terça-feira, 29 de abril de 2014

Getúlio


Dezenove dias que abalaram um país. Assim poderíamos resumir em uma frase a abordagem escolhida pelo documentarista João Jardim para seu primeiro longa de ficção. Getúlio não é uma biografia do presidente que “saiu da vida para entrar na História” e nem se propõe a fazer considerações sobre sua polêmica figura ou suas realizações políticas. O filme se concentra no turbulento período de agosto de 1954 compreendido entre o atentado contra Carlos Lacerda (dia 5) e a fatídica noite do suicídio de Getúlio Vargas (dia 24). O atentado em questão feriu de leve Lacerda e provocou a morte do major Rubens Vaz, que fazia a sua segurança. Politicamente, insuflou ânimos e foi o estopim de uma crise sem precedentes. Ao fazer este recorte, o roteiro privilegia justamente o dramático epílogo da vida de uma das figuras mais controversas da história brasileira recente.

As escolhas de João Jardim, também autor do argumento, e do roteirista George Moura são sempre voltadas para sublinhar um clima de crescente tensão, resultando em um thriller de ares hitchcockianos. E é incrível conseguir este efeito com uma história não somente real, mas cujo desfecho é amplamente conhecido por qualquer brasileiro. O filme, inclusive, tem pouquíssimas cenas externas em contraposição com as incontáveis sequências que se passam nos aposentos e corredores da locação real de todo o drama: o Palácio do Catete. Uma perfeita tradução em imagens da expressão “intriga palaciana”. O mais impressionante é o modo como a direção consegue manter esse olhar íntimo, mesmo falando de um momento político que mexeu com as convicções e sentimentos de um país inteiro. Um bom exemplo está na passagem em que revoltas populares são mostradas na tela através de fotos nas mãos de Alzira Vargas – um diretor menos inteligente quebraria a atmosfera do filme com cenas de multidão e centenas de figurantes.


Por outro lado, sabemos que a equipe do filme estudou com muita atenção a vasta documentação existente sobre o período e que a pegada de suspense do longa não leva a um nenhum tipo de desleixo quanto à sua exatidão histórica. Aspectos técnicos como fotografia, direção de arte e figurinos são bastante caprichados e espelham bem a época, verossimilhança relativamente tranquila de se atingir uma vez conseguido o grande trunfo de rodar o filme no próprio Palácio do Catete. Também a caracterização do elenco é um ponto alto. Tony Ramos aparece em cena não apenas com a fisionomia e os trejeitos do ex-presidente, mas também em sua compleição física – o ator contou em entrevista recente que vestia uma sobrepele sob o figurino para que o formato de seu corpo se assemelhasse ao de Getúlio Vargas. Também chamam atenção algumas caracterizações que tornaram os atores por baixo delas simplesmente irreconhecíveis, como foi o caso de Jackson Antunes como Café Filho e Michel Bercovitch como Tancredo Neves.

Somados ao virtuosismo técnico e às escolhas felizes em termos de roteiro e direção, o filme conquista, ainda, pelo comovente trabalho de seus atores. A impressionante composição de Tony Ramos no papel-título, a suavidade de Drica Moraes em uma Alzira transbordante de afeto pelo pai e a energia de Alexandre Borges como o sempre exaltado Carlos Lacerda são os aspectos mais visíveis de um elenco todo nivelado pela excelência e repleto de atores competentes nos papéis coadjuvantes.


Getúlio desponta, desde já, como um dos grandes filmes nacionais não somente deste ano, mas do cinema brasileiro recente. Esperemos que seja lembrado mais adiante, quando for o momento de escolher o candidato brasileiro para o próximo Oscar. 

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Amante a Domicílio


Encontra-se em pré-estreia, com sessões diárias em diversos cinemas do Rio, Amante a Domicílio (neste caso deveria ser "em domicílio", mas tudo bem). Para quem não está ligando o título ao filme, trata-se daquele longa de John Turturro que conhecemos há muito tempo pelo seu título original, Fading Gigolo - o filme inclusive foi exibido no Festival do Rio do ano passado desse modo. Turturro, além de ser um excelente ator, deve ser um cara muito querido no meio artístico. Afinal de contas, mesmo ainda não tendo realizado nenhum longa de relevância como diretor, sempre consegue reunir um elenco no mínimo interessante. Aqui ele divide a tela com ninguém menos do que Woody Allen e ainda tem Sharon Stone, Sofia Vergara e Liev Schreiber em papéis coadjuvantes.

