segunda-feira, 22 de março de 2010

Tradução criativa


Não é apenas aqui no Brasil que os títulos de filmes ganham por vezes traduções digamos... criativas. Ao ler a versão online do jornal italiano La Reppublica (hábito adquirido depois que comecei a estudar italiano mais a sério), me deparei com uma biografia da Kate Winslet. Fã da diva inglesa, fui ler. E dei boas risadas ao descobrir que na terra de Fellini Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças se chama Se Mi Lasci ti Cancello, ou seja, "se me abandonas, te apago". Dramático, não?

quinta-feira, 18 de março de 2010

Um Homem Sério


Os irmãos Coen são insanos. Cada vez mais me convenço disso, e cada vez mais aprecio o cinema sem nenhum respeito às regras que eles fazem. Pois só mesmo esses loucos incríveis poderiam misturar filosofia, matemática, doutrina judaica e teoria do caos numa surreal comédia de humor negro. E não deixa de ser interessante que a filosofia que permeia Um Homem Sério é expressa, a certa altura, por um personagem que aparece apenas naquela cena e diz ao protagonista que ele deve “deixar-se levar pelo mistério”. Curiosamente, esta é uma das respostas mais diretas que o pobre Larry Gopnik consegue ao longo do filme.

Larry Gopnik é um professor de matemática judeu que vê sua vida desmoronar: primeiro a esposa anuncia que quer se separar porque está namorando um vizinho e exige que ele saia de casa. Seu irmão Arthur, desempregado e viciado em jogo, vive no seu sofá há três anos e não dá sinais de procurar emprego nem se mudar. Larry também descobre que o posto efetivo que almeja na universidade está ameaçado por cartas anônimas que denigrem sua imagem. Sem contar o aluno coreano que, insatisfeito com a nota, insiste em suborná-lo. Com os filhos, as coisas também não estão nada bem: Danny está prestes a comemorar o bar mitzvah, mas só quer saber de fumar maconha e escutar rock; a filha mais velha, Sarah, quer juntar dinheiro para uma plástica no nariz e economiza pequenas quantias que rouba dos pais.

Atropelado pela espiral de acontecimentos, Larry busca aconselhamento espiritual com os rabinos de sua sinagoga. Mas estes não apenas nada ajudam como ainda confundem sua cabeça com parábolas esquisitas, conselhos vagos e tradições obscuras. Chama atenção que antes do filme propriamente dito, haja um prólogo contando uma estranha história de um casal judeu que se depara com um dybbuk (espírito maligno da tradição judaica) na Polônia do início do século 20. O que isso tem a ver com o resto do filme? Nada, assim como as digressões dos sábios que Larry procura. Todo o filme é repleto de pistas falsas e acontecimentos que parecem interligados, mas não se conectam (como os dois acidentes de carro, por exemplo). O roteiro também brinca com algumas inversões de expectativa e joga inúmeras referências truncadas, como, por exemplo, o hábito de Arthur se trancar o dia inteiro no banheiro, mas não para se masturbar e sim para sugar um cisto com uma máquina com tubos de borracha. Pelo menos este parece ser o caso; certeza nunca se tem sobre nada neste longa.


Vale destacar que a trama se passa em 1967, em uma comunidade judaica nos subúrbios de Minneapolis. Foi nesse tipo de ambiente que Joel e Ethan Coen, eles próprios judeus, cresceram. Neste filme personalíssimo, os Coen dão um descanso ao caipira americano do meio-oeste – tipo constantemente ridicularizado pela dupla – para tirar um sarro de suas próprias origens e os chamados homens sérios e respeitáveis da comunidade. Larry é ele próprio um homem sério, pautado pela ordem e pela matemática, cumpridor de seus deveres. Portanto, não aceita que o caos esteja sugando sua ordeira vida pelo ralo.

Michael Stuhlbarg, ator com prestigiada carreira teatral que já foi indicado algumas vezes ao Tony, dá um show de interpretação neste seu primeiro papel principal na sétima arte. Seu Larry é confuso, reprimido, contido, com uma vida interior que grita a cada close em seus olhos espantados por trás dos óculos fundo-de-garrafa. Não gosto nem de lembrar que ele não foi indicado ao Oscar por esse papel, ainda mais considerando que Jeremy Renner foi. O elenco coadjuvante é igualmente competente, com destaque para Richard Kind como o abestado Arthur e Aaron Wolff como Danny – a cena do garoto no bar mitzvah é hilária.

