quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A Gaiola Dourada


Maria e José são portugueses que vivem há mais de trinta anos na França e personificam o clichê atribuído a seus conterrâneos: ele é pedreiro; ela, porteira de um condomínio. São confiáveis, trabalham pesado, não sabem dizer não e, por isso mesmo, acabam sendo constantemente explorados não somente por seus patrões, mas também por amigos e parentes. Uma inesperada herança que teria como única condição o regresso a Portugal parece ser o milagre caído do céu, mas, como eles logo se dão conta, tomar as rédeas da própria vida pode ser bastante complicado.

Cuidado quando alguém te considera indispensável, porque isso provavelmente quer dizer que estão se aproveitando de você – é o que este simpático filme ensina. A questão é que Maria e José não se enxergam assim, eles simplesmente gostam do que fazem e querem fazer seu serviço da melhor maneira possível. Não é um fardo para eles. Portanto, a riqueza – e a perspectiva de não fazer nada – lhes parece muito mais assustadora do que a labuta diária. Sem contar que retornar ao país de origem tendo filhos adultos que jamais pisaram lá não é tão simples assim.


Poderia ser um drama existencial, mas A Gaiola Dourada opta pela comédia de costumes. Assim como em As Mulheres do Sexto Andar, o filme retrata com graça a coexistência entre uma burguesia francesa supostamente liberal, mas que prefere não se lembrar dos imigrantes que fazem o trabalho duro, já que é mais fácil mantê-los sob uma capa de invisibilidade do que enxergá-los sob a ótica da tão decantada liberdade, igualdade e fraternidade. 

O elenco carismático é liderado pelos portugueses Rita Blanco e Joaquim de Almeida – que ainda é lembrado por aqui como o Sherlock Holmes de sotaque lusitano de O Xangô de Baker Street. Em sua estreia na direção de um longa-metragem, o ator Ruben Alves (que também interpreta um personagem e é um dos roteiristas do filme) realiza um filme que conquista pela simpatia e oferece entretenimento de boa qualidade. É bem verdade que o roteiro deixa de se aprofundar em um tema que poderia render ramificações bem legais sobre a identidade portuguesa dentro da União Europeia, mas é preciso respeitar a opção de Alves pela comédia ligeira, ainda mais porque ele a realiza com muita competência. 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

12 Anos de Escravidão


Está chegando aos cinemas um dos grandes filmes que passarão por nossas telas neste ano. Trata-se do pungente 12 Anos de Escravidão. O filme é baseado na inacreditável autobiografia de Solomon Northup, um homem livre que é sequestrado, vendido como escravo e leva todos esses anos do título para conseguir reverter a situação. Violinista de talento, Solomon vivia com a esposa e os dois filhos na Nova Iorque do século XIX quando foi atraído com uma falsa proposta de trabalho, sequestrado e comercializado como se fosse um escravo fugitivo. Mesmo sendo livre aos olhos da justiça (que muitas vezes é cega no mau sentido), como fazer valer seus direitos se ninguém se dispunha a ouvi-lo?


Steve McQueen, que tem em sua filmografia dezenas de curtas e dois longas, alcança a maturidade como cineasta neste seu terceiro longa-metragem. Se nos impressionantes Hunger e Shame o fator humano e as mazelas dos protagonistas eram mais importantes do que os aparatos técnicos, em 12 Anos de Escravidão McQueen consegue conciliar a sua já característica excelente direção de atores com todos os demais desafios que englobam a realização de uma superprodução. O que equivale a dizer que o filme consegue ser grandioso e minimalista ao mesmo tempo.


A bravura do elenco é capítulo à parte. O talentoso Chiwetel Ejiofor finalmente tem um papel à altura de sua expressividade e recheia seu personagem de sofrimento e humanidade sem resvalar na pieguice, assim como a estrela em ascensão Lupita Nyong’o. Já Michael Fassbender – figurinha carimbada dos filmes de McQueen – interpreta o grande vilão escravagista com nuances de amargura e contradições que o tornam fascinante. Aliás, muitos aspectos da trama circulam por uma zona cinzenta que só engrandece o filme. Um bom exemplo disso é o personagem de Benedict Cumberbatch, caracterizado como um senhor de escravos de bom coração – o que por si só já é uma contradição –, mas que não move uma palha quando tem de fato a oportunidade de se comportar de modo consciente. Vale destacar, ainda, as boas participações de Sarah Paulson, Paul Giamatti e Paul Dano.