Woody Allen interpreta Murray, um dono de livraria à beira da falência que, da noite para o dia, resolve faturar um extra como cafetão do seu melhor amigo. O mais engraçado é o modo como a situação se estabelece logo na cena inicial: Murray conta a Fioravante (o próprio Turturro) que estava conversando com sua dermatologista quando ela disse que gostaria de fazer um ménage à trois e perguntou se ele conhecia alguém. E ele simplesmente ofereceu o amigo, que até então fazia arranjos em uma floricultura. Logo Fioravante se torna uma sensação no bairro, mesmo não sendo bonito, graças a seu estilo “homem de verdade”.

O filme é simpático e divertido, apesar de ser um pouco irregular em termos de ritmo. Turturro, que também assina o roteiro, reproduz muito do estilo e do humor característicos dos filmes de Woody Allen. Estão lá vários de seus temas recorrentes, como, por exemplo, o olhar debochado sobre a comunidade judaica e seus costumes. A diferença é que os roteiros de Allen costumam ser mais redondos e aqui o pique inicial da história decai a partir do momento em que Fioravante se apaixona. Com menos do impagável Allen em cena e mais romance clichê, o espectador certamente sentirá que o filme perde um pouco de fôlego.

Em todo caso, é uma boa pedida para os que buscam um olhar irreverente sobre o amor e certamente mais um degrau na ainda breve filmografia de John Turturro como cineasta.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

X-Men: Dias de um Futuro Esquecido - trailer


Diante de tanto reboot, remake, prequel, sequel, spinoff, enfim, tanta coisa desnecessária que tem sido feita envolvendo o cinema e o universo dos super-heróis, é aguardado com bastante ansiedade este filme que promete ser um sopro de criatividade e qualidade em meio à mesmice. Confiram abaixo o trailer oficial de X-Men: Dias de um Futuro Esquecido. O longa estreia no dia 22 de maio e reúne um elenco invejável, que inclui Michael Fassbender, Hugh Jackman, Ian McKellen, Patrick Stewart, Peter Dinklage, Jennifer Lawrence, James McAvoy, Ellen Page, Nicholas Hoult, Evan Peters e Anna Paquin, dentre outros. Bryan Singer, que capitaneou os dois primeiros filmes dos mutantes, retorna à direção. 


quarta-feira, 16 de abril de 2014

O Grande Mestre


O Grande Mestre é um filme que levou muito tempo para ser feito e representa a realização de um sonho antigo do cineasta chinês Wong Kar Wai, que há anos acalenta estre projeto de contar a biografia do lendário mestre do kung-fu Ip Man (que foi mentor de Bruce Lee) na forma de um grandioso épico das artes marciais que tem como pano de fundo a China dos anos 30 e sua sofrida dominação por parte dos japoneses. Como protagonista, Kar Wai escalou um dos principais astros asiáticos – e seu colaborador habitual – Tony Leung. Já o papel da lutadora que foi rival e, ao mesmo tempo, paixão proibida de Ip Man coube à atriz Zhang Ziyi, que ganhou fama mundial graças ao oscarizado O Tigre e o Dragão.

Kar Wai sempre foi um cineasta muito pautado pela estética, e esse apuro é mantido neste O Grande Mestre. Tudo que diz respeito à parte visual do longa é absolutamente impecável. Os figurinos luxuosos e a fotografia deslumbrante foram (merecidamente) indicados ao Oscar. As lutas coreografadas ganham um toque especial, ao serem fotografas em lindas tomadas em câmera lenta sob delicados flocos de neve ou gotas de chuva (as imagens são tão bonitas que o próprio cineasta não resistiu a rodar mais de uma sequência desse modo).


O maior problema do filme é quando os personagens não estão lutando. O contexto histórico é apresentado de modo bastante apressado e superficial – o que seria compreensível se o filme apoiasse sua linha narrativa mais nas cenas de ação, mas não é o caso – e os diálogos ganham um ar pretensamente filosófico, com metáforas que deveriam soar profundas, mas no final das contas apenas ralentam o ritmo da história. Evidente que, sendo o áudio original em uma língua totalmente desconhecida por esta que vos escreve, permanece o benefício da dúvida: teria o filme sido prejudicado por uma tradução/legendagem ineficiente? Nunca saberemos ao certo.

