quarta-feira, 30 de abril de 2008

Zona do Crime


Volta e meia, filmes como Cidade de Deus e Tropa de Elite causam polêmica. Muitas pessoas não gostam de ver as mazelas sociais ampliadas na telona, numa típica atitude de empurrar para baixo do tapete a feiúra de nosso sistema social. Mas, a julgar pelo filme mexicano Zona do Crime, não estamos sozinhos. Não que isso sirva de consolo.

La Zona é mais que um luxuoso condomínio da Cidade do México: é uma espécie de universo paralelo, onde todos vivem uma utopia em comum. Cercados por muros altíssimos e vigiados por todos os ângulos, os moradores se sentem protegidos da violência que assola o chamado mundo exterior. Mas um incidente abala a autoconfiança desses privilegiados: três jovens delinqüentes conseguem penetrar no condomínio e, durante uma tentativa de assalto a uma das residências, uma moradora é morta. Alertados por uma empregada que consegue fugir do local, os seguranças exterminam dois dos três criminosos. O terceiro, um garoto de apenas dezesseis anos, foge. Como estão acostumados a fazer suas próprias leis dentro daqueles muros, uma assembléia de moradores decide omitir o acontecido da polícia e perseguir o terceiro assaltante por seus próprios meios.

Apesar de se passar na capital mexicana, a trama de Zona do Crime guarda diversas semelhanças com a realidade brasileira: descrédito das autoridades perante a população, levando à criação de milícias ou justiceiros particulares; corrupção e omissão do poder público; tendência dos ricos a se "fecharem" dentro de condomínios, etc. Tanto isso é verdade que algumas pré-estréias do longa, seguidas de debate, têm acendido discussões pra lá de acaloradas. Por um lado, os moradores de condomínio não gostam nem um pouco de se ver retratados como fascistas e insensíveis; por outro, a população de áreas carentes está cansada de ser sempre retratada como delinqüente no cinema.

O tema de um grupo de pessoas que pretende resolver seus medos simplesmente se afastando da civilização já foi mostrado, por outra abordagem, em A Vila. Mas enquanto o filme de M. Night Shyamalan tinha uma proposta mais simbólica, Zona do Crime transborda crueza e realidade. Também é significativo notar o quão frágil é a paz que os moradores do condomínio pensam ter. Porque basta que ocorra um único crime para que todo o sistema social do qual eles tanto se orgulham venha abaixo.

A votação em que uma assembléia de representantes eleitos decide fazer justiça com as próprias mãos é uma grande piada, já que apenas serve de pretexto para que eles identifiquem as pessoas que pensam de modo diferente - qualquer semelhança com regimes militares não é mera coincidência. Logo, percebe-se que o inimigo vai além do jovem ladrão. Inimigo é qualquer um que ouse se opor à voz da maioria. Também é revoltante como, na visão deles, a vida de um cidadão "de fora" não tem valor algum.

A filmografia anterior do diretor e roteirista mexicano Rodrigo Plá se resume a dois curtas. Neste seu primeiro longa, Rodrigo recebeu uma indicação ao Goya de melhor roteiro adaptado. Um reconhecimento merecido a um belo e corajoso trabalho. Vamos ficar de olhos nos próximos passos desse rapaz, porque tudo indica que acaba de surgir um novo talento na sétima arte.

A única ressalva que faço ao filme é quanto à inadequação do título em português que, em sua ânsia de manter algo do original, acaba soando como um filme no estilo Bruce Willis. Zona do Crime estréia hoje nos cinemas. Confiram!

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Todas as Faces de Thelmo Fernandes

Quem freqüenta teatro no Rio, mesmo que não seja muito assíduo, já teve oportunidade de ver Thelmo Fernandes no palco. Com 41 anos de idade e 17 de carreira, o ator tem mais de 50 peças em seu extenso currículo, que inclui tipos tão variados como o divertido João Grilo de O Auto da Compadecida, o travesti Geni de A Ópera do Malandro e, atualmente, o truculento Creonte de Gota D’Água. Em 1986, Thelmo ingressou na faculdade de informática da UFRJ. Também entrou para um grupo de teatro amador e descobriu que levava jeito para representar. Já em um de seus primeiros trabalhos, Ah, Se Eu Fosse Rei, ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Teatro de São Matheus (ES) e o prêmio de ator-revelação no Festival de Teatro do Liceu do Rio. Seguiu com a faculdade, embora admita, entre risos, que tenha "começado a tirar notas péssimas". A profissionalização como ator ocorreu em 1991, através do curso da Escola de Teatro Martins Pena. Em 1995, conheceu Tanah Corrêa, que trabalhava com Antônio Abujamra na companhia Os Fodidos Privilegiados e o convidou para fazer parte da irreverente trupe, fundada quatro anos antes:

- "Foi aí que eu entrei na companhia e comecei a trabalhar com aquela pessoa louca e genial que era o Abujamra. (...) Ele dava material para as pessoas, elas dirigiam uma cena e, quando ele achava legal, incorporava ao espetáculo. Aí o João Fonseca fez uma cena do romance O Casamento, de Nelson Rodrigues, e mostrou para o Abujamra. Ele disse que estava tão legal que a gente podia fazer um espetáculo."

O Casamento foi aceito no Festival de Teatro de Curitiba, onde foi um grande sucesso, e ganhou os prêmios Shell de direção e figurino. Depois vieram O Auto da Compadecida, A Resistível Ascensão de Arturo Ui e Tudo no Timing, que ficou anos em cartaz e lhe deu uma indicação ao Prêmio IBEU de melhor ator. Mas estar há doze anos na companhia – hoje dirigida por João Fonseca – não impede que Thelmo trabalhe com outros diretores. Em 2001, retornou ao universo rodrigueano dirigido por Marcus Alvisi em O Beijo no Asfalto. Em 2003, quis o destino que o ator tivesse a oportunidade de conquistar um dos grandes papéis da festejada montagem de A Ópera do Malandro:

- "Eles me chamaram para fazer um dos malandros, o Philip Morris. Eu comecei a ensaiar, mas aí pintou um convite para fazer uma peça com o Luís Fernando Guimarães, e era uma proposta muito boa. Como a gente só tinha ensaiado uma semana, eu conversei com o Charles (Charles Möeller, um dos diretores) e ele entendeu que era uma oportunidade muito bacana. Só que já tinha um esquema de prováveis substitutos e tinham me escalado para a Geni. Mas eu não tinha ensaiado, nem lido o texto. Aí eu fui, mas a peça do Luís Fernando atrasou e na terça-feira da semana da estréia da Ópera me ligaram, dizendo que o Sandro Christopher teve um problema de saúde e que precisariam de mim para estrear como a Geni dentro de dois dias. Aí eu fiquei mudo! Depois falei tá bom, mas falei porque não dava para dispensar uma oportunidade dessas."

