue a mesma linha anárquica de Os Fantasmas Se Divertem. O elenco conta, ainda, com Michelle Pfeiffer, Eva Green e Helena Bonham Carter.


Projeto X – Uma Festa Fora de Controle


No que diz respeito à sétima arte, é sempre arriscado anunciar a saturação de qualquer gênero ou filão. As gargalhadas ouvidas ontem, durante a pré-estreia de Projeto X – Uma Festa Fora de Controle, só reforçam esse argumento. Afinal de contas, quem poderia imaginar que uma comédia adolescente sobre três amigos nerds que querem deixar o ostracismo para trás organizando uma festa inesquecível poderia (ainda) fazer rir (e muito)? E não é que o longa tenha alguma bossa tão esperta assim ou inove com algum roteiro acima de média; pelo contrário, a trama é calcada em praticamente todos os clichês que vem sendo usados neste tipo de filme desde os anos 80. Por que, ainda assim, agrada tanto? Porque é um filme danado de engraçado, e isso é o que realmente importa quando se trata de uma comédia.

Partindo de uma pegada meio Bruxa de Blair (a escolha do formato acaba levando a algumas falhas de continuidade, mas tudo bem), em que o filme é mostrado através das imagens gravadas por um personagem, a trama se desenrola em um único dia, começando na manhã e seguindo madrugada adentro. Thomas, Costa e JB são os típicos perdedores. Aliás, os próprios pais de Thomas acham o filho um bobão. Aproveitando a ausência destes, Costa convence o amigo a organizar uma festa com o firme objetivo de reverter a sina do trio, transformando-os de nerds obscuros em caras descolados e populares. Thomas, a princípio apreensivo, cede diante da insistência dos amigos, desde que seja uma festa de pequeno porte, apenas "grande o suficiente para ser legal". Só que Costa, morrendo de medo que ninguém apareça, apela para todos os meios de divulgação imagináveis e a festinha logo ganha dimensões épicas, para o bem e para o mal. 

Outra grande qualidade do filme é sua total e irrestrita falta de estribeiras, causando um desdobramento quase metalinguístico nas telas. Conforme os acontecimentos vão ganhando proporções gigantescas na trama e a festa vai saindo totalmente do controle de seus idealizadores, também o filme vai chutando o balde (no bom sentido), dando adeus a qualquer resquício de bom-mocismo e metendo um bico na canela do politicamente correto. Destaque para todas as hilárias cenas envolvendo os seguranças adolescentes com complexo de ninjas e também o anão mau-humoradíssimo de pontaria certeira.


O diretor Nima Nourizadeh é um total debutante atrás das câmeras, não tendo realizado nem mesmo um curta-metragem antes desse projeto. Nourizadeh com certeza tem muito a agradecer a seu produtor Todd Phillips por essa estreia com o pé direito na função, afinal de contas estamos falando do cara que dirigiu uma das mais festejadas comédias do cinema americano recente: Se Beber, Não Case.

Evidente que o filme, assim como a maioria das festas, estará na cabeça das pessoas até que seus efeitos sejam suplantados pela próxima – festa ou comédia de sucesso –, mas é preciso valorizá-lo pelo seu grande mérito: trazer ao espectador uma hora e meia de gargalhadas e diversão descompromissada. Projeto X está fadado a ser a grande comédia deste final de verão. Amanhã nos cinemas. Aprecie sem moderação. 

terça-feira, 13 de março de 2012

Shame


Acredito que a primeira vez que tenhamos ouvido falar de Shame tenha sido por ocasião do Festival de Veneza do ano passado. O filme causou polêmica por suas cenas, deu muito o que falar por abordar sem firulas o tema da compulsão sexual e saiu do evento levando o prêmio Fipresci, além da Copa Volpi de melhor ator para a interpretação arrasadora de Michael Fassbender. O ator repetiu a vitória no British Independent Film Awards, dentre outros, e parecia com seu caminho pavimentado para o Oscar. Para espanto absoluto, não foi sequer indicado, o que só reforça a noção do quão incômodo ainda é o tema em questão, já que só isso explica que uma das mais pungentes atuações do ano tenha sido solenemente ignorada pelas premiações mais conservadoras. 