Terminada a projeção, a conclusão a que se chega é a de que, apesar de sua extrema beleza, O Grande Mestre morre na praia. Ao tentar acumular as funções de filme de artes marciais e drama histórico, Kar Wai acaba por somar deficiências em ambos os estilos. Não consegue realizar nem um wuxia empolgante como os feitos pelo seu conterrâneo Zhang Yimou (Herói, O Clã das Adagas Voadoras) e muito menos um longa historicamente consistente, já que lhe falta estofo para sustentar a parte “cabeça” da história. O resultado final é lindo e irrelevante.


quarta-feira, 9 de abril de 2014

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho


O título deste primeiro longa do paulista Daniel Ribeiro faz referência ao curta lhe deu origem (Eu Não Quero Voltar Sozinho, 2010) e conta com os mesmos personagens, interpretados pelos mesmos atores. A trama é centrada em três adolescentes: Leonardo é cego de nascença e melhor amigo de Giovana. Os dois estudam juntos, são companheiros inseparáveis e logo percebemos que Gi está sempre incentivando Leo a namorar porque ela mesma sente mais do que amizade por ele. A dupla vira trio com a chegada de Gabriel, que atrai primeiro o interesse de Giovana e, depois, o ciúme, já que ela começa a sentir excluída pelos meninos.

A trama é bastante parecida com a da sua versão curta-metragem, embora agora haja mais espaço para desenvolver a contento a história e, ainda, acrescentar novas questões que não existiam antes – não somente pela falta de tempo, mas também pelo fato dos personagens serem ainda muito jovens. Um exemplo disso é a sede de independência de Leo, que faria pouco sentido para um menino de catorze anos, mas é totalmente de acordo com as expectativas de um jovem de dezessete. Como todo adolescente, Leo quer trilhar seus próprios caminhos, fazer escolhas, sair sozinho, viajar, e não acha que sua deficiência visual deva impedi-lo, mas primeiro precisa vencer a superproteção dos pais.


Trata-se de um filme pautado por puro afeto, mas que em nenhum momento soa apelativo ou piegas. Mérito da direção leve de Daniel Ribeiro, mas também da interpretação descontraída e cheia de naturalidade dos atores. Além do ótimo trio central, formado por Guilherme Lobo, Fabio Audi e Tess Amorim (cujas atuações certamente foram muito beneficiadas pelo fato de já terem trabalhado juntos no curta), destaca-se também Isabela Guasco, que interpreta a menina exibida da escola – impagável a cena em que ela passeia por sua festa com um cachorro nos braços. Os diálogos são divertidos e não têm pudor em reproduzir as conversas e brincadeiras próprias da idade. Ainda bem, por que poucas coisas são mais irritantes do que crianças e adolescentes caracterizados como adultos em miniatura.

Conforme declarado pelo próprio cineasta em uma entrevista recente, o universo retratado no filme, mesmo ainda não podendo ser considerado uma plena realidade, é totalmente possível. Nele, a descoberta da sexualidade é repleta de dúvidas e emoção independente da orientação sexual; a pessoa diferente não está isenta da implicância dos colegas, mas a coisa nunca atinge limites realmente dolorosos; o deficiente vive em um ambiente que lhe permite buscar a independência, bastando, para isso, superar a resistência dos próprios pais. Um mundo de delicadeza, sensibilidade e esperança, assim é este belo exemplar de cinema made in Brazil.


Hoje Eu Quero Voltar Sozinho estreia amanhã já trazendo ótimas recomendações na bagagem: o filme venceu os prêmios FIPRESCI e Teddy no último Festival de Berlim. Imperdível.

Clique aqui para ler entrevista com diretor e elenco.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Pacto de Sangue: a essência do film noir faz 70 anos



O termo film noir foi utilizado pela primeira vez em 1946 por um crítico chamado Nino Frank. Antes disso, alguns cineastas realizaram filmes do estilo sem que ele assim fosse nomeado. Quando pensamos no exemplar mais marcante deste gênero que teve sua era de ouro no cinema americano das décadas de 40 e 50, o primeiro longa que vem à mente é Pacto de Sangue. Um dos primeiros filmes da carreira de Billy Wilder, Pacto de Sangue pode ser considerado a própria essência do noir.