O pânico inicial deu lugar a uma performance tão segura que, restabelecido o titular do papel, foram mantidos os dois atores em dias alternados. Thelmo também participou das duas turnês portuguesas da peça (2005 e 2006). Outros destaques em sua carreira foram O Que Diz Molero e Édipo Unplugged – onde fez o papel do próprio. A coroação dessa trajetória impressionante veio ano passado, com a merecida indicação ao Prêmio Shell de melhor ator por sua performance arrebatadora como o Creonte do musical Gota D’Água. Dirigido por João Fonseca e de volta a um musical de Chico Buarque, dois fatores significativos em sua carreira:

- "Quanto ao processo do Creonte, foi muito especial. Foi um claro amadurecimento na minha relação de trabalho junto ao João Fonseca, o diretor. Nós trabalhamos juntos desde 1996 e desta vez foi um processo absolutamente objetivo e sem ansiedade. Creio que foi por isso que consegui chegar a este resultado do qual me orgulho muito."


Depois de lotar o Teatro Glória por vários meses, a peça reestreou no Carlos Gomes no princípio deste mês. Mas não é só. Thelmo já tem um novo desafio, dessa vez na direção:

- "Estou dirigindo um infantil chamado Um Amor de Espantalho, texto de Elbe de Holanda, junto ao GATIG (Grupo de Artes e Teatro da Ilha do Governador), grupo no qual eu comecei como amador. Recebi um convite deles após terem sido contemplados pelo FATE (Fundo de Apoio ao Teatro). Fiquei muito orgulhoso e feliz e com muito friozinho na barriga, mas está sendo ótimo. Estamos estreando dia 7 de junho na Casa de Cultura Elbe de Holanda na Ilha e em agosto estaremos no Planetário."

Quem não conferiu, ainda está em tempo. Gota D’Água (espetáculo já analisado aqui em 3 de abril) fica em cartaz no Teatro Carlos Gomes até 25 de maio. Quintas e domingos, às 19h; sextas e sábados às 20h.

Os Indomáveis


O mercado de DVD está cada vez mais rápido em seus lançamentos. Menos de três meses após sua passagem pelos cinemas, está chegando às locadoras Os Indomáveis. Ao contrário de Onde os Fracos Não Têm Vez – que reinventa o western usando seus elementos numa trama contemporânea –, Os Indomáveis trilha um caminho contrário: é um western clássico, que segue à risca todas as regras do mais americano dos gêneros. Pistoleiros habilidosos em conflito, um homem bom e corajoso explorado pelos donos da terra, ladrões de trem espertíssimos, xerifes nem tanto, códigos de honra e, é claro, seqüências inverossímeis porém espetaculares.

A história é centrada no embate de vontades entre o fazendeiro Dan Evans e o notório assaltante Ben Wade. Capturado graças a seu incontrolável impulso de Don Juan, Wade não pretende ficar muito tempo nas garras da justiça e sabe que logo seu bando virá libertá-lo. Afundado em dívidas e fracasso, Evans vê no dinheiro oferecido para fazer parte da escolta que porá Wade no tal trem das 3:10 do título original a oportunidade de virar o jogo a seu favor e, de quebra, provar seu valor ao filho adolescente.

Os Indomáveis não é um filme que se propõe a inovar, mas que realiza com eficiência tudo que esperamos de um longa do gênero, dando ao espectador a gostosa sensação de estar voltando às matinês de sua infância. O longa, aliás, é a refilmagem de Galante e Sanguinário (também 3:10 to Yuma no original), filme de 1957 que trazia Glenn Ford no papel de Ben Wade.

Porém há um grande diferencial deste para os filmes de antigamente: o melhor duelo do longa não está na rapidez dos revólveres e sim no jogo de cena impecável entre Russell Crowe e Christian Bale. Crowe está interpretando, e muito bem, seu tipo favorito: o do homem rude porém charmoso, machão até debaixo d’água. Ao contrário da impressão que ele passa em O Gângster (a de estar pouco à vontade no papel), aqui Crowe mostra que nasceu para esse tipo de personagem. Com Christian Bale a história é um pouquinho diferente: versátil em qualquer tipo de papel, Bale não se deixa intimidar pelo personagem menos glamouroso; pelo contrário, transforma seu Dan Evans no herói humano - nobre, porém cheio de falhas - com o qual nos identificamos. Impressionante seu olhar cansado e, ao mesmo tempo, determinado.

Outra coisa que chama a atenção é a ainda curta porém diversificada filmografia do diretor James Mangold. Num período de dez anos, o cara dirigiu - e com competência - coisas totalmente antagônicas, como o policial Cop Land, o drama Garota, Interrompida, a comédia romântica Kate & Leopold, o thriller Identidade e a biografia Johnny & June, além do piloto do seriado televisivo Men in Trees. E, agora, um western. É de tirar o chapéu.

A carreira de Os Indomáveis na telona foi um pouco prejudicada pelo fato do filme ter estreado aqui em fevereiro; ou seja, em meio aos principais candidatos ao Oscar – ao qual concorreu nas categorias som e trilha sonora -, mas o cinéfilo que prestigiar na telinha esse filme novo com jeitão antigo dificilmente se decepcionará. Ainda mais se for numa tarde de domingo e não esquecer a pipoca.

domingo, 27 de abril de 2008

Fôlego


O coreano Kim Ki-Duk tem um estilo bem particular. Seus personagens são sempre pessoas comuns que, motivadas por sentimentos avassaladores, se lançam em atitudes nada convencionais. Foi assim como o belo Casa Vazia e o confuso Time. Fôlego, seu novo trabalho, talvez seja o mais bem-resolvido dos três, por ter a poesia do primeiro e a ousadia estética do segundo. O filme é de um lirismo e criatividade que encantam, mesmo nas passagens em que a história poderia soar incoerente. É um filme para absorver com o espírito, já que decompô-lo com o intelecto poderia fazer com que a trama soasse inverossímil.

Yeon é uma imaginativa e sensível escultora que se sente anestesiada por sua vida aparentemente perfeita. Embora cercada de conforto e beleza, seus dias se resumem a cuidar da casa e da filha. Seu marido é infiel e a trata com tanta indiferença que não consegue perceber nem sua mudança de comportamento ao descobrir a traição. Quando vê no noticiário a história de Jin, um condenado à morte que tentou o suicídio repetidas vezes, Yeon, seguindo um impulso incontrolável, decide visitá-lo. A partir dessa iniciativa, os dois principiam um estranho e cada vez mais sólido relacionamento.

O encontro da jovem desiludida com o assassino e a força do sentimento desesperado que nasce entre esses dois condenados é de uma beleza comovente. O modo como Yeon se empenha em tornar os últimos dias de Jin um resumo de tudo que ela poderia lhe oferecer se a vida os tivesse reunido em condições mais favoráveis é algo que traz a salvação dela também, pois encontrou alguém que aprecia e precisa da sua imaginação que até então estava estagnada.