12 Anos de Escravidão venceu o Globo de Ouro de melhor filme dramático, os BAFTAs de melhor filme e melhor ator e concorre a nove Oscars: filme, direção, ator, ator e atriz coadjuvante, figurino, direção de arte, edição e roteiro adaptado. Deve levar alguns desses prêmios, em especial melhor filme. Tudo indica que este ano as escolhas da Academia serão bastante justas. Aguardemos e torçamos.

Clique aqui para ler sobre o livro no qual se baseia o filme.

Clube de Compras Dallas


Eis que chega às nossas telas mais um concorrente ao Oscar baseado em uma história real. Clube de Compras Dallas acompanha a trajetória do eletricista texano Ron Woodroof após ser diagnosticado com o vírus da AIDS, desde os preconceitos sofridos (eram os anos 80, quando a doença ainda era vista como algo que atingia somente homossexuais) até sua reação contra os médicos e a indústria farmacêutica. Ron descobre remédios mais eficazes que não pode obter legalmente nos Estados Unidos e passa a contrabandeá-los do exterior. Os resultados são tão bons que ele tem a ideia de criar o clube do título, que ajuda inúmeros doentes tidos como terminais e, de quebra, o deixa rico.

Esse é o que se chamaria de um filme-muleta. Apoiado exclusivamente no talento de seus atores e com uma dramaturgia, no melhor dos casos, tímida. Com um roteiro esquemático e previsível, o filme mantém o espectador ligado graças ao tour de force promovido por Matthew McConaughey e, principalmente, Jared Leto. Matthew, que ultimamente vem se esforçando para recuperar os anos perdidos em infindáveis tipos de cafajestes que se regeneram em comédias românticas açucaradas, esbanja talento na pele desse personagem homofóbico, grosseiro e determinado. Jared é outro que nunca foi levado muito a sério e parecia nem estar muito preocupado com isso, já que divide a carreira de ator com a de roqueiro (ele também é vocalista da banda 30 Seconds to Mars). Sua interpretação como o transexual Rayon é de uma delicadeza poucas vezes vista. Enfim, são esses dois caras de prestígio até então limitado que dão alma a um filme que dificilmente funcionaria sem a presença deles, já que elementos como roteiro, direção e edição beiram o limite do constrangimento.


O filme concorre a seis Oscars: melhor filme, ator, ator coadjuvante, edição, roteiro original e maquiagem. Deve levar os dois prêmios de atuação e o de maquiagem, o que é justo (embora a atuação de Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street seja superior à de Matthew), mas é muito estranho que sequer tenha sido indicado nas outras três. O roteiro e a edição são justamente os pontos fracos do longa, já que o texto de Craig Borten e Melisa Wallack não consegue evitar a banalidade e o maniqueísmo, enquanto a montagem faz o filme parecer uma colcha de retalhos. Em nome de um “corte seco”, diversas cenas são interrompidas nos momentos mais questionáveis. Também a indicação a melhor filme é absurda, ainda mais se considerarmos quantas produções melhores foram excluídas – Blue Jasmine, Antes da Meia-Noite e A Grande Beleza são alguns exemplos.

O diretor Jean-Marc Vallée, que vinha dos bons C.R.A.Z.Y. e A Jovem Rainha Vitória, parece, de alguma forma, ter se intimidado com o projeto, já que acabou deixando o filme se dirigir sozinho. Como Vallée é também o montador, podemos dizer que ele tem somente a si mesmo para culpar e tudo a agradecer a Matthew e Jared. É por eles, somente por eles, que digerimos tanto didatismo. 