Vejamos as principais características do estilo: atmosfera pessimista, fotografia escura e estética influenciada pela angulosidade dramática do expressionismo alemão. Confere. No lugar do herói sem mácula, um homem comum de moral duvidosa. Em vez da mocinha voluntariosa, a mulher fatal cínica e ambiciosa que talvez, no final das contas, ame o protagonista. Confere. Diálogos espertíssimos e cheios de duplo sentido, onde conversas corriqueiras ganham forte conotação sexual. Confere. Essas são apenas algumas das características que foram criadas por esse filme em 1944 e continuam sendo copiadas mundo afora setenta anos depois.

Logo na cena de abertura, numa ousadia semelhante à que o diretor cometeria anos depois em Crepúsculo dos Deuses, o próprio protagonista resume para o espectador o desfecho da trama. Em vez da voz em off, ele faz sua confissão para um ditafone, de corpo presente na tela. A gravação é endereçada a seu chefe e amigo Barton Keyes: ele, Walter Neff, agente de seguros até então sem manchas na reputação, matara um homem:

“Sim, eu o matei. Matei por dinheiro. E por uma mulher. Não consegui o dinheiro nem a mulher. Bonito, não?”

Podemos dizer que o restante do filme é um longo flashback. Numa tarde ensolarada na Califórnia, Neff bate à porta do Sr Dietrichson para tentar renovar uma apólice de seguro prestes a vencer. Quando Phyllis, a sra. Dietrichson, aparece no alto de uma escada, o espectador já pressente que Walter está irremediavelmente condenado. Como em todo bom film noir, o protagonista é esperto o suficiente para saber que está se metendo numa enrascada e fraco o suficiente para, ainda assim, se deixar enredar nela.


“ - Você quer que ele tenha a apólice sem saber disso. E sem que a seguradora saiba que ele não sabe. É uma cilada, não?
- Há algo errado com isso?
- Não, acho adorável.”

Seduzido não apenas por Phyllis mas também por um certo orgulho intelectual que o faz se julgar capaz de cometer um crime perfeito debaixo das barbas de Keyes, seu eficiente e intuitivo supervisor, Walter Neff arquiteta um intrincado esquema para que o assassinato do Sr Dietrichson pareça um acidente: na noite em que ele vai fazer uma viagem de trem, matam-no a caminho da estação. Depois Walter embarca no trem e, evitando fazer contato visual com quem quer seja, passa-se por Dietrichson. O passo seguinte é pular do trem no ponto em que combinara com Phyllis, retirarem o cadáver do carro e jogá-lo nos trilhos do trem. Definitivamente, um acidente. E tendo acontecido em um trem, tal fatalidade daria à beneficiária do seguro uma indenização dupla (double indemnity, como no título original) graças a uma cláusula que a seguradora usa como chamariz, cobrindo em dobro situações que raramente acontecem.

Engenhoso? Sim. Perfeito? Em teoria. A polícia dá-se por satisfeita, mas não Keyes. E é como diz o velho ditado, quem procura acha. E, de tanto pensar, um dia ele deduz passo a passo todo o plano (mais ou menos como faz aquele policial no final de Match Point, de Woody Allen). A única coisa que Keyes não consegue deduzir, e nunca conseguiria sozinho, é a identidade do cúmplice de Phyllis. Não por inépcia e sim por sua objetividade estar obliterada pelo afeto que sente por Walter. O próprio Walter parece temer menos a polícia e seu destino do que a decepção que inevitavelmente causará a Keyes. Interessante notar que a relação de amizade entre os dois homens é o único sentimento verdadeiro e inequívoco da história.

A fotografia excepcional de John Seitz, que criou toda uma gama de texturas e nuances para a penumbra opressiva na qual vive mergulhada a casa dos Dietrichson, tem um apelo fundamental para a trama. As imagens por si só contam uma história. Mesmo o espectador mais desatento não pode deixar de se maravilhar com as tomadas que mostram os personagens perpassados pelas faixas de sombra e luz das persianas. Simplesmente genial. Outro ponto interessante é o fato da trama ser ambientada na Califórnia, o que faz um contraste bem significativo entre a luminosidade exterior e a atmosfera sombria dentro da casa dos Dietrichson. Intenções que a intensa e dramática trilha sonora de Miklós Rózsa ajuda a sublinhar com perfeição.