Yeon transforma a penitenciária e os poucos minutos de visitação num universo mágico, a ponto de recriar as estações do ano e suas sensações. Aquele espaço é apenas deles e ninguém pode penetrá-lo: nem as autoridades, nem o marido relapso, nem as leis da sociedade e muito menos a sentença de morte que irá separá-los definitivamente. É um relacionamento onde ambos vivem o momento, já que estão cientes de não haver futuro. E, quando se perde toda esperança, cada instante de realização conta.

Outro personagem muito interessante e que tem um papel fundamental para que a trama se desenvolva é o funcionário do presídio que deixa que Yeon visite Jin. Quando ela se apresenta como uma antiga namorada, ele sabe que a moça está mentindo. Mas sua curiosidade e – quem sabe? – seu tédio com o trabalho permitem que toda a trama aconteça. Sem contar que controlar os poucos momentos daquelas duas pessoas lhe dá uma inebriante sensação de poder. No final das contas, ele não é muito diferente das pessoas que acompanham avidamente a vida alheia através dos reality shows e se sentem importantes ao votar nos chamados “paredões”.

Fôlego, que fez parte da seleção oficial do Festival de Cannes 2007, é um filme cheio de simbolismo e delicadeza, marcado por uma comunicação mais sensorial do que verbal entre os dois personagens centrais. Também o título é bastante apropriado, já que a respiração está sempre em destaque: ofegante, prazerosa, assustada, enfim, como um termômetro do estado espírito de seus protagonistas. Curiosamente, o filme foi exibido no último Festival do Rio como “Sem Fôlego”. É. Até que também faz sentido, já que o fôlego - ou a falta dele - é assunto para uma das mais belas cenas que ocorrem entre o inusitado casal.

sábado, 26 de abril de 2008

Patrick Dempsey, a Nova Fênix da TV

Embora hoje em dia acumule os predicados de astro da conceituada série Grey’s Anatomy e mais novo queridinho das mulheres, o quarentão Patrick Dempsey teve uma trajetória longa e acidentada até chegar a esse confortável ponto em sua carreira. Talvez muita gente não se lembre, mas no final dos anos 80 Dempsey era figurinha fácil em comédias adolescentes. Na mais infame delas, Loverboy - Garoto de Programa, nosso caro amigo era entregador de pizzas e amante ocasional. Pois é. Assim era a nada respeitável carreira de Dempsey no cinema. E olha que esse foi o ponto alto dela.

Nascido em Lewiston, no estado do Maine, Dempsey começou no teatro e logo migrou para a telona. Após alguns papéis de pouca expressão, sua grande chance surgiu em 1987, quando estrelou a comédia adolescente Namorada de Aluguel. O ator tinha 21 anos e, apesar de não ter o biotipo de ídolo teen - era um garoto narigudo e bem esquisito -, caiu no gosto das meninas. Dois anos depois, protagonizou o tal Loverboy. Elas continuaram adorando. Vai entender.

Na década de noventa, o fôlego de sua carreira parecia esgotado. Em 1991, tentou uma virada de rumo com o filme de gângsters Mobsters - Império do Crime. Não deu certo. Tentou, então, uma volta às origens na comédia romântica Com Mérito, embora há muito tivesse deixado de ser adolescente. Depois disso, ficou limitado a papéis irrelevantes em filmes como Epidemia, Pânico 3 e O Clube do Imperador. O caro leitor não se lembra dele nesses filmes? Não era mesmo para lembrar. Enfim, a coisa mais expressiva que o ator fez nos últimos anos foi servir de escada para Reese Witherspoon em Doce Lar (2002). Parecia que o resto de sua carreira estava destinada ao limbo quando o destino voltou a sorrir para Dempsey. Sua boa sorte tinha nome, sobrenome e profissão: Dr. Derek Shepherd.

Em Grey’s Anatomy, série-sensação do momento, Dempsey voltou à posição de astro e, de quebra, ainda se tornou um dos homens mais desejados de Hollywood. Assim como havia acontecido anteriormente com Kiefer Sutherland em 24 Horas e Sarah Jessica Parker em Sex & the City, Grey’s Anatomy representou uma segunda chance para uma carreira que parecia enterrada ou, no mínimo, fadada à mediocridade. E o inesperado destaque na TV ainda serviu para levá-lo de volta ao cinema – só em 2007, ele atuou em Escritores da Liberdade e Encantada.

Grey’s Anatomy enfoca os conflitos de cinco médicos recém-formados. Internos do Hospital Seattle Grace, Meredith, Cristina, Izzie, George e Alex tentam conciliar os altos e baixos de suas vidas pessoais com o estresse e o clima de competitividade do ambiente de trabalho. Nesse cenário, o Dr. Derek Shepherd, personagem de Dempsey, é um cirurgião competente e muito sedutor que tenta administrar sua evidente atração por Meredith. A série está em sua quarta temporada e pode ser vista no Canal Sony toda segunda-feira, às 22h, com reprises na terça (2h e 15h) e domingo (12h e 21h).

Subversão, Caos e Sabonete: O Clube da Luta


Eu confesso. Tirei o nome do blog do cartaz de Clube da Luta, um filme que, quanto mais eu revejo, mais eu aprecio. Não é que tenha desgostado na primeira vez, mas foi tanto estardalhaço por conta do maluco paulista que entrou num cinema e abriu fogo contra os espectadores que isso acabou prejudicando uma análise mais objetiva do filme em si. Acho que certos filmes simplesmente envelhecem melhor do que outros. Enquanto alguns que você adora ao assistir perdem o encanto já na segunda conferida, outros se tornam cada vez mais fascinantes.

Clube da Luta, que eu considero o melhor filme de David Fincher, é uma das produções mais originais e subversivas de todos os tempos. Não apenas na trama, mas também em seu formato externo. O personagem Tyler, que tem o hábito de inserir imagens pornográficas em filmes "família", faz suas inserções também no filme como se fosse uma pessoa real. E o que dizer da hilária advertência assinada por Tyler que aparece na tela logo após a lengalenga padrão do uso permitido do DVD?

Para quem não viu ou não se lembra, a história defende a tese de que a sociedade consumista leva as pessoas ao entorpecimento dos sentidos e, num estágio mais avançado, à loucura. Edward Norton interpreta um sujeito que vive para "ter coisas". Seu passatempo preferido é fazer compras por telefone, adquirindo bens inúteis como quem toma drogas.

"Eu folheava os catálogos e me perguntava ‘que tipo de porcelana me define como pessoa'?".

A insônia o atormenta e ele não sabe a razão de sua infelicidade constante. Até que passa a freqüentar grupos de auto-ajuda para moribundos e/ou desenganados e descobre que cercar-se de pessoas realmente infelizes lhe restitui a paz de espírito. Talvez passasse o resto da vida nesse novo vício se não conhecesse, numa viagem de trabalho, Tyler Durden. Descolado, sexy, rebelde, enfim, tudo que ele gostaria de ser. Tyler lhe apresenta um novo prazer: lutar. Simples assim. Dois homens quebrando a cara um do outro. Não demora para surgir o Clube da Luta, uma instituição cuja primeira regra é "você não fala sobre ele".