Shame conta a história de Brandon, um executivo que mora sozinho em Nova Iorque. Bonito, solteiro, bem-sucedido, enfim, o protótipo do vencedor, Brandon na verdade passa seus dias em um círculo de constante agonia. Seu esqueleto no armário é o sexo, ou melhor, a compulsão sexual que, longe de ser uma fonte de prazer, controla sua vida, empurrando-o cada vez mais longe em busca de uma satisfação nunca alcançada. Sua vida de aparências e falsa normalidade é ameaçada quando sua problemática irmã Sissy aparece de surpresa e parece firmemente determinada a se alojar em sua casa.

Muito se tem falado sobre a cena de abertura do filme, e com toda razão, porque ela é perfeita para situar o espectador na abordagem pretendida pelo diretor Steve McQueen. Brandon entra em um trem e imediatamente tem seu olhar – que mais parece um radar – atraído para uma jovem. A moça a princípio corresponde ao seu assédio, mas logo começa a perceber que o modo como Brandon a devora com um olhar frio e despido de qualquer alegria tem qualquer coisa de doentio. A expressão provocante e divertida da garota dá lugar ao medo, atingindo as raias do pânico quando esta praticamente sai correndo do trem em uma estação. Que sequência!


Poucos filmes tratam o tema da compulsão sexual sem resvalar para o thriller e transformar o personagem em um psicopata ou criminoso sexual. Brandon não representa um perigo para a sociedade, apenas para ele mesmo. Tampouco o longa apresenta o sexo como fonte de prazer. As (muitas) relações mostradas na tela não são sensuais e sim doloridas, aflitas, apresentando uma imagem tão triste como costumamos ver associadas a outros vícios. Brandon exala decadência e impotência, exatamente como se fosse um alcoólatra ou um viciado em crack. Com sua interpretação precisa, Michael Fassbender consegue delimitar com clareza o sempre difuso limite entre liberdade sexual e compulsão, quando o sexo serve para aprisionar ao invés de libertar.

O ótimo roteiro escrito por McQueen e Abi Morgan (impressionante ver aqui o nome da mesma roteirista do equivocado A Dama de Ferro) também deixa isso bem claro ao mostrar a dificuldade de Brandon em se relacionar fisicamente com a única mulher por quem ele parece nutrir algum sentimento verdadeiro. Também em relação à irmã ele parece ter algum bloqueio, transformando um simples abraço fraternal em tabu, nunca ficando claro se a dificuldade vem dele separar carinho de toque ou do medo de que sua compulsão não respeite nem mesmo os laços de sangue. De qualquer modo, é um triste paradoxo que alguém tão obcecado por sexo não consiga suportar um toque de afeto.


Shame é o segundo longa-metragem de Steve McQueen (que não tem nenhum parentesco com o ator homônimo). O primeiro, Hunger, também estrelado por Michael Fassbender, foi exibido no Festival do Rio de 2008 e nunca chegou ao circuito comercial.

Sexta nos cinemas. Imperdível. 

sexta-feira, 9 de março de 2012

Gigolôs judeus

Woody Allen e John Turturro serão judeus ortodoxos que resolvem virar gigolôs

Woody Allen será um gigolô no novo filme de John Turturro. Não é piada, embora pareça. Fading Gigolo, escrito e dirigido por John Turturro, conta a história de dois judeus ortodoxos que decidem se tornar gigolôs. Estão no elenco, ainda, Sofia Vergara, Sharon Stone e o próprio Turturro. Vale lembrar que tem mais de dez anos que Woody Allen não atua em um filme que não seja dele mesmo – a última vez foi em 2000, em Juntando os Pedaços. Enquanto isso, continuamos esperando ansiosamente que alguém se disponha a lançar por aqui Nero Fiddled, o longa mais recente de Allen. O filme estreia em 20 de abril na Itália, onde foi rodado, e em junho nos Estados Unidos.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Minha Semana Com Marilyn