domingo, 16 de fevereiro de 2014

12 Anos de Escravidão e Gravidade vencem BAFTA


Também a Academia Britânica elegeu seus vencedores da 67ª edição do BAFTA Awards. Embora o grande vencedor em termos quantitativos tenha sido Gravidade, com seis estatuetas, 12 Anos de Escravidão segue confirmando o favoritismo, com o reforço extra da vitória de seu protagonista Chiwetel Ejiofor sobre o até então imbatível Matthew McConaughey (que, estranhamente, sequer foi indicado). Já a categoria melhor atriz segue sem polêmicas com mais uma vitória da Jasmine de Cate Blanchett. Dentre os coadjuvantes, Jennifer Lawrence vence mais um round enquanto Barkhad Abdi leva seu primeiro prêmio. Outro que se firma cada vez mais como favorito é o italiano A Grande Beleza na categoria filme em língua estrangeira. Confiram abaixo os premiados:

Filme – 12 Anos de Escravidão
Filme Britânico – Gravidade
Direção – Alfonso Cuarón, por Gravidade
Ator – Chiwetel Ejiofor, por 12 Anos de Escravidão
Atriz – Cate BLanchett, por Blue Jasmine
Ator Coadjuvante – Barkhad Abdi, por Capitão Phillips
Atriz Coadjuvante – Jennifer Lawrence, por Trapaça
Filme de estreia britânico – Kelly + Victor, de Kieran Evans
Filme em língua não-inglesa – A Grande Beleza, da Itália
Animação – Frozen
Documentário – O Ato de Matar
Roteiro Original – Trapaça
Roteiro Adaptado – Philomena
Trilha Sonora – Gravidade
Fotografia – Gravidade
Edição – Rush – No Limite da Emoção
Direção de Arte – O Grande Gatsby
Figurino – O Grande Gatsby
Som – Gravidade
Efeitos Visuais – Gravidade
Maquiagem – Trapaça
Curta – Room 8
Curta em Animação – Sleeping With Fishes
Ator ou Atriz em Ascensão – Will Poulter
Prêmio Especial por Contribuição ao Cinema – Peter Greenway 

Urso de Ouro vai para a China

Diao Yinan (à esquerda) e Liao Fan com seus "Ursos"

Foram muitos elogios para o candidato brasileiro, mas no final das contas a China levou a melhor. O Urso de Ouro do Festival de Berlim ficou com Black Coal, Thin Ice, de Diao Yinan. O filme levou, ainda, o prêmio de melhor ator. Já o prêmio do júri foi para Grande Hotel Budapeste, novo longa de Wes Anderson. Confiram abaixo a lista de premiados:

Mostra Oficial
Melhor Filme – Black Coal, Thin Ice, de Diao Yinan (China)
Grande Prêmio do Júri – Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson (EUA)
Direção – Richard Linklater, por Boyhood (EUA)
Ator – Liao Fan, por Black Coal, Thin Ice (China)
Atriz – Haru Kuroki, por The Little House (Japão)
Roteiro – Anna e Dietrich Brüggemann, por Stations of the Cross (Alemanha)
Contribuição Artística – Blind Massage, de Lou Ye (China)
Prêmio Alfred Bauer – Aimer, Boire et Chanter, de Alain Resnais (França)
Filme de Estreia – Güeros, de Alonso Ruizpalacios (México)

Mostras Paralelas
Melhor Filme (Mostra Panorama) – Difret, de Zeresenay Berhane Mehari (Etiópia)
Prêmio FIPRESCI (Mostra Panorama) – Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro (Brasil)
Melhor Documentário (Mostra Panorama) – The Circle, de Stefan Haup (Suiça)
Melhor Filme para Adolescentes (Mostra Geração) – 52 Tuesdays, de Sophie Hyde (Austrália)
Melhor Filme Infantil (Mostra Geração) – Ciencias Naturales, de Matías Lucchesi (Argentina)
Teddy Award (Ficção) – Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro (Brasil)
Teddy Award (Documentário) – The Circle, de Stefan Haup (Suiça)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Filme brasileiro é premiado em Berlim

Daniel Ribeiro e elenco em Berlim (Foto: Jakob Ganlsmeier)