Se fosse apenas isso, já seria original. Mas a trama não fica por aí. Um clube como esse está fadado a reunir pessoas que estão no limite de sua paciência e, portanto, ansiosas para detonar as instituições. Rebeldia, sede de liberdade ou puro terrorismo? No desfecho, quando a verdade sobre os personagens é revelada, fica claro que a trama não é uma apologia do terrorismo. Mas, ainda assim, resta em nossas mentes a incômoda certeza de que a sociedade moderna produz seus próprios monstros. Como diz o personagem sem nome de Ed Norton ao patrão numa cena "um maluco pode sair por aí com uma arma semi-automática atirando nos colegas de trabalho. Pode ser alguém que você conhece há anos."

Edward Norton, aliás, é a alma do filme. Apesar de sua ainda curta filmografia, iniciada em 1996, Norton é um dos atores mais versáteis e geniais de sua geração. Não foi à toa que já em seu primeiro filme, As Duas Faces de um Crime, ele foi indicado ao Oscar de melhor coadjuvante. Ed já foi skinhead (A Outra História Americana, que lhe rendeu a segunda indicação), policial federal (Dragão Vermelho), padre (Tenha Fé, sua estréia na direção), nerd apaixonado (Todos Dizem Eu Te Amo), ladrão (A Cartada Final e Uma Saída de Mestre) e até um rei medieval (Cruzada). Recentemente, filmou Hulk 2 numa favela aqui no Rio. Em Clube da Luta, ele tem uma de suas melhores e menos elogiadas performances. Também Helena Bonham Carter arrasa como a sexy e auto-destrutiva Marla Singer, personagem responsável por uma das mais curiosas falas do longa:

"A camisinha é o sapatinho de cristal da nossa geração. Você veste, dança com um estranho a noite inteira e depois joga fora. A camisinha, não o estranho."

Creio que Clube da Luta foi um filme bastante injustiçado. Muitas pessoas que o assistiram se detiveram na questão da porradaria e o consideram um similar das fitas do Van Damme. E o filme definitivamente não é sobre um grupo de caras sem camisa se batendo (embora essas cenas também sejam interessantes). É sobre várias coisas, mas não sobre isso. É sobre subversão, caos e sabonete. E muito mais.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Penélope de Volta


Outro dia, revendo o ótimo Volver, de Pedro Almodóvar, ficou ainda mais evidente para mim o quanto Penélope Cruz é outra em sua terra natal. Por algum motivo, a atriz espanhola não consegue interpretar em inglês. A primeira vez que vi Penélope foi numa pequena participação em Carne Trêmula; a segunda, foi novamente num filme de Almodóvar: Tudo Sobre Minha Mãe. Desta vez com maior destaque, me pareceu uma boa atriz. Mas aí a moça migrou para Hollywood, virou símbolo sexual, namorou Tom Cruise e, aparentemente, mandou a carreira para o ralo.

Dava pena de ver suas tentativas de virar estrela internacional naufragarem espetacularmente. Porque ela realmente se esforçava! Mas mesmo quando escolhia roteiros razoáveis, como Vanilla Sky, sua interpretação era artificial e forçada. E o que dizer de produções como Capitão Corelli, Sahara e Bandidas? E não nos esqueçamos da sua maior trapalhada: o inacreditável Sabor da Paixão, onde interpretava uma cozinheira baiana (!) que vira sucesso na TV americana com suas receitas tropicais e ainda vive um romance estranhíssimo com o Murilo Benício atacando de malandro do Pelourinho.

Foi então que, a exemplo do título do filme, Penélope resolveu volver às suas origens. De volta à Espanha e sendo dirigida pelo cineasta que a havia descoberto, a atriz dá um verdadeiro show de interpretação em Volver. Com uma caracterização mais madura e realista, renasce para o espectador uma nova Penélope Cruz. Mais forte, mais intensa e bem mais bonita do que a Barbie na qual estava se transformando. Inesquecível a cena em que a atriz canta o bolerão que dá título ao filme. A grande ironia nisso tudo é o fato desse retorno à Espanha ter lhe proporcionado o que certamente não conseguiria se tivesse insistido apenas numa carreira americana: uma indicação ao Oscar.

Penélope Cruz já rodou quatro filmes depois de Volver. The Good Night (filme pequeno, que chegou aqui direto em DVD), Manolete (produção espanhola) e Elegy (filme americano da espanhola Isabel Coixet) já estão finalizados. Vicky Cristina Barcelona (novo do Woody Allen, filmado na Espanha) deve estrear ainda esse ano. Além destes, Penélope também estará em Los Abrazos Rotos (novo trabalho de Almodóvar) e Nine (um musical inspirado no 8 ½ do Fellini), filmes que ainda se encontram em pré-produção. Agora, é aguardar para conferir. Mas, pelo pedigree de seus novos projetos, parece que a bela finalmente entendeu que o estrelato é conseqüência de uma boa carreira e não a razão dela.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Grandes Cenas

Scarlett O’Hara, depois de muito esnobar Rhett Butler, entende que o ama. Mas é tarde demais. Ela corre atrás dele e pergunta o que vai ser dela, se ele a deixar. Butler - ou melhor, Clark Gable - dispara o petardo: "Francamente, minha querida, eu não ligo a mínima". Osgood, milionário mulherengo, não mede esforços para fazer de Daphne sua enésima esposa. Mas Daphne é Jerry que, após muitas trapalhadas, arranca o disfarce e mostra ao insistente conquistador porque não pode se casar com ele. Sereno, Osgood sentencia: "Ninguém é perfeito". Rick e Ilsa vão se separar mais uma vez e provavelmente nunca voltarão a se ver. Na neblina do aeroporto, ele tenta convencê-la de que o amor deles não tem futuro com a marcante: "Se você não entrar naquele avião, se arrependerá. Talvez não hoje, nem amanhã, mas logo e pelo resto da sua vida."

As cenas citadas acima são, respectivamente, de E o Vento Levou, Quanto Mais Quente Melhor e Casablanca. Qual a correlação entre elas? São cenas inesquecíveis, que já têm lugar cativo no imaginário coletivo e há muito extrapolaram os limites do filme de origem. A famosa seqüência de Gene Kelly sapateando sob a chuva, embora seja uma das mais empolgantes de todos os tempos, nem faz lá muita diferença para a trama de Cantando na Chuva. Mas é adorada por pessoas que nunca viram o filme e não têm a mínima idéia de seu enredo. Que, diga-se de passagem, é uma verdadeira aula sobre a história da sétima arte, já que detalha todo o processo da transição do cinema mudo para o falado.