Enquanto o filme Sete Dias Com Marilyn não estreia – a Imagem Filmes adiou a data novamente, empurrando-o agora para 27 de abril – uma boa pedida é conferir a história no material que serviu de inspiração para o filme, ou seja, no livro escrito por Colin Clark e lançado aqui no Brasil pela Editora Seoman. Nele, Clark narra, em forma de diário, os nove dias durante os quais se aproximou perigosamente de Marilyn Monroe e, por conta disso, esteve no olho do furacão de uma crise envolvendo estrelas como Laurence Olivier e Arthur Miller.

Os dias críticos ocorreram em 1956, na Inglaterra, durante a filmagem do longa O Príncipe Encantado, no qual Marilyn interpreta uma corista que, devido a uma série de imprevistos, acaba fascinando o príncipe interpretado por Olivier. É muito curioso perceber que, enquanto isso, nos bastidores, uma situação análoga ocorria: um simples terceiro assistente de direção – a pessoa menos importante em toda a equipe, na visão do próprio Clark –, também através de uma sequência de acontecimentos fortuitos, acaba partilhando da intimidade da maior estrela da época, alguém que dias antes sequer lhe dirigia a palavra.

Colin Clark tinha 23 anos de idade. Ele havia terminado a Universidade e não possuía nenhuma experiência profissional, conseguindo o emprego tão-somente porque seus pais eram amigos de Laurence Olivier e Vivien Leigh. Marilyn, recém-casada com o dramaturgo Arthur Miller, tinha 30 e era, à época, a maior e mais cobiçada estrela das telas. Como não é segredo hoje em dia para ninguém, a loura vivia dilemas profundos e se ressentia da imagem de “loura burra”, desesperada em provar seu valor como atriz séria. Trabalhar em um filme inglês com Sir Laurence Olivier parecia o modo ideal de perseguir o tão almejado respeito profissional, mas na vida real as coisas não ocorreram de modo tão mágico e, em meio à inevitável crise, o que possibilitou o testemunho direto de Colin (e este livro) foi simplesmente estar no lugar certo em momentos-chave.

Este livro não é nenhum diário. É um conto de fadas, um interlúdio, um episódio fora do espaço e do tempo que, no entanto, ocorreu na vida real. (...) Este livro se propõe a descrever um milagre – alguns dias de minha vida em que um sonho se tornou realidade e meu único talento foi não fechar os olhos.

Na verdade, Colin Clark fez mais do que não fechar os olhos e, anos depois, se propôs a escrever este relato, em forma de uma doce e sincera homenagem a como o inesperado convívio com Marilyn Monroe definitivamente tocou sua vida. Se o autor aumentou sua participação no episódio? Provavelmente sim. Suas palavras traem certa idealização, adotando sempre um ponto de vista no mínimo simpático à estrela. Nada contra, apenas é preciso deixar claro que a obra tem muito mais de romance do que de relato jornalístico – acredito até que essa sempre foi a intenção de Clark, conforme ele mesmo induz a pensar no trecho acima, retirado da introdução do livro. Outra faceta interessante do livro é mostrar quão facilmente um cronograma de filmagem pode sair do controle dos envolvidos devido a uma crise pessoal.

O afetuoso relato de Colin Clark abrange pouco mais de uma semana no verão de 1956 e não propõe nenhuma teoria ou estudo definitivo sobre o mito Marilyn Monroe; pelo contrário, adiciona ainda mais dúvidas sobre a personalidade de uma das mais controversas e multifacetadas estrelas de todos os tempos. Obrigatório para fãs de Marilyn e muito interessante também para cinéfilos de um modo geral. 