Ao final do longa, um pequeno conflito pode apresentar-se na mente do espectador: ao criticar a ansiedade das pessoas em buscar respostas lógicas e, portanto, não oferecer nenhuma, os Coen estariam usando a filosofia proposta pelo longa para não precisar pensar em um desfecho? É possível. Mas isso importa? Assim como eles, apenas lanço a pergunta. Cada um decide que resposta melhor lhe serve.

A partir de amanhã nos cinemas.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Um Sonho Possível


Podemos dizer que Um Sonho Possível já estreia por aqui cercado de polêmica. Não que o filme em si seja polêmico e sim por ter sido o responsável pelo primeiro Oscar de Sandra Bullock, ironicamente no mesmo ano em que a atriz foi também agraciada com um Framboesa de Ouro. Sandra está bem no filme? Sim, visto que se trata de um daqueles papéis feitos para favorecer uma atriz e ela, que não nasceu ontem, sabe aproveitar todos os momentos-chave para valorizar sua performance e demonstrar que tem talento. Mas ela merecia o Oscar? Bom, não era para tanto. Mas Reese Witherspoon e Julia Roberts trilharam esse mesmo caminho antes dela.

Baseado no livro de The Blind Side: Evolution of a Game, de Michael Lewis, o longa narra a história verídica de Michael Oher, adolescente com dificuldades de aprendizagem que encontra seu rumo graças à aceitação e amor da família que o adota. Michael teve uma infância traumática: aos sete anos foi arrancado pelas autoridades dos braços da mãe viciada. Depois disso esteve em diversos lares adotivos, fugiu de todos e aos dezesseis anos vive como um sem-teto depois que a família que o abrigava e lhe arrumou uma vaga numa escola chegou à conclusão de que não podia mais tê-lo em casa.

Só que Michael tem algo a seu favor: todas as características físicas para ser um bom jogador de futebol americano. É então que, numa noite fria, entra em sua vida Leigh Anne, esposa de um ex-atleta dono de uma cadeia de fast-food. Ao ver que o garoto – que estuda no mesmo colégio de seus filhos – dorme ao relento, Leigh convida-o para passar a noite em sua casa. Aquela noite se transforma em muitas, e Michael acaba se tornando parte de família. Logo fica claro que suas dificuldades são resultantes mais de falta de orientação familiar do que propriamente de um QI baixo e ele vai superando barreiras para progredir nos estudos e obter boas oportunidades de se desenvolver como atleta – nos colégios americanos, uma coisa não é desvinculada da outra.

Um Sonho Possível é mais um daqueles longas feitos sob medida para parecerem simpáticos. Uma trama edificante e politicamente correta, que ainda conta com o aval de ter sido baseada numa história verídica. E como os americanos adoram essas histórias de superação, como se precisassem delas para reafirmar constantemente a imagem de si próprios como os mocinhos e de seu país como “terra das oportunidades”. E é isso que mais incomoda em Um Sonho Possível (aqui, piorado pelo título em português lacrimoso): o modo como Leigh Ann e toda a sua família é sempre altruísta, honrada e desinteressada. Tudo muito cristão, muito certinho o tempo todo, nem mesmo os filhos em nenhum momento questionam a atitude repentina da mãe. E com isso, o filme perde em dramaticidade. É um filme sem conflitos, de um modo geral. O único conflito que surge perto do desfecho é tímido e pálido, não chega a causar a mínima apreensão no espectador – afinal de contas, todo mundo ali é civilizado e evoluído demais.


Resumindo: Um Sonho Possível é agradável de ser assistido, especialmente pela espontaneidade e carisma do garoto Jae Head (o SJ), mas também é esquecível na mesma medida. Provavelmente seu lançamento em tela grande se deve única e exclusivamente à premiação de Miss Bullock. Sexta-feira nos cinemas.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Ensaio Sobre Carolina


Um dos grandes baratos de assistir a uma peça ou a um filme do qual pouco ou nada se sabe é a possibilidade de ser surpreendido. E eu confesso: o motivo inicial de ter ido ao espetáculo Ensaio Sobre Carolina foi o fato de ter recebido um convite, já que ainda não conhecia o excelente trabalho da companhia teatral Os Crespos. A informação básica de que dispunha sobre a peça foi que tinha como ponto de partida o livro Quarto de Despejo, Diário de Uma Favelada, escrito no início dos anos 60 pela catadora de papel Carolina Maria de Jesus. Na época, a tiragem de 14 mil exemplares esgotou rapidamente e o relato foi traduzido para 13 idiomas. Carolina estudou somente até o segundo ano do ensino fundamental e era moradora da favela do Canindé. Logo me preparei para assistir a um espetáculo engajado e sisudo. Engano meu. Engajado, com certeza; sisudo, de modo algum.