O cinema atual também produz todos os dias seqüências memoráveis, embora seja necessário o crivo do tempo para determinar o que vai entrar para a posteridade. Mas existem alguns exemplos recentes que já se tornaram clássicos indiscutíveis. Destaco três – bem diferentes entre si – que já entraram para a história da sétima arte:


Em Cidade de Deus, o personagem Buscapé entende o significado exato do ditado "se ficar o bicho pega, se correr o bicho come" no instante em que, armado apenas com sua máquina fotográfica, fica exatamente no meio da batalha iminente entre o bando de Zé Pequeno e a polícia. A câmera faz um giro completo e vertiginoso, numa das tomadas mais famosas (e copiadas) dos últimos anos.


I see dead people. A força da confissão sussurrada do pequeno Haley Joel Osment em O Sexto Sentido é tão poderosa que a frase chega a dispensar a tradução "eu vejo gente morta", sendo prontamente entendida até por quem não fala uma palavra de inglês. Apavorado, exalando fragilidade sob um cobertor, o menino revela o que já sabíamos mas, ainda assim, não queríamos ouvir. O espectador ainda está sob impacto da fala anterior quando vem seu complemento. Com que freqüência isso acontece? All the time (o tempo todo).


Pulp Fiction é um filme repleto de cenas célebres. Mas nenhuma supera John Travolta e Uma Thurman dançando um estranhíssimo twist (ou seja lá o que for aquilo) numa ainda mais estranha lanchonete. Ele, meio balofo e desconjuntado, começa tímido e depois se solta pra valer ao som de You Never Can Tell. Ela, super feminina de terno, esbanja graça e elegância. O gesto do casal de fazer um V com os dedos médio e indicador e passá-los na frente dos olhos é copiado em pistas de dança até hoje.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

1408


Stephen King é um excelente contador de histórias. Seu grande mérito é não depender de cenários lúgubres ou circunstâncias extraordinárias para criar uma boa e envolvente história de horror. E talvez suas tramas sejam tão arrepiantes justamente por serem ambientadas em cenários cotidianos. Mas King também é um dos escritores mais injustiçados pela sétima arte. Apesar da absurda quantidade de adaptações de seus contos e romances, são poucas as que fazem jus ao original. Ironicamente, as melhores transposições vieram daqueles que não têm nada a ver com horror, como foi o caso de Um Sonho de Liberdade, Conta Comigo e À Espera de um Milagre.

1408 é adaptado de um conto de mesmo título que, por sua vez, foi inspirado numa reportagem sobre um quarto mal-assombrado num hotel da Califórnia. O enredo guarda diversas semelhanças com uma das obras mais famosas de Stephen King, O Iluminado. Mais uma vez, o horror em sua forma absoluta emanando de um local prosaico, luxuoso até. Só que, em vez do imenso Hotel Overlook, agora tudo se concentra num quarto. Conhecendo o humor peculiar de Stephen King, isso pode até ser algum tipo de piada - hotel inteiro para um romance, apenas um quarto para um conto.

Mike Enslin escreve sobre lugares mal-assombrados, embora ele próprio não acredite em fantasmas. Debochado a ponto de dar cotações em caveirinhas segundo o grau de "assustabilidade" de um local, Mike nunca encontrou evidências reais em nenhum dos locais visitados. Até o dia em que decide ir ao Dolphin Hotel e passar uma noite no supostamente amaldiçoado quarto 1408. O gerente do estabelecimento interditou o quarto há anos e faz de tudo para fazê-lo mudar de idéia, mas Mike está ciente de seus direitos de consumidor e exige ocupar o quarto.

Seguindo um tema recorrente do autor, a força maléfica que comanda o local é como um organismo vivo. O interessante paradoxo da história é o fato do 1408 não ser nocivo por algo feito por humanos - um assassinato, uma morte trágica -, como ocorre na maioria dos longas de terror. Ao contrário, é o Mal, em sua essência, que transforma as pessoas. Esse aspecto é muito original, ao menos para quem aprecia histórias de terror e está cansado de menininhas de cabelos escorridos. A atmosfera no hotel leva a um permanente estado de tensão e antecipação da próxima cena, já que o filme aposta naquele tipo de suspense que vem do fato do espectador já ter uma idéia do que vai acontecer (alguma dúvida de que Mike vai comer o pão que o diabo amassou dentro do 1408?), enquanto o protagonista permanece na ignorância. Pior ainda, no descrédito.

O maior acerto de 1408 é ter em cena o tempo inteiro o eficiente John Cusack. Cusack é daqueles atores que conferem credibilidade a um filme, com aquele jeito familiar, como se fosse o seu melhor amigo dizendo "ei, cara, sou eu quem está contando essa história". E você, espectador, acredita nele. Até certa altura, descontados alguns cacoetes do gênero, o filme se desenvolve bem. A maior decepção ocorre no momento em que o roteiro cai num dos truques mais preguiçosos sempre que um autor não sabe como explicar o inexplicável. Fiquei furiosa. Mas aí olhei para o relógio e percebi que ainda faltava um bocado de filme. Ufa! Aquilo que estava ocorrendo não era conclusivo. O que vem depois dá uma recuperada e pode até ser engenhoso, mas, acabada a projeção, a impressão que fica é a de que 1408 é uma história esticada além do necessário. O que faz sentido se considerarmos que o roteiro foi escrito tendo um pequeno conto como base.

domingo, 20 de abril de 2008

A Maldição de Seinfeld


Até hoje muita gente tenta explicar o sucesso estrondoso de Seinfeld. Exibida originalmente entre 1989 e 1998, a série foi a grande responsável pela popularização das sitcoms no Brasil. Criada por Larry David e Jerry Seinfeld - que interpretava a si próprio - e ironicamente descrita como uma "série sobre nada", Seinfeld conquistou pela empatia que o espectador sente de imediato por seus quatro personagens absolutamente comuns em situações cotidianas. Jerry, George, Elaine e Kramer não têm nada de nobre ou especial: colocam seus próprios interesses em primeiro lugar, tropeçam na vida amorosa a três por quatro e costumam se comportar da pior maneira possível quando acham que ninguém está olhando. De repente, situações prosaicas como perder o carro no estacionamento, ter um encontro amoroso frustrante ou cometer uma gafe imperdoável ganham as telas. É impossível para o espectador assistir a Seinfeld sem que isso remeta a alguma situação vivida por ele próprio.

Durante sua última temporada, o seriado bateu o recorde de audiência da televisão americana. O divertidíssimo episódio final, quando os amigos são presos e têm como testemunhas de acusação todas as pessoas das quais eles tiraram sarro ao longo dos 173 episódios anteriores, foi visto por aproximadamente 30 milhões de telespectadores, o equivalente a 32% da audiência. Não é de se estranhar que, quando a série acabou, as emissoras tenham ficado desesperadas para encontrar algo que preenchesse esse vazio. Friends até chegou perto, mas não era a mesma coisa. Os seis amigos pareciam, digamos, certinhos demais para substituir a anarquia estabelecida por Jerry e Cia.