quarta-feira, 7 de março de 2012

O Dublê do Diabo


Todos nós já ouvimos falar que alguns ditadores se utilizavam de sósias, não apenas para estar em muitos lugares, mas também como forma de se proteger de atentados. Saddam Hussein não inventou esse truque, foi apenas mais um a se valer dele. O que não costumamos parar para pensar é o seguinte: quem é essa pessoa obrigada a deixar de existir para se tornar a sombra de outra? E vale lembrar que em tais regimes não existe a opção de simplesmente dizer “não, obrigado”. Exibido no último Festival do Rio, o filme O Dublê do Diabo acaba de ser lançado pela Califórnia Filmes diretamente em DVD. O filme conta a história do oficial do exército iraquiano que foi selecionado para se tornar o sósia de Uday Husseim, o filho mais velho de Saddam.

A primeira coisa que é preciso louvar nesse filme é a incrível interpretação de Dominic Cooper como Uday e seu sósia Latif. Quem poderia imaginar que o ator, que não tem absolutamente nada de expressivo no currículo, pudesse ser a escolha ideal? Não apenas ele diferencia muito bem os dois personagens, como também é perfeito quando interpreta Latif imitando Uday, criando desta maneira três níveis diferentes de atuação.

Também é muito interessante o dilema de não apenas se aniquilar para ser outra pessoa, mas de ser a face de alguém abominável. E precisar desempenhar bem tal função, sob pena de tortura. Tudo isso sendo um prisioneiro de luxo, alguém que vive em meio a festas, champanhe e caviar, mas não tem autorização nem para ver a própria família. Também é curioso que, sendo a cópia fiel da imagem do tirano, Latif acabe por, aos poucos, exercer algum poder sobre ele. Afinal, quem destruiria a si próprio? Tal simbiose certamente vai além do interesse político.

Os problemas do filme começam quando a criatura resolve se rebelar contra seu criador. Talvez por ser baseado nos relatos do próprio Latif, o roteiro acaba transformando-o numa espécie de super-herói indestrutível e sem mácula. Algumas sequências, em especial a da sua retirada estratégica da festa de aniversário, parecem tiradas dos filmes de James Bond. Teria algo a ver com o fato do diretor Lee Tamahori ser o mesmo de 007 – Um Novo Dia Para Morrer?

Como se não bastasse, nesse terço final o filme começa a deixar pontas soltas e inúmeras situações mal-explicadas. Como, por exemplo, o personagem estar em fuga em uma cena e na tomada seguinte já aparecer em outro lugar sem que tenhamos nenhuma explicação sobre como foi feita a façanha. Transformar o digno Latif em Rambo – com direito a olhar fatal e aproximação em câmera lenta e tudo – abalou a credibilidade de um filme que caminhava bem até então. Outro ponto fraco da trama é o envolvimento do protagonista com a amante de Uday, mas talvez a personagem Sarrab soe artificial apenas pelo fato de ser pessimamente interpretada por Ludivine Sagnier.

É um pouco difícil cotar esse filme, já que ele tem desníveis enormes em seus quesitos. Analisando a validade do tema e a surpreendentemente boa atuação de Dominic Cooper, era caso para aplaudi-lo entusiasticamente; já considerando o filme em si... nem tanto.Na média geral, certamente vale uma conferida.

domingo, 4 de março de 2012

O Que Você Gostaria Que Ficasse



Estreou na última sexta na Sala Multiuso do SESC Copacabana este original e comovente espetáculo. Descrito em seu programa como uma “experiência-performance-happening”, O Que Você Gostaria Que Ficasse propõe uma reflexão a partir da seguinte hipótese: e se, de repente, todas as pessoas do mundo simplesmente desaparecessem? Não importa se por uma epidemia, desastre natural ou qualquer outro motivo, o ponto de partida do espetáculo não são as razões e sim imaginar o que aconteceria a partir do fato. Por quanto tempo as luzes elétricas continuariam ligadas? Quantos dias nossos animais de estimação sobreviveriam trancados em nossas casas? Quanto tempo até que todos os papéis, CDs, filmagens, enfim, tudo o que registra nossa história desaparecesse sob a ação de fungos e bactérias? E se cada um pudesse escolher algo para ficar? O que você escolheria? Um quadro, um livro, um sorvete, um momento especial?