O grupo formado pelas atrizes Maria Gal, Lucélia Sérgio, Mawusi Tulani, Joyce Barbosa e pelo ator Sidney Santiago (dos filmes Os Doze Trabalhos e O Signo da Cidade) é oriundo da ECA (Escola de Arte Dramática da USP) e convidou para a direção deste espetáculo seu ex-professor José Fernando de Azevedo. A montagem tira partido de muito bom humor e doses cavalares de ironia para dramatizar, de forma episódica, trechos do diário de Carolina. A concepção cênica é simples e extremamente eficiente, formada por cadeiras dispostas por todo o espaço, sendo que este é delimitado por um varal com roupas dependuradas. A peça não separa os atores do público e literalmente acontece em todos os lugares, ao alternar os focos da ação e com os atores se deslocando entre as pessoas.

A abordagem proposta dribla com inteligência o tom panfletário e o sentimentalismo barato e torna ainda mais cortante os preconceitos sofridos não apenas pela personagem, mas pelo brasileiro em geral. O que Ensaio Sobre Carolina evidencia é que as agruras vividas pela protagonista, na verdade, são comuns a todo cidadão nascido negro ou pobre ou de algum modo desprovido de status social. O elenco, formado apenas por atores negros, se reveza no papel de Carolina e de seus diversos algozes, o que reforça essa idéia e ainda tem a vantagem extra de deixar a encenação bem dinâmica e ágil. Vale destacar que os atores vão fundo nesta linha de deboche e autoironia. Um momento curioso é quando eles ilustram os preconceitos sociais reproduzindo algumas piadas racistas e se pode sentir um certo ar de constrangimento pairando pela platéia.

O grupo utiliza o canto, a dança e a expressão corporal como ferramentas de representação, além de um telão em que imagens são por vezes projetadas em tempo real. E que domínio vocal e corporal tem o elenco! Com o auxílio do músico Giovanni Pereira, eles não somente interpretam como cantam o cotidiano de Carolina em músicas que tiram sarro dos grandes musicais da Broadway, com a diferença de que as letras, em geral, relatam privações terríveis. Perucas platinadas, vestidos de debutante e até a Globeleza servem de mote para a ferina crítica social, sempre usando para isso os próprios símbolos de subserviência que escravizam e discriminam. Genial mesmo. Numa cena teatral quase sempre dominada por comédias descerebradas ou musicais exuberantes, é preciso conhecer o vigor e a originalidade do trabalho da companhia Os Crespos. E considerando o valor módico do ingresso (10 reais), não tem desculpa para deixar de ir.

Serviço:
Ensaio Sobre Carolina, sábados às 20h e domingos às 19h, no Espaço Teatro de Anônimo da Fundição Progresso (Rua dos Arcos, 24 – Lapa – Telefones: 2240-2478 / 2524-0930). Ingressos a 10,00. Duração: 100 minutos. Até 25 de abril.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Histórias de Amor Duram Apenas 90 minutos


Zeca, aos 30 anos, ainda é um cara sem rumo na vida que vive da herança deixada pela mãe falecida. Embora talentoso com as palavras, vive às voltas com um romance estacionado na página 50 e passa seus dias na mais depressiva vagabundagem. Mas, apesar de não fazer nada de produtivo, ele não tem problemas financeiros e é casado com uma bela e independente professora de artes, Julia. O relacionamento caminha aos tropeções, em grande parte por causa das diferenças de temperamento. Ela vai atrás do que quer, ele fica sentado reclamando da vida. As coisas se complicam quando Zeca descobre que Julia o está traindo com Carol, uma dançarina de tango argentina liberal e cheia de alegria de viver. E complicam-se mais ainda quando o próprio Zeca começa a se encantar pela moça.