Mas o sucesso obtido com Seinfeld não pareceu gerar frutos para seu elenco. A começar pelo próprio Jerry Seinfeld, cujo realização mais significativa desde então foi escrever e dublar Bee Movie – A História de uma Abelha. Michael Richards, o Kramer, conseguiu espaço na mídia tão-somente por ter insultado dois rapazes negros na platéia de seu show de stand-up comedy. Cogitou-se que tal reação teria sido uma desesperada estratégia de marketing na linha "falem mal, mas falem de mim". Jason Alexander, o George Costanza - alter ego confesso de Larry David -, além de alguns papéis de pouca expressão em comédias como O Amor é Cego (2001), capitalizou o sucesso obtido em Seinfeld participando de outros seriados, como Friends e Monk. Também emprestou sua voz ao falso documentário Farce of the Penguins, uma gozação com o premiado A Marcha dos Pinguins.

Julia Louis-Dreyfus, a Elaine, tem conseguido vencer as adversidades. Após estrelar em 2002 a pouco vista Watching Ellie, Julia voltou com tudo em 2006 na divertidíssima The New Adventures of Old Christine. Criada por um dos roteiristas da bem-sucedida Will & Grace, a série enfoca as agruras de Christine Campbell, uma mulher divorciada e mãe atrapalhada que vira a "old" Christine quando seu ex-marido arruma uma simpática namorada com o mesmo nome que ela. Na verdade, o enredo da série não é o que há de mais atraente. O que vale mesmo é ver Julia em cena e relembrar aqueles mesmos trejeitos engaçados que são seu maior charme. A série começou meio desacreditada: tinha um nome comprido que parecia destinado a ser sua única piada e um elenco no qual apenas Julia era conhecida. Mas o programa ganhou novo fôlego quando Julia abiscoitou o Emmy 2006 - o segundo de sua carreira, mas o primeiro como protagonista - de melhor atriz. Uma vez quebrada a chamada "maldição de Seinfeld", tudo indica que a antiga Julia ainda tenha muitas novas aventuras pela frente. Depois de sobreviver à greve dos roteiristas, a terceira temporada de The New Adventures of Old Christine deve chegar aqui no Brasil, via Warner Channel, em maio.

Pecados Inocentes


Baseado numa história real, o filme narra a trajetória de Barbara Daly Baekeland. Ao se casar com o milionário Brooks Baekeland – um bon-vivant que nunca trabalhou e vive dos dividendos do avô que inventou a baquelita (uma espécie de plástico) –, Barbara se torna obcecada em ser aceita entre a alta sociedade e entra em crises cada vez mais constantes ao perceber que sua origem social inferior sempre a estigmatizará. Quando Brooks a abandona para viver com uma jovem espanhola, Barbara desenvolve uma ligação doentia com o filho único.

Ouvi falar de Pecados Inocentes pela primeira vez durante o último Festival do Rio. Na época, o filme ainda era conhecido por seu título original (Savage Grace) e cogitava-se que Julianne Moore estaria cotada ao Oscar por esse papel. Uma expectativa que, conforme já sabemos, não se concretizou. Ficou a curiosidade a respeito do filme. Qual não foi minha decepção ao finalmente assisti-lo.

A despeito de tratar de temas espinhosos, Pecados Inocentes é um filme incrivelmente chato. No início, promete. A afetação de Julianne como a nova-rica que quer a todo custo conseguir seu lugar ao sol numa sociedade pouco disposta a ser receptiva é bastante interessante. Destaque para a cena em que ela obriga o filho a ler em francês diante de um intelectual parisiense e sua posterior explosão de fúria ao ser tratada com condescendência.

Mas o filme perde em dramaticidade e interesse a partir do momento que Barbara é abandonada pelo marido e se fecha em sua relação doentia com o filho. A partir daí, a narrativa fica repetitiva e com uma preocupação evidente em chocar o espectador. E Tony e Barbara passam o resto do filme dando voltas em torno de sua simbiose rodrigueana. E vamos combinar que nem a atuação de Julianne Moore é aquilo tudo que se esperava. A atriz se contenta em reproduzir um pastiche do que foi sua excelente performance em Longe do Paraíso, prejudicada pelo fato de estar contracenando com o fraquinho Eddie Redmayne.

O título em português, além de pegar carona no ótimo Pecados Íntimos, é totalmente inadequado, já que os pecados cometidos pelos personagens podem ser tudo... menos inocentes. Fica como curiosidade ver Belén Rueda – estrela de O Orfanato – numa pequena participação como uma socialite espanhola.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Uma Chamada Perdida


Muito já se discutiu sobre os prós e contras da tecnologia. Nos dias atuais, temos todo um arsenal de meios de comunicação ao alcance das mãos e, no entanto, nunca estivemos tão isolados. Talvez porque essas ferramentas acabem se tornando também meios de triagem. Atire a primeira pedra quem nunca parou ao lado da secretária eletrônica para conferir antes se queria falar com a pessoa do outro lado da linha. Os celulares, de meros aparelhos móveis, viraram universos portáteis, onde o sujeito acessa internet, tira fotos, ouve música, assiste a vídeos e de vez em quando até usa para sua função básica: falar.

"Uma chamada perdida" é uma frase que todo mundo de vez em quando vê no visor de seu aparelho. Certamente é uma boa idéia criar uma história de terror em cima de fato tão corriqueiro. No filme, uma estranha onda de mortes mal-explicadas parece estar ligada pelo acontecimento, já que todas as vítimas receberam uma misteriosa mensagem de voz alguns dias antes de morrer. O bizarro na situação é que as mensagens vinham com a data de alguns dias no futuro (como logo se descobre, a data e hora exata que a pessoa viria a morrer) e o dono do telefone ouvia sua própria voz dizendo algo apavorante e incompreensível.

Uma Chamada Perdida é uma refilmagem de Chakushin Ari (2003), dirigido por Takashi Miike. Desde que O Chamado foi um grande sucesso, os remakes de filmes de terror orientais não param mais. Alguns melhores, outros piores; mas todos muito parecidos. E este não é similar apenas pelo estilo, já que a própria estrutura da trama é incrivelmente parecida com a de O Chamado. Para isso, basta trocar o elemento transmissor das mortes em cadeia: sai a fita de VHS e entra o telefone celular. Pelo menos, tiveram o bom senso de não usar nenhuma garotinha de cabelos escorridos. Para aumentar a confusão na torre de babel, ainda temos um diretor francês em seu primeiro filme americano e algumas cenas que parecem ter sido recortadas de outros longas de horror adolescente (especialmente Premonição e Pânico).