Enquanto todos seguem na expectativa de que Praia do Futuro, de Karim Ainouz, consiga vencer o Urso de Ouro, prêmio máximo do Festival de Berlim, outro filme nacional se consagra em terras alemãs. Trata-se de Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, de Daniel Ribeiro, que acaba de ser eleito melhor filme pela Federação Internacional dos Críticos (FIPRESCI). O longa foi exibido na Seção Panorama, a segunda mais importante da Berlinale. Vale lembrar que Daniel Ribeiro já havia sido premiado em Berlim em 2008, com o curta Café com Leite. Hoje Eu Quero Voltar Sozinho foi concebido a partir de um curta de nome semelhante – Eu Não Quero Voltar Sozinho, que fez grande sucesso em festivais e na internet – e conta a história de um adolescente cego em busca de identidade e independência, além do despertar da sexualidade. O filme está previsto para estrear aqui no Brasil em abril.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Nebraska


O cineasta Alexander Payne tem alguns temas recorrentes: personagens disfuncionais, pessoas que passam por profundas transformações devido a acontecimentos bizarros e, principalmente, laços que afeto que se fortalecem nos contextos mais inesperados. A primeira coisa que chama atenção na ficha técnica deste seu novo longa é o fato de, pela primeira vez, não ser ele o roteirista. Pois não é que o estreante em roteiros para o cinema Bob Nelson escreveu uma história que se harmoniza completamente com o estilo de Payne? O resultado é um filme delicioso, que impressiona por alinhavar com perfeição ternura e sarcasmo.

Bruce Dern, que foi premiado melhor ator no Festival de Cannes e concorre ao Oscar por este papel, é Woody Grant, um idoso que dá muito trabalho para a família: além dos já habituais problemas com álcool, a velhice lhe trouxe ainda confusão mental e perda de memória. Quando recebe uma correspondência picareta dizendo que foi sorteado para ganhar um milhão de dólares, Woody cisma de ir até uma cidade no Nebraska buscar seu prêmio. Loucura ou não, um dos filhos decide que vale a pena satisfazer o capricho do pai e deixá-lo viver a ilusão por alguns dias. No caminho, eles são forçados a passar pela cidade natal de Woody e pai e filho se deparam com parentes bizarros, situações inesperadas e muito falatório sobre o retorno do filho pródigo, fazendo com que a fantasia de início inofensiva escape ao controle deles.


Nebraska é um filme com tudo no lugar certo: o roteiro é redondo, com diálogos incrivelmente espirituosos; o ritmo prende o interesse do espectador da primeira à última cena; o elenco está tão fantástico que merecia uma premiação coletiva; a fotografia em P&B é um charme; e a direção firme de Payne conjuga todos esses elementos para criar um todo harmonioso. Imperdível, principalmente para quem gostou de Os Descendentes. Os dois filmes têm bastante em comum, embora esse aqui tenha um humor mais anárquico. 

O filme concorre a seis Oscars: melhor filme, direção, ator, atriz coadjuvante (a surpreendente June Squibb), roteiro original e fotografia. Infelizmente, não é favorito em nenhuma das categorias e periga sair da cerimônia de mãos abanando. Uma pena, já que o filme, ao lado de 12 Anos de Escravidão, pode ser desde já considerado um dos melhores do ano.

Philomena


O filme é baseado no livro do jornalista Martin Sixsmith e conta a história de Philomena Lee e sua procura pelo filho que foi dela tirado quando ela era ainda adolescente. O cenário era a Irlanda ultracatólica dos anos 50: desprovida de quaisquer informações sobre o funcionamento do próprio corpo, Philomena engravida e é enviada pela família a um convento, onde é explorada pelas freiras e obrigada a trabalhar duramente para pagar suas despesas, podendo ver o filho Anthony uma hora por dia. Mas quando Anthony está com três anos, até essa pequena satisfação lhe é tirada: o menino é adotado sem que ninguém lhe consulte a respeito. Cinquenta anos depois, Philomena decide tentar rastrear o filho. Para isso, contará com a ajuda de um jornalista em crise que vê nela uma oportunidade de se reerguer profissionalmente.