A dinâmica entre os personagens é muito interessante, a começar pelo fato do protagonista ser um sujeito imaturo – por vezes, chato mesmo – que cava seus próprios problemas e se afunda em vitimações. Mas o roteiro em nenhum momento glorifica seu modo de ser, seu estilo de vida; pelo contrário, todos os outros personagens o criticam com argumentos mais do que válidos. E o mais interessante é que a narração cheia de auto-comiseração feita por Zeca em off contrasta com as conclusões que o próprio espectador pode tirar a respeito dele. A começar pelo seu próprio pai, que embora seja apresentado por Zeca como repressor, vai se delineando diante dos nossos olhos como um cara que apenas não aguenta mais ver o filho não tomar nenhum rumo na vida. Ele tem pouca paciência sim, mas quem não teria após aturar a mesma ladainha por anos e anos? O mesmo se dá com Julia, que até gosta dele... mas não o respeita muito.

Paulo Halm, tarimbado roteirista, faz sua estreia como diretor de longas-metragens com essa inusitada tragicomédia. A trama tem uma lógica parecida com a de Pequeno Dicionário Amoroso (cujo roteiro foi escrito por ele) e não pretende apresentar um conflito fechado e sua solução e sim fazer um recorte na vida do protagonista. Zeca, apesar de sua idade cronológica, é um garoto mimado e reclamão e não é apenas essa desilusão amorosa em particular que o transformará em um homem. Mas talvez ele aprenda alguma coisa, por mínima que seja, a partir da série de burradas que comete com Julia e Carol. Ou não, como diria Caetano Veloso – que, aliás, abrilhanta a trilha sonora com sua versão de Nature Boy.

Considerando apenas seu argumento central, Histórias de Amor Duram Apenas 90 Minutos poderia ter se convertido em um filme pesado, sério, cheio de implicações psicanalíticas. Mas a abordagem proposta por Halm é de puro deboche, ressaltando o ridículo das situações e não seu lado patológico – o que fica evidente já pelo título metalinguístico. Segundo Halm, que não gosta de rotular seu filme como comédia romântica, “o filme é sobre a geração que, apesar de ter talento, nunca decola. São escritores que escrevem e não publicam, cineastas que não filmam, compositores que não gravam”. Tendo como cenário a mítica Lapa, está criado o contexto ideal para que se desenrolem com muita graça as situações vividas por Zeca, Julia, Carol e mais uma penca de personagens colaterais.

O casal Caio Blat e Maria Ribeiro, que também são produtores do longa, interpretam na tela Zeca e Julia. Como não podia deixar de ser, a química entre os dois é excelente e a chegada da atriz argentina Luz Cipriota só enriquece o jogo cênico, formando um triângulo amoroso muito engraçado. Caio é tão talentoso que consegue tornar simpático um personagem de tão poucas qualidades, do mesmo modo que Maria atua com tanta verdade que faz a traição parecer coisa mais natural do mundo. Destaque para as inusitadas circunstâncias do primeiro contato mais íntimo entre Zeca e Carol. É de chorar de rir.

Ilha do Medo


Quando um cineasta da importância de Martin Scorsese realiza um filme como Ilha do Medo logo depois de finalmente receber o seu tão aguardado Oscar, a gente tem que se curvar ao cara. Eu explico: como qualquer cinéfilo bem sabe, Scorsese construiu sua fama e prestígio a partir de verdadeiros épicos sobre o crime organizado americano – caso do longa que lhe deu o Oscar, Os Infiltrados. Ou então produziu com esmero filmes históricos e grandiosos, como A Última Tentação de Cristo ou o recente O Aviador. E eis que agora, aos 68 anos de idade e com mais de 40 filmes no currículo, o cineasta mais uma vez abandona sua zona de conforto e se permite mergulhar nessa trama que transita entre o film noir e o terror psicológico. É claro que ele sabia que os entendidos iriam rotular seu Ilha do Medo como um “filme menor”, a exemplo do que ocorreu com Cabo do Medo há quase duas décadas. Sim, ele sabia. E fez o filme assim mesmo. Não é pra tirar o chapéu?