Em meio ao elenco de atores desconhecidos, vagueia um Edward Burns mais canastrão do que nunca. Isso sem contar os clichês habituais, como a mocinha que, mesmo morrendo de medo, entra num buraco escuro e vai de encontro aos terrores que ela já sabe que a esperam ao invés de esperar o policial que está a caminho. Mas isso nem chegaria a ser um problema grave. O filme tampouco é malfeito: o roteiro faz algum sentido, as cenas são dirigidas com competência e os efeitos são satisfatórios. O que realmente enche a paciência do espectador é a falta de originalidade total e absoluta. Ou seja: é uma produção que só satisfaz quem nunca viu filme de terror antes.

Quebrando a Banca



Ben Campbell é o melhor aluno do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e acaba de ser aceito na faculdade de medicina de Harvard. O único empecilho para que ele realize seu sonho é o fato dele não ter dinheiro para custear a faculdade. Ben candidata-se a uma bolsa integral que escolhe apenas um aluno por ano e, independente de sua genialidade em matemática, sabe que será difícil obtê-la, já que não tem a experiência de vida requerida. O marasmo de sua vida é sacudido por Micky Rosa, um professor de matemática que o recruta para ingressar num grupo secreto de alunos brilhantes. O objetivo? Desvendar os segredos do blackjack e, munidos de identidades falsas, ir a Las Vegas arrancar verdadeiras fortunas dos cassinos. Segundo Micky, o blackjack é o único jogo de azar onde é possível vencer a banca através da lógica. Para isso, eles utilizam um sistema de contagem de cartas e, trabalhando em equipe, conseguem saber o momento exato de apostar alto. O título original, 21, faz referência não apenas ao nome popular do blackjack, mas também à idade que o protagonista acaba de completar.

OK. Vamos esquecer o fato de que dificilmente um grupo de jovens prodígios da matemática seria formado por uma garotada tão descolada e arrumadinha. Os gênios tecnológicos costumam se parecer mais com Bill Gates do que com o gatinho Jim Sturgess. Mas tudo bem. Um pouco de incentivo visual nunca fez mal ao cinema, muito pelo contrário. O que força a barra mesmo é o modo como os jovens, além de utilizar seus talentos estatísticos, ainda se transformam em excelentes atores, já que cada um deles desempenha personagens novos a cada noitada. Então o professor Rosa, além de saber reconhecer gênios, também tem um infalível olho clínico para talento dramático.

O filme tem um quê de Onze Homens e um Segredo e suas seqüências. É claro que, ao contrário da turma de George Clooney, a rapaziada de Quebrando a Banca não está exatamente cometendo um crime. Não existe nenhuma lei que diga que não se pode contar as cartas. Só que isso não faz lá muita diferença se os truculentos leões de chácara desconfiarem do sujeito e o arrastarem para uma sala nos porões do cassino. O mais incrível de tudo é que o filme – adaptação do livro Bringing Down the House, de Ben Mezrich – se diz baseado numa história real.

O britânico Jim Sturgess, revelado no musical Across the Universe, mostra que tem cacife para fazer carreira internacional. É bonito, carismático, bom ator e, como pudemos ver em seu filme anterior, canta muito bem. Uma pena que em Quebrando a Banca ele seja prejudicado por ter como par romântico a apática Kate Bosworth (de Superman – O Retorno). Em papéis coadjuvantes, o filme ganha o reforço dos sempre eficientes Kevin Spacey (um dos produtores do longa) como o professor picareta e Laurence Fishburne como o chefe de segurança disposto a tudo para manter o emprego.

Apesar de suas extrapolações, Quebrando a Banca é bom divertimento. Não é um filme originalíssimo, já que o espectador consegue adivinhar quase tudo que vai acontecer antes que seja mostrado na tela. Tampouco o currículo do diretor Robert Luketic é dos mais animadores: seus  filmes principais são Legalmente Loura e A Sogra. Mas até que o moço se saiu melhor nesse novo trabalho e conseguiu realizar um filme vibrante e bem interpretado. Ou seja: diversão ligeira para aqueles dias em que você quer ver algo interessante na telona, porém não está querendo gastar demais os neurônios.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Crônica de uma Fuga


As ditaduras impostas à América Latina deixaram feridas que tão cedo não cicatrizarão. Podemos dizer que tudo relacionado aos anos de chumbo simboliza para nós, sul-americanos, um trauma em muitos pontos comparável ao que o holocausto causou no povo judeu. Uma violência despropositada e revoltante que nunca conseguiremos esquecer. Mais um filme com alto teor político está disponível em DVD: Crônica de uma Fuga, baseado numa história real ocorrida em 1977 na Argentina.

Claudio Tamburrini, goleiro de um time da segunda divisão, é seqüestrado por agentes da ditadura militar e mantido em cativeiro numa velha mansão abandonada, onde funciona uma prisão clandestina. Ali, o apolítico Claudio é torturado e interrogado e não pode fazer nada para minimizar seu suplício, já que nunca teve nenhum envolvimento político. Mas logo ele descobre que sua captura foi mais do que um infeliz engano: um conhecido seu, militante de um grupo da luta armada, decidiu entregá-lo como isca falsa e, assim, ganhar tempo para que seus verdadeiros companheiros escapassem.

Os filmes que enfocam as mazelas de uma ditadura militar geralmente são focados no antagonismo entre os heróis da resistência e os agentes da repressão. Já Crônica de uma Fuga conta a história de uma pessoa comum que é presa por um capricho do destino. Claudio não quer ser durão: ele nada confessa simplesmente porque não tem o que dizer. Uma situação tão irônica quanto perversa. Filmes como esse são um tapa na cara dos apolíticos, por provarem que a truculência de um regime totalitário pode atingir qualquer um e não apenas aqueles com algum envolvimento ideológico - este argumento lembra bastante o excelente Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias.

O filme é tenso e claustrofóbico. Mostra com realismo não apenas a tortura física, mas a degradação psicológica a que os prisioneiros são submetidos. Encarcerados como animais, privados de condições básicas de higiene e saúde, enfim, despojados de tudo que os tornaria seres humanos. É nesse cenário dantesco que acompanhamos a gradativa desesperança que toma conta de Claudio. A princípio otimista, por achar que é uma questão de tempo acreditarem na sua inocência, ele vai aos poucos entendendo que a verdade nem sempre prevalece. Mas o que não mata fortalece e a constatação de que está num beco sem saída obriga Claudio a deixar a covardia de lado para buscar um meio de sobreviver.

Um dos pontos mais interessantes é a abordagem de personagens: ainda há uma certa divisão entre os bons e os maus, mas sem satanizar ou endeusar em excesso nenhum dos lados. Um personagem fora dos limites da humanidade é pouco verdadeiro e o filme sabiamente evita esse tipo de maniqueísmo. Outro trunfo é contar com o ótimo Rodrigo de la Serna no papel de Claudio. Para quem não está ligando o nome à pessoa, trata-se do ator que interpretou Alberto Granado em Diários de Motocicleta - uma figura tão carismática que quase fez sombra ao Che Guevara de Gael García Bernal. Aqui, num tipo totalmente diferente do anterior, Rodrigo prova que é mais do que um sujeito simpático. É um ator de primeira linha.