A intolerância das instituições religiosas e a corrupção dessas mesmas entidades é assunto recorrente na história da Irlanda, já tendo gerado filmes-denúncia como The Magdalene Sisters (que inclusive são citadas em determinado momento). Philomena tenta trazer frescor a um tema espinhoso, porém já um pouco desgastado no cinema britânico. A solução encontrada pelo cineasta Stephen Frears foi diluir o drama com boas doses da típica ironia inglesa e adicionar pitadas de crítica às instituições e à hipocrisia por trás de seus dogmas. A receita em parte funciona, em especial pelo fato de contar com o talento da grande dama Judi Dench no papel-título e por sua boa química com Steve Coogan, que faz o contraponto à personagem no papel de um jornalista sarcástico e mal-humorado que entrou na missão não por razões humanitárias, mas visando seus próprios interesses.


Por outro lado, Philomena não acrescenta muito ao tema. Embora seja um filme simpático, ao qual se assiste com prazer, em nenhum momento surpreende ou realmente emociona. É uma produção digna, mas Stephen Frears já teve momentos bem mais inspirados em sua carreira. Em sua louvável tentativa de não carregar demais no melodrama, Frears acabou realizando um filme morno. Dentre todos os oscarizáveis deste ano, é um dos que impressiona menos. Philomena concorre a quatro Oscars: melhor filme, atriz (Judi Dench), roteiro adaptado e trilha sonora. Embora o roteiro já tenha sido premiado no Festival de Veneza, a indicação para Dench é a única realmente merecida.  

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Imagem Que Falta


Este filme, que concorre ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira e recebeu o prêmio Um Certo Olhar no Festival de Cannes deste ano, vem sendo divulgado como um documentário em animação. Não exatamente. O filme na verdade é um híbrido de imagens de arquivo, fotografias e dramatização utilizando bonecos de argila (que são estáticos, não há animação). O filme é baseado no livro L’élimination, de Christophe Bataille, e recria o massacre promovido no Camboja pela ascensão ao poder do chamado Khmer Vermelho na década de 70, quando cerca de dois milhões de cidadãos morreram devido a execuções políticas, fome, maus-tratos e trabalhos forçados.

O tema é pungente e o fato de ser narrado em primeira pessoa, do ponto de vista de um sobrevivente que teve a família dizimada, o torna ainda mais dramático. A ideia de usar bonecos sem recorrer às técnicas de animação também é muito interessante e simbólica, como se os cambojanos fossem meras peças de um jogo de tabuleiro. O problema é que a força da narrativa do filme decai bastante nos outros trechos, principalmente por conta do tom de voz monocórdio do narrador. Em diversos momentos, fica difícil controlar a dispersão dos pensamentos e não se presta a devida atenção ao que está sendo dito justamente pela sua falta de inflexão – o que torna o filme um pouco cansativo. 

Resumindo: era uma bela ideia, mas o resultado não ficou à sua altura. De todo modo, vale uma conferida pela importância do assunto e pela interessante proposta de fazer uma “não-animação”.    

Trapaça


David O. Russell começou a carreira lá no final dos anos 80, mas somente nos últimos anos se tornou o queridinho de Hollywood. Começou em 2011, quando O Vencedor concorreu a sete Oscars e levou dois (ator e atriz coadjuvantes); ano passado, O Lado Bom da Vida obteve oito indicações (e deu a Jennifer Lawrence seu polêmico Oscar de melhor atriz); mas foi com Trapaça que o moço quebrou a banca: o filme concorre a dez estatuetas. E, pela terceira vez, Russell concorre como melhor diretor. Tanto reconhecimento é merecido? Nem tanto. Seus filmes até são bons, mas carecem justamente de uma direção com mais personalidade. A boa notícia é que este Trapaça é o mais interessante dos três.

O roteiro de Trapaça (American Hustle no original) é inspirado em uma história verídica ocorrida no final dos anos 70. Christian Bale e Amy Adams interpretam Irving Rosenfeld e Sidney Prosser, uma esperta dupla de vigaristas que, para escapar da cadeia, é obrigada a trabalhar para o FBI em uma complicada operação que tem como objetivo desmascarar políticos corruptos, incluindo o prefeito de um distrito de Nova Jersey. O que já era arriscado torna-se cada vez mais complicado conforme Rosalyn, a incontrolável esposa de Irving, começa a soltar o verbo sobre as atividades do marido e sua amante. Além disso, Irving desenvolve laços de amizade com o político cuja vida deve destruir e Richie DiMaso, o agente do FBI que os meteu nessa confusão, demonstra sinais de desequilíbrio e megalomania.