O fidelíssimo roteiro de Laeta Kalogridis é baseado no livro Paciente 67, de Dennis Lehane. Para quem não está ligando o nome à pessoa, Lehane é o autor de Sobre Meninos e Lobos e simplesmente o melhor escritor de romances policiais da atualidade. Também é dele Gone Baby Gone, que ganhou as telas e conseguiu transformar Ben Affleck em um diretor de primeira. E para quem conhece o universo noir de Lehane, a primeira surpresa já vem daí, pois Ilha do Medo inicia como uma trama policial semelhante às outras e depois vai lentamente se transformando em algo mais. Mais doentio, mais difuso, mais perturbador. É importante ressaltar que a história é ambientada nos Estados Unidos pós-guerra, com todas as teorias de conspiração, paranóias e terrores que a época acarreta.

Leonardo DiCaprio e Mark Ruffalo são os policiais federais Teddy Daniels e Chuck Aule, que são chamados para investigar o desaparecimento de uma interna de um presídio psiquiátrico localizado em uma ilha de difícil acesso. Conforme somos informados logo na chegada, só existe uma entrada e saída do local. Rachel Solando teria desaparecido, descalça, de uma cela trancada sem deixar vestígios. Para onde poderia ter ido, em uma ilha cercada de mar bravio e penhascos intransponíveis? Ao mesmo tempo em que um furacão deixa o local ainda mais isolado e cresce a sensação de claustrofobia, Teddy começa a desconfiar que os médicos realizam experiências ilegais com os presos e teme que os responsáveis pela instituição tomem medidas para silenciá-lo.

Com um certo ar de filme B e múltiplas referências ao cinema de Alfred Hitchcock, Martin Scorsese nos leva a um universo pontuado por terrores, culpa e arrependimentos. Teddy tem motivos ocultos para estar ali e isso faz com que não confie em ninguém, nem mesmo em seu parceiro. Paranóia? Cautela? Tudo é possível. Dizem que antes do início das filmagens, Scorsese pediu a toda sua equipe que assistisse a Um Corpo Que Cai (Vertigo, no original). Faz sentido. Vertigem, claustrofobia, pânico. Sentimentos que escorrem de Teddy e vazam para o espectador, que “entra” na Ilha Shutter e a enxerga pelo seu olhar neurotizado.


O excelente elenco também ajuda, com um Leonardo DiCaprio totalmente maduro e seguro de si. Em sua quarta colaboração com Scorsese, Leo está ainda mais à vontade do que em Os Infiltrados e leva o filme nas costas. Em ótimo contraponto ao seu angustiado personagem, um Mark Ruffalo tranquilo e um Ben Kingsley dúbio dão solidez à trama. O filme ainda se dá ao luxo de ter atores como Max Von Sydow, Patricia Clarkson e Jackie Earle Haley em pequenas e marcantes participações.

Outro ponto que é preciso destacar é a perfeição técnica. O visual é soberbo: ângulos inusitados, fotografia assustadora, e uma trilha sonora dramática e estridente que remete mais uma vez a Hitchcock e ao próprio Scorsese, já que se pode notar uma semelhança desta trilha com a de Cabo do Medo. Tudo isso finalizado com uma edição eficiente, capaz de levar o cinéfilo para um estranho passeio nos recantos mais sombrios do ser humano. Outra discussão interessante, e que estava em alta na época em que se passa o filme, diz respeito ao conflito entre a corrente da psiquiatria que defendia intervenções cirúrgicas (ou seja, a medieval lobotomia) e a mais progressista, que se apoiava na farmacologia.

Por fim, vale lembrar que sacar ou não a virada final (que algumas pessoas estão comparando às pegadinhas picaretas do Shayamalan) não é tão importante assim. E mesmo que o espectador perceba o que está de fato acontecendo, com certeza não entenderá o mistério em sua totalidade. Só posso dizer que ter lido o livro e, portanto conhecer toda a trama de antemão, não impediu em nada que eu apreciasse o filme. E, de todo modo, o roteiro é bem alinhavado em sua progressão. As atitudes de alguns personagens que causam estranheza – como, por exemplo, o ar de deboche do guarda que os recepciona – fazem bastante sentido mais adiante.

Ilha do Medo não é um típico filme de Scorsese. Mas isso, definitivamente, não o torna menor. A partir de hoje nos cinemas.

Lembranças


Lembranças é veículo para Robert Pattinson. Mas no mau sentido. Diferentemente do irregular porém simpático Uma Vida Sem Regras, que se esforçava para sair do lugar-comum, este banalíssimo Lembranças não faz nada além de girar em torno de sua estrela. E não é que eu tenha alguma implicância com Pattinson. Pelo contrário, acho que o rapaz tem carisma e realmente está se empenhando em ser mais do que um fenômeno teen. Tudo indica que terá um bom futuro na sétima arte, mas isso se não ficar queimando sua imagem com bobagens deste tipo.

Pattinson é Tyler, pobre menino rico que prefere levar uma vida modesta e sem rumo depois que o suicídio do irmão mais velho caiu como uma bomba em sua família. Do pai rico e workaholic quer distância; a mãe é carinhosa e compreensiva, mas casou-se novamente. De todas as pessoas em sua vida, sua maior conexão é com a irmã de onze anos, Caroline, tida como “esquisita” pelas meninas do colégio por conta de sua introspecção. Já Ally, como vemos em um flashback na primeira cena, assistiu ao assassinato da mãe em um assalto quando tinha apenas nove anos e mora com o pai, um policial superprotetor. Tyler se aproxima dela por causa de um pretexto bem tolo, mas logo se interessa genuinamente pela garota. Teriam eles algo em comum além dor da perda?

Partindo de uma premissa sem sal, mas que poderia de qualquer modo render um filme interessante, o diretor Allen Coulter (o mesmo do mediano Hollywoodland) realiza um longa preguiçoso, previsível, sem um pingo de criatividade. Os clichês chegam ao nível do velho mote da aposta entre amigos que será fatalmente descoberta, só para dar uma idéia da sensação de déjà vu que sentimos a cada fotograma. O casal formado por Robert Pattinson e Emilie de Ravin é fofinho, mas tem que protagonizar seqüências de sedução juvenil batidas como aquela velha brincadeirinha de um jogar água no outro. Chega a ser constrangedor.


Sem contar as falhas de roteiro, como por exemplo uma conversa em que Tyler e seu melhor amigo falam sobre mulheres bonitas que ficam com sujeitos sem graça e citam a primeira-dama da França como exemplo. Bom, o romance de Carla Bruni com Nicolas Sarkozy veio a público somente em 2007, época posterior a qual se passa a história. Por falar em ambientação temporal, o único motivo para o filme se passar numa época anterior aos dias de hoje é criar um desfecho pseudo-impactante. Mas o efeito geral soa apelativo e bobo. Ou seja, no único momento em que a produção tenta ser criativa, só consegue terminar de afundar o que já não estava muito bom.

Noves fora, salva-se apenas o elenco, que consegue ir bem com tão pouco que lhe é dado para trabalhar. Os lampejos de sentimento e verdade que enxergamos em algumas cenas isoladas é mérito exclusivo deles.

Estreou hoje.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Oscar 2010


Numa cerimônia onde nada fugiu muito do previsto, Guerra ao Terror confirmou seu favoritismo sobre Avatar. O filme de Kathryn Bigelow sobre a rotina nada tranquila de um grupo de soldados americanos especializados em desarmar bombas no Iraque arrastou seis Oscars, incluindo os de melhor filme e melhor direção. A vitória de Bigelow como diretora é histórica, por tratar-se da primeira mulher premiada nesta categoria. Já Avatar, o filme de seu ex-marido James Cameron, teve que contentar-se com três prêmios técnicos (efeitos visuais, direção de arte e fotografia). A própria cineasta parecia não acreditar muito na quantidade de prêmios e ficou desnorteada quando saía do palco emocionadíssima com seu Oscar de direção e foi chamada de volta segundos após para receber o de melhor filme.

Ainda dentro do estritamente previsto, confirmaram-se as premiações de Sandra Bullock e Jeff Bridges como melhores atores e de Mo’Nique e Christoph Waltz como coadjuvantes, assim como Up – Altas Aventuras como melhor longa de animação. A primeira pequena surpresa da noite veio na categoria roteiro adaptado, estatueta que parecia destinada a ser o prêmio de consolação para Jason Reitman e seu Amor Sem Escalas. Para surpresa geral, o Oscar foi para Geoffrey Fletcher, roteirista de Preciosa. Ou seja: Amor Sem Escalas foi um dos ótimos filmes que saiu de mãos abanando, mesma situação do igualmente ótimo Educação. Mas nem todas as surpresas foram negativas, já que o excepcional O Segredo dos Seus Olhos de Juan José Campanella suplantou o favoritismo do alemão A Fita Branca e deu o Oscar de melhor filme estrangeiro para a Argentina – o país venceu anteriormente em 1985, com A História Oficial. Parabéns para os hermanos por esta bela e merecidíssima vitória.