Selecionado para a competição do Festival de Cannes 2006, Crônica de uma Fuga é um filme que pertence àquela classe das obras necessárias. Para que as pessoas nunca se esqueçam. Para que tempos como aqueles não voltem nunca mais.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Estômago


Estômago parte de um pressuposto ancestral, o de que na vida há os que devoram e os que são devorados. Raimundo Nonato é mais um nordestino morto de fome que desembarca sem eira nem beira em Sampa. Quase por acaso, vai parar numa cozinha de boteco. Explorado, vivendo em regime de semi-escravidão, descobre que tem a "mão boa" para cozinhar. Logo consegue uma oportunidade melhor e começa a ascender lentamente. Raimundo também se apaixona por Íria, uma prostituta de apetite voraz, e os dois estabelecem uma espécie de permuta: ele lhe fornece comida e ela, sexo. Mas existe no filme uma trama paralela, que mostra nosso protagonista numa penitenciária. Mais calejado, ele já sabe que seu talento culinário lhe dá um poder incrível sobre os demais. Com falsa humildade e agarrando os poderosos do submundo pelo estômago, também na cadeia ele começa sua escalada ao poder. O que o pacato Nonato teria feito para ser preso? Isso o espectador só descobrirá ao final dessa intrigante fábula amoral.

O filme teve sua estréia mundial no Festival do Rio 2007, de onde saiu vencedor de quatro prêmios: Melhor Filme pelo júri popular, Melhor Diretor, Melhor Ator para João Miguel e o Prêmio Especial do Júri. Foi, ainda, o melhor filme no Festival de Punta Del Este, onde João Miguel também recebeu uma menção especial. Uma trajetória vitoriosa – e mais do que merecida – para esse primeiro longa de ficção do curta-metragista, publicitário e artista plástico Marcos Jorge. O filme é inspirado no conto "Presos pelo Estômago", de Lusa Silvestre, que assina, junto com Marcos Jorge, o argumento do filme.

É impossível assistir a Estômago e não se lembrar de O Cheiro do Ralo, não apenas pela originalidade da trama mas também pelo dinamismo e ousadia narrativa. A história mantém sempre um pé no humor e outro no drama social, com doses homeopáticas de bizarrice. Com um roteiro enxuto, vibrante, cheio de diálogos ligeiros e um ritmo impecável, o filme arrebata o espectador com a mesma rapidez que os pratos de Raimundo Nonato fazem sua fama. A trajetória de Nonato e a falta de julgamento moral que a acompanha é outro ponto de destaque. A princípio um coitadinho, ele logo usa sua esperteza e raciocínio rápido – ainda que tortuoso – para desenvolver seus eficazes métodos de sobrevivência. Isso é exemplificado com muito bom humor na cena em que ele reproduz os adjetivos nada sutis de Íria sobre suas coxinhas minutos após ter ouvido as palavras dela.

Interpretado com perfeição e carisma infinito pelo baiano João Miguel – um grande ícone do cinema nacional no momento – o personagem representa uma espécie de Macunaíma moderno, o anti-herói, o bom selvagem que não será submisso para sempre. Dividindo a cena com ele, a curitibana Fabiula Nascimento, em sua estréia no cinema, representa uma mulher meio felliniana, voraz, assustadora em seus apetites. Complementam o elenco afinadíssimo o sempre eficiente Babu Santana como o poderoso chefão do xadrez e as figuraças Carlo Briani e Zeca Cenovicz como os patrões que disputam o talento gastronômico de Raimundo Nonato. E Paulo Miklos, o eterno "invasor", também fez uma divertida participação como o temido Etecétera.

Estômago é um banquete de humores, sabores, tipos. Uma história engraçada, cativante e com um desfecho surpreendente. Surpreendente e plausível, adjetivos que raramente andam juntos. Desde já, um dos melhores filmes do ano.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Batismo de Sangue


Já está disponível em DVD um filme simplesmente obrigatório: Batismo de Sangue, produção baseada no livro de memórias homônimo de Frei Betto - o livro, que já se encontra na 18ª edição, ganhou o Prêmio Jabuti em 1985.

Em São Paulo, no final dos anos 60, um grupo de frades dominicanos passa a apoiar a luta contra a ditadura. Movidos por seus ideais pacifistas, os freis Betto, Fernando, Ivo e Tito logo se tornam visados pela polícia por conta de seus contatos com o guerrilheiro Carlos Marighella, líder da ALN (Ação Libertadora Nacional). Uma vez presos, Tito é o que sofre as mais terríveis humilhações e torturas. Algum tempo depois, contra sua vontade, ele é mandado para o exílio juntamente com outros presos negociados em troca do embaixador suíço Giovani Bucher. Mas seu calvário não termina com a libertação, já que mesmo longe do Brasil Tito tem pesadelos constantes com seus carrascos. No auge do desespero e desorientação, comete suicídio.

Frei Tito de Alencar Lima tornou-se um símbolo de resistência e luta pelos Direitos Humanos quando seu impressionante relato dos porões da ditadura foi contrabandeado para fora da cadeia e posteriormente publicado na revista Look. Há muitos anos que o cineasta Helvécio Ratton - diretor de O Menino Maluquinho (1995) e do premiado Uma Onda no Ar (2002) - tem interesse em contar essa história: "Esta tragédia sempre me impressionou. Como um jovem de apenas 28 anos de idade pôde ser tão afetado pela violência a ponto de não conseguir recompor a própria vida mesmo depois de se ver livre de seus algozes", comentou o cineasta.

A desconstrução por que passa frei Tito é tão comovente justamente por ser ele um personagem tão otimista e sensível. Há uma ingenuidade romântica em sua obstinação em defender os oprimidos que contrasta de modo brutal com o rapaz arrasado psicologicamente após três dias de tortura ininterrupta. O resultado é que vemos diante de nós a destruição não apenas de um ideal mas também de um ser humano. O filme impressiona pela crueza das cenas de tortura, embora a selvageria das imagens nunca seja gratuita e sim uma necessidade de ilustrar o terror que aquelas pessoas vivenciaram.

O elenco é muito bem escolhido, com destaque especial para Caio Blat como Tito e Cássio Gabus Mendes como Fleury. Blat, sempre relegado a segundo plano na grande mídia, apresenta uma atuação impecável. Sua composição de Tito é sensível e delicada, o que só torna mais chocante sua descida ao inferno. Já a performance de Gabus Mendes parece anunciar uma mudança de rumo em sua carreira. Sempre estereotipado como bom moço, o ator se transforma radicalmente para personificar a verdadeira encarnação do mal. Também não se pode deixar de destacar o talento e carisma de Léo Quintão e Odilon Esteves (freis Fernando e Ivo, respectivamente), estreantes na sétima arte. Um belo batismo para ambos. E para quem não está ligando o nome à pessoa, Odilon pôde ser