O destaque do filme é seu tom farsesco, que não se limita ao visual exótico do elenco e se estende à própria abordagem da trama. O personagem DiMaso, por exemplo, é interpretado por Bradley Cooper o tempo todo no limite do overacting, o que, estranhamente, tem tudo a ver com o filme. Já Jennifer Lawrence parece perdida, nem tanto pela histeria da personagem, mas por ser jovem demais para interpretá-la. Rosalyn deveria ser uma mulher vivida, calejada e da mesma faixa etária do marido e sua amante, mas basta olhar as feições adolescentes de Jennifer para que a credibilidade vá por água abaixo. Já Christian Bale e Amy Adams são, de longe, o ponto alto do filme, em especial Amy, que conjuga com maestria a malandragem e sensualidade da personagem com momentos de pura introspecção – sua indicação como melhor atriz é a mais merecida de todas que o filme recebeu.


Trapaça é uma produção exuberante e que conta uma história divertida. É um bom filme, daqueles que realmente fazem valer o ingresso. O seu grande defeito reside na insistência de Hollywood em supervalorizar Russell e Lawrence e tentar vendê-los como talentos maiores do que realmente são. 

Operação Sombra – Jack Ryan


O agente secreto Jack Ryan, criado pelo escritor Tom Clancy, já foi visto antes no cinema em Jogos Patrióticos, Perigo Real e Imediato (ambos com Harrison Ford), Caçada ao Outubro Vermelho (Alec Baldwin) e A Soma de Todos os Medos (Ben Affleck). A trama deste filme é uma espécie de reboot: com um roteiro original de David Koepp e Adam Cozad, Operação Sombra conta as origens de Ryan. O passado como fuzileiro naval, seu ferimento em ação e lenta recuperação, o recrutamento pela CIA. A princípio Jack deve analisar operações financeiras, buscando atividades suspeitas, até que é tirado do escritório para intervir em uma delicada missão na Rússia perante um milionário que tem muito a esconder.

O filme parte de um dos argumentos mais batidos possíveis no universo dos filmes de espionagem: o do vilão russo que bota a fortuna a serviço da destruição do modelo de vida americano. Em uma época em que até franquias tradicionalíssimas como 007 buscam se reinventar, é estranho que ainda se aposte em uma temática de vestígios da guerra fria e se diga frases como “na Rússia as coisas não funcionam como aqui”. Mas esse nem é o maior dos equívocos do filme, já que seria possível que o resultado fosse bacana apesar do tema ultrapassado. O que torna a projeção cansativa é que a falta de originalidade não se limita ao argumento e se estende a tudo mais. É um filme muito previsível sob todos os aspectos. Como ainda achar graça na piada da mulher que pensava estar sendo traída e fica feliz ao saber que o namorado é "apenas" da CIA?


Chris Pine não tem muito traquejo para convencer como agente secreto, ainda que o roteiro tente contornar isso com a ressalva dele ser um novato sem experiência de campo. Mesmo porque o personagem é um ex-mariner e herói de guerra, o que tampouco combina com a cara de bom moço de Pine. E para um personagem que se destacou pela inteligência, praticamente não vemos em cena nenhum exemplo prático de tal brilhantismo. Keira Knightley continua sendo escalada para papéis de mulheres belas, misteriosas e fascinantes, deixando transparecer seu desconforto a cada cena. Somente o diretor Kenneth Branagh acrescenta algum brilho ao elenco. Não que seu personagem seja menos maniqueísta, mas apenas pelo fato de Branagh ser um ator de grande presença cênica.


Kenneth Branagh, aliás, vem tomando um rumo preocupante em sua carreira. O ator e diretor, outrora conhecido por seus longas shakespearianos, costumava ser apontado como o sucessor de Laurence Olivier. Vale lembrar que Branagh, em sua estreia como diretor de cinema, concorreu ao Oscar e venceu o Bafta (por Henrique V, em 1990). Difícil entender como ele deu essa guinada para a direção de blockbusters – ele também dirigiu o primeiro Thor.