Um dos momentos bacanas foi a homenagem aos filmes de terror, constantemente tratados com desdém em premiações e festivais. Kristen Stewart e Taylor Lautner apresentaram um clipe com cenas de longas do gênero que iam desde clássicos como Nosferatu e O Exorcista até o último premiado do estilo, O Silêncio dos Inocentes (1992). Só não deu para entender o que o doce Edward Mãos-de-Tesoura fazia em companhia de gente como Chucky, mas tudo bem. De qualquer modo, valeu a lembrança.

Confiram abaixo a relação completa de indicados e fotos de alguns vencedores:

Filme – Guerra ao Terror
Direção – Kathryn Bigelow (Guerra ao Terror)
Ator – Jeff Bridges (Coração Louco)
Atriz – Sandra Bullock (Um Sonho Possível)
Ator Coadjuvante – Christoph Waltz (Bastardos Inglórios)
Atriz Coadjuvante – Mo'Nique (Preciosa)
Roteiro Adaptado – Preciosa
Roteiro Original – Guerra ao Terror
Longa de Animação – Up – Altas Aventuras
Filme Estrangeiro – O Segredo dos Seus Olhos (Argentina)
Direção de Arte – Avatar
Fotografia – Avatar
Figurino – The Young Victoria
Montagem – Guerra ao Terror
Trilha Sonora – Up – Altas Aventuras
Canção Original – The Weary Kind (Coração Louco)
Edição de Som – Guerra ao Terror
Mixagem de Som – Guerra ao Terror
Efeitos Especiais – Avatar
Maquiagem – Star Trek
Documentário Longa-Metragem – The Cove
Documentário Curta-Metragem – Music by Prudence
Curta de Animação – Logorama
Curta Live Action – The New Tenants

Kathryn Bigelow entre o roteirista Mark Boal (esq) e o produtor George Shapiro

O simpático e irreverente Jeff Bridges, o eterno"dude" dos irmãos Coen

Sandra Bullock (também "premiada" com um Framboesa de Ouro) e Christoph Waltz, o temido "caçador de judeus" de Bastardos Inglórios

Campanella recebe o Oscar de melhor filme estrangeiro das mãos de Pedro Almodóvar (esq) e Mo'Nique, que teve atuação inesquecível em Preciosa e fez um dos discursos mais emocionados da noite

sábado, 6 de março de 2010

Direito de Amar


Amanhã é dia de Oscar e mais um filme pequeno a abocanhar indicações importantes ao prêmio (melhor ator) e ao Globo de Ouro (melhor ator, atriz coadjuvante e trilha sonora) foi este Direito de Amar. Antes de mais nada, chega a ser uma heresia que o longa de estréia do moderníssimo estilista Tom Ford como diretor tenha recebido por aqui um título tão absurdamente cafona. Mas tudo bem. A Single Man, no original, acompanha um dia decisivo na vida do professor universitário George. Deprimido desde que o namorado Jim morreu em um acidente de carro e cansado de levar uma vida de aparências, ele pretende se suicidar. Devido ao ambiente repressor da época (o longa se passa nos anos 50), George foi proibido até mesmo de comparecer ao funeral do homem com quem conviveu por dezesseis anos. Metódico e detalhista, ele se dedica a planejar cada detalhe de sua morte, como a escolha do terno que deve ser usado no funeral ou o modo mais “limpo” de acabar com a própria vida.

A Single Man é, certamente, um belo filme. Melancólico, triste, esteticamente interessante, pontuado por uma eficaz trilha sonora. Uma bela estréia para Tom Ford atrás das câmeras. Mas não há dúvida de que o que realmente eleva o nível da produção é a interpretação seca, introspectiva e extremamente angustiante de Colin Firth. Ator veterano, competente, mas que talvez somente agora, com este papel, tenha sua primeira grande chance de demonstrar a que veio, Firth é essencialmente “maior” do que o longa em si. Não me entendam mal. Trata-se de um bom filme, mas, apesar de suas inegáveis qualidades, a produção acabaria sendo mais do mesmo sem a força da interpretação de seu protagonista.

E uma coisa muito difícil para um ator é interpretar um sujeito prosaico. George está morrendo por dentro, mas se mantém firme em sua máscara social durante toda a projeção. Com seus ternos impecáveis, seu nó de gravata windsor, seus óculos de aros grossos, enfim, toda sua boa educação de cavalheiro inglês, ele apenas se permite alguns momentos de verdade quando a sós com a amiga Charley (Julianne Moore, em atuação supervalorizada). É maravilhoso ver um ator construir tanta verdade interior a partir de tão frágeis sinais exteriores. Uma pena que Firth tenha que disputar esse Oscar com o imbatível Jeff Bridges em Coração Louco (ver comentários abaixo). Mas também não deixa de ser curioso que ambos tenham escolhido o caminho da moderação em suas interpretações.

Vale conferir, sobretudo pelo emocionante trabalho de Colin Firth.

terça-feira, 2 de março de 2010

Coração Louco


É a velha história, cara conhece garota que pode mudar sua vida infeliz. Mas mudar, mesmo que seja para melhor, nem sempre é fácil. No final, tudo se resume a isso. Bad Blake é um cantor de música country falido, que ganha a vida se apresentando em bares de quinta e boliches de beira de estrada por qualquer trocado. Bad tem 57 anos e quer preservar sua fama de rebelde: vive na estrada, bebe sem parar e arrasta para seu quarto qualquer mulher que lhe faça uma festinha depois de um show. E poderia passar o resto da vida assim, bebendo e comendo todas, caso seu coração louco um dia não se descompassasse pela jornalista Jean Craddock.

Jean, apesar de bem mais jovem, não é nenhuma ingênua. Ela tem um filho pequeno para criar e sabe que envolver-se com Bad só vai trazer encrenca para sua vida. Mas acontece que a moça consegue enxergar o cara legal por trás da figura bêbada e decadente. E convenhamos que Jeff Bridges, mesmo com a caracterização desleixada, ainda é bem charmoso. Sem grandes arroubos ou escândalos, mantendo seus sentimentos muito mais contidos em olhares e silêncios do que em frases de efeito, os dois tentam fazer o amor dar certo. E pode-se dizer que a relação deles é tão desconcertante justamente por estar nessa delicada região do muito difícil porém possível.

Outro tema interessante que o filme aborda é a exploração de um artista que caiu no esquecimento por outro mais famoso e menos talentoso. Nos velhos tempos, Bad ensinou muito ao novato Tommy Sweet. Agora Tommy é um fenômeno country que lota estádios e lhe oferece uma boa grana para que ele componha músicas novas, sugando para si o melhor da produção de seu antigo mentor. E Bad ainda tem que ser muito grato em poder abrir o show de seu ex-protegido – a escolha do mascarado Colin Farrell para o papel de Tommy não podia ser mais acertada. Outro ponto positivo é que o filme não pesa a mão nas atitudes de Bad sob efeito do álcool. Trata-se muito mais do que “poderia acontecer” do que o que de fato acontece, e isso tira os problemas do personagem da esfera restrita do alcoolismo e leva para o universo de qualquer pessoa que errou e busca uma reabilitação.

Jeff Bridges, favorito absoluto para o Oscar, é sem dúvida a alma do filme. Uma coisa que chama atenção é que sua atuação é muito contida, ao contrário do que costumamos ver em personagens alcoólatras. São pequenos detalhes, como a fivela do cinto sempre solta e uma leve imprudência natural, que moldam a personalidade de Bad Blake. Sua entrega impressiona também nos momentos em que solta a voz, com destaque para a bela cena em que ele volta a compor. Mas ninguém atua tão bem sem o respaldo de uma boa companheira de cena. Maggie Gyllenhaal é simplesmente luminosa e sua interpretação, igualmente emocionante. Os dois, juntos, arrancam lágrimas dos corações mais durões.


Em tempos de cifras astronômicas e tantos efeitos em 3D, são os pequenos filmes que estão surpreendendo e emocionando em 2010. E talvez uma das coisas mais difíceis seja trabalhar em cima da simplicidade, sem cair na tentação de agradar o público ou inventar viradas inesperadas. É essa lição – a de que o pouco pode ser muito – que o jovem diretor estreante Scott Cooper ensina a muito cineasta experiente com este singelo e comovente Crazy Heart.

Sexta-feira nos cinemas. Confiram!