Baseado numa das histórias do livro Three of a Kind, de James M. Cain, Double Indemnity foi adaptado para as telas pelo próprio Wilder em parceria com Raymond Chandler. Hoje em dia considerado não apenas um grande noir, mas um dos melhores filmes de todos os tempos, Pacto de Sangue foi um projeto recusado por muitos atores, que tinham medo de queimar seu prestígio interpretando um personagem amoral como Walter Neff. Também Barbara Stanwick tinha suas reservas em relação ao trabalho, mas não podia recusá-lo por estar sob contrato. O resultado é que essa excepcional trama de adultério, corrupção e assassinato foi indicada a sete Oscars, incluindo melhor filme e melhor atriz para Stanwick.

A atriz certamente ficou marcada (positivamente, é claro) por esse papel. Com seu penteado exótico e sua dissimulação à toda prova, Phyllis pode ser considerada a primeira femme fatale de Hollywood. Também acertada foi a escolha de Fred MacMurray, que faz um tipo essencialmente simpático a despeito das ações vis que comete. Completando o trio, Edward G Robinson é brilhante em cada cena com sua verve irônica e sua metralhadora giratória de sarcasmo.

Coroando tantos acertos felizes, pode-se dizer que Pacto de Sangue não seria o filmaço que vem assombrando gerações se não fosse capitaneado por um gênio da estatura de Billy Wilder, que transformou os maiores percalços em qualidades. Wilder conseguiu realizar um filme totalmente calcado em assassinato e adultério sem mostrar nenhum dos dois na tela. Hollywood vivia uma época de auto-censura e o Código Hays não permitia que “certas coisas” fossem mostradas. Sugeridas, sim. Nunca exibidas. Assim, o que vemos no momento em que Walter assassina Dietrichson é o rosto de Phyllis, mostrando um leve sinal de satisfação. O que, convenhamos, é muito mais instigante do que um estrangulamento explícito. Já a sugestão de sexo é a própria simplicidade: eles se beijam no sofá. Corte. Na próxima cena, estão sentados um em cada canto. Ela retoca a maquiagem, ele acende um cigarro.

E a cena final, perfeita, também foi uma alternativa ao desfecho original censurado. Depois de uma exibição-teste em que foi rejeitada (por ser excessivamente realista) a cena em que Walter Neff morria na câmara de gás, o cineasta opta por cortar a história no encontro de Neff e Keyes e com o magistral diálogo:

“- Sabe por que você não adivinhou, Keyes? Eu te digo. Porque o homem que você estava procurando estava muito próximo. Bem do outro lado da sua mesa.
- Estava mais perto do que isso, Walter.
- Eu te amo também.”

domingo, 6 de abril de 2014

Um papo com diretor e elenco de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho


Guardem esse nome: Daniel Ribeiro. O diretor paulista estreia seu primeiro longa-metragem já trazendo na bagagem dois prêmios no Festival de Berlim. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho é a versão longa do curta de 2010 Eu Não Quero Voltar Sozinho, um verdadeiro fenômeno na internet que alcançou quase três milhões de visualizações no YouTube. Ambos os filmes contam a história de um adolescente cego e sua descoberta da sexualidade, despertada pela chegada de um novo colega na escola. O A&S participou de uma mesa-redonda com Daniel e com os três jovens que estrelam as duas versões da trama – Guilherme Lobo, Fabio Audi e Tess Amorim. Abrimos o debate com uma pergunta para Daniel ao estilo “o ovo ou a galinha”: afinal de contas, a intenção era fazer um longa desde o princípio ou a ideia teria surgido depois, com o sucesso do curta?

“Eu sempre quis fazer um longa-metragem, mas eu só tinha feito antes outro curta (Café com Leite, 2007). Então, até mesmo por questões de financiamento, eu achei que seria mais fácil experimentar o curta primeiro, mesmo porque eu queria trabalhar com atores jovens e não teria nenhum nome famoso no elenco.”

Sobre a premiação em Berlim (o filme venceu os prêmios FIPRESCI e Teddy), Daniel confessa que a equipe partiu para o Festival sem grandes expectativas, pois já estavam todos felizes pelo simples fato do filme ter sido selecionado para um festival tão importante: “Foi uma grande surpresa, mas com a gente as coisas têm acontecido assim, um passinho de cada vez. Claro que, depois de Berlim, muita gente se interessou pelo filme e isso facilitou o lançamento”.

Um ponto que chama a atenção é a extrema sensibilidade com que a história trata a descoberta da homossexualidade. O diretor explica que quis mostrar um romance entre dois meninos com o máximo de naturalidade e evitar o modo exótico como personagens gays vêm sendo retratados na dramaturgia nacional. “Não é que aquele tipo de personagem também não exista, mas as pessoas não são somente de um jeito. A mesma coisa acontece com os cegos. Não existe regra, cada um lida com a sexualidade ou com a deficiência visual de modo diverso, então isso deu muita liberdade ao filme.”

Da esquerda para a direita: Fabio Audi, Guilherme Lobo, Daniel Ribeiro e Tess Amorim

Perguntados sobre eventuais preconceitos que teriam sofrido, os jovens atores afirmaram que isso não aconteceu. “Até minha avó, que é conservadora e de outra época, veio me dizer que achou bonito e delicado”, brincou Fabio. “Acho que o tema ser tratado de forma tão delicada cativou muito as pessoas, a delicadeza ajuda a combater o preconceito”, completou Tess.

Ao lado das descobertas sexuais e dos dramas próprios da adolescência, também a deficiência visual é abordada na trama de modo naturalista. Guilherme Lobo, que interpreta o personagem cego, contou que, já na época do curta, aprendeu a ler em braille e que só precisou retomar a técnica para o longa. Já o olhar vago que ele utiliza no filme nasceu de uma criação totalmente sua. No que Daniel acrescentou: “Inclusive ele chegou para o teste do curta com esse olhar já definido e eu achei ótimo, porque essa era uma questão que me preocupava muito a princípio. Logo de cara, estava resolvido o maior problema do filme”.  

Ainda sobre a abordagem suave mesmo dos conflitos, é Daniel Ribeiro quem conclui: “Claro que algumas cenas são um pouco idealizadas, afinal de contas é cinema. Mas eu acho que aquele é um mundo possível, mesmo que não seja tão preso ao real. No final das contas, acho que é isso que dá esperança às pessoas”.

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho estreia em circuito nacional na próxima sexta-feira. Clique aqui para ler sobre o filme.


terça-feira, 1 de abril de 2014

Belém: Zona de Conflito


Belém é focado em dois personagens: Sanfur é um adolescente palestino que vive na cidade de Belém e trabalha como informante para o serviço secreto de Israel; Razi é o agente israelense que cuida desse contato e com o qual Sanfur desenvolve uma relação paternal. O filme fala da difícil posição dos dois, já que Sanfur é irmão de um líder palestino que é suspeito, inclusive, de envolvimento com o Hamas; Razi, por sua vez, tem como obrigação colocar os interesses de seu país acima da vida do rapaz com o qual já desenvolveu fortes laços afetivos.

O filme se desenrola em um clima de crescente tensão e consegue dar voz a todos os envolvidos sem pender para nenhum dos dois lados, justamente por colocar os dilemas pessoais acima das questões políticas, étnicas e religiosas. A princípio não se entende bem o porquê do menino palestino estar fazendo jogo de agente duplo, mas o hábil roteiro não deixa nada a esmo e todas as peças fazem sentido no momento oportuno. Uma vez superada a dificuldade inicial de identificar todos os personagens e a função de cada um na trama, o espectador ficará em estado de alerta permanente até o último fotograma.

É sempre uma excelente surpresa ver um filme desta qualidade vindo de um diretor estreante – antes deste filme, Yuval Adler havia realizado somente um curta (Seduction, em 2006). O roteiro do filme foi escrito pelo próprio Adler em parceria com o jornalista Ali Waked, que trouxe para a trama suas experiências como correspondente na Cisjordânia. O longa ganhou o Prêmio Fedeora de melhor filme da mostra Giornate degli Autorino último Festival de Veneza e foi o candidato de Israel ao Oscar deste ano, mas não ficou dentre os cinco indicados. 

Belém estreia na próxima sexta somente em São Paulo e Brasília. No cada vez mais complicado circuito de arte daqui do Rio de Janeiro ainda não há nenhuma previsão, apesar de ter acontecido uma pré-estreia no último final de semana. De qualquer modo, trata-se de um ótimo filme que joga luz sobre um tema por vezes de difícil compreensão para o mundo ocidental.