Embora seja eficiente em termos de montagem e direção das cenas de ação, o resultado final de Operação Sombra soa como produto requentado. Uma mistura de franquias de sucesso, algo entre os filmes de Jason Bourne e os da série Missão Impossível – e sem o carisma de um astro como Matt Damon ou Tom Cruise para segurar a onda.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Uma Noite no Moulin Rouge


Não, não estamos falando do filme de Baz Luhrmann e sim do verdadeiro Moulin Rouge. O original. Le Bal du Moulin Rouge, o cabaré mais tradicional e luxuoso de Paris, foi fundado em 1889 pelos empresários do ramo do entretenimento Joseph Oller e Charles Zidler. Desde o princípio, grandes ambições cercavam o empreendimento: a ideia era lançar um cabaré que primasse pelo bom gosto, ousadia e elegância e fosse diferente de tudo que havia até então no bairro boêmio de Montmartre. O estabelecimento começou a ganhar ares míticos em tempo recorde, já que apenas dois anos depois Henri de Toulouse-Lautrec desenhou La Goulue, o primeiro de seus posters inspirados pelas noitadas no Moulin Rouge. Ainda em 1891, o inglês Charles Morton batizou como French CanCan a nova e vigorosa dança, que até então era chamada Le Quadrille.

Mas como é o Moulin Rouge hoje em dia? O interior dele mantém muito do charme de tempos passados, algo que podemos apenas imaginar. A decoração em estilo Belle Époque tem muito veludo vermelho, como não poderia deixar de ser, e as mesas são todas decoradas com pequenos abajures, conseguindo a façanha de criar um ambiente aconchegante apesar de seus 850 lugares. Ao comprar o ingresso, o espectador pode escolher entre o bilhete simples e os que dão direito a meia garrafa de champanhe ou, ainda, champanhe e jantar.

Os preços são salgados (a partir de 100€), mas creiam-me: é dinheiro muito bem gasto. É sempre aconselhável comprar os ingressos com antecedência no site (www.moulinrouge.fr). O processo é simples: uma vez comprado, o bilhete eletrônico vai para o e-mail cadastrado em arquivo anexo e é só imprimir. Chegando lá, não é necessário trocar por outro na bilheteria. Basta entrar na (inevitável) fila. Como eles costumam ter dois shows por dia, o primeiro horário é sempre mais tranquilo – o segundo está sujeito a algum atraso, já que eles precisam esvaziar o recinto e tudo depende da velocidade com que o público sai.


O espetáculo muda de tempos em tempos, o que está atualmente em cartaz chama-se Féerie e conta com um elenco de oitenta artistas. São bailarinos, músicos, cantores, equilibristas, contorcionistas, enfim, tudo somado em um espetáculo colorido, vivaz e muito variado. O show tem números temáticos que envolvem piratas, artistas circenses, cenários orientais exóticos, o clima da Paris dos anos 40, além, é claro, do mítico cancan. Em meio a tanto deslumbre, vale destacar o engraçadíssimo número do ventríloquo Márc Metral e também o surreal balé aquático de uma moça em meio a imensas pítons, que impressiona não somente pelo tamanho das cobras, mas também pelo enorme aquário que surge do chão.

Ponto negativo? Nada a ver com a boa administração da casa, mas a falta de educação de alguns frequentadores incomoda. Mesmo com um ingresso tão caro, tem turista que não está nem aí para o que está acontecendo no palco. Tive o azar de ficar perto de um grupo que queria mais fazer alvoroço do que assistir ao show. Também se vê muitas pessoas insistindo em tirar fotos lá dentro, mesmo depois de serem advertidas pelos funcionários a não fazê-lo. 

No mais, o cabaré é a coisa mais linda, os funcionários são gentis, o champanhe é de ótima qualidade e o espetáculo é sensacional. 


Confiram abaixo algumas fotos oficiais (propriété de Moulin Rouge Officiel):