O Que Você Gostaria Que Ficasse nasceu a partir de uma pesquisa do grupo teatral Brecha Coletiva sobre o livro O Mundo Sem Nós, de Alan Weisman. Nele, o autor imagina, passo a passo, o processo de desaparecimento da história da humanidade, já que nenhum dos meios de preservação existentes perduraria para sempre sem que o homem estivesse presente para monitorar o seu funcionamento. Segundo o autor, bastariam duzentos anos para que desaparecesse qualquer vestígio de expressão artística. O espetáculo, embora seja fruto da pesquisa coletiva, é concebido e dirigido pelo integrante Miguel Thiré. Este é o terceiro trabalho de Miguel como dramaturgo. Os anteriores foram Superiores (indicado ao Prêmio Shell por sua pesquisa de linguagem) e 2 p/ Viagem.

Antes de tudo, é preciso esclarecer que o espetáculo, apesar de seu tema filosófico, é calcado num estilo de encenação extremamente dinâmico, interagindo com o público das mais diversas formas. Logo ao entrar no espaço cênico, o espectador perceberá que não há uma divisão clara entre plateia e elenco. Não apenas em termos de cenário, mas de interação mesmo. Pode ser que algum ator venha até você e pergunte o nome do seu melhor amigo ou sobre alguma canção que lhe traga boas recordações e depois você veja aquela sua resposta integrada à história de Maria (que em outra noite certamente terá outro nome). Através da história dessa personagem fictícia, criada a partir de fragmentos das histórias reais dos presentes, olhamos para dentro de nós mesmos e nos reconhecemos em momentos especiais como o primeiro beijo, uma crise profissional, a morte de uma pessoa amada.

O tempo todo, os “espect-atores” são incentivados (não obrigados, que fique bem claro, mas bastante estimulados) a contribuir das mais diversas formas. Com um desenho, uma música, uma pequena intervenção, desse modo possibilitando que cada um também deixe algo de si naquela noite de encontro e celebração. Aliás, celebração é melhor palavra para definir o que ocorre no espaço cênico, já que a sensação permanente ao longo daquela hora e meia de encontro (não é por acaso que a palavra “espetáculo” acabou substituída pela palavra “encontro”) não é a de lamentar o fim, mas de celebrar o que cada um pode preservar de bom, importante e vital. Impossível deixar de lembrar que tal espírito de celebração também está intimamente ligado ao que o teatro tem de mais essencial, remetendo aos cultos dionisíacos – não por acaso, o vinho foi um elemento muito presente na noite. E o mais interessante nessa proposta do Brecha Coletiva é que, mesmo aqueles que optarem por não interagir, certamente terão contribuído em suas mentes, imaginando sua própria lista de coisas que devem ficar eternizadas no tempo-espaço. Por fim, devemos destacar o carisma, empenho e verdade cênica dos atores Cynthia Reis, Eduardo Cravo, Jarbas Albuquerque, Raquel Alvarenga e Suzana Nascimento, incríveis em nos confundir na difícil arte de apagar as fronteiras entre o que é espontâneo ou ensaiado.

O Que Você Gostaria Que Ficasse fica em cartaz até o dia 25 de março na Sala Multiuso do SESC Copacabana. Sextas e Sábados às 20h e Domingos às 18h. Ingressos a R$20,00, (R$10,00 a meia-entrada e R$5,00 para associados do SESC). Em tempos nos quais o teatro carioca parece dominado pelo riso fácil e descartável, é muito importante que um trabalho deste nível de qualidade – e que prova, de uma vez por todas, que a alegria pode estar associada a algo de mais profundo – seja visto, comentado e, sobretudo, vivenciado. Não fique apenas aqui lendo esse texto, vá e seja parte. E aproveite para deixar lá o que for importante para você. Os deuses do teatro agradecem.


Miguel Thiré (ao centro) com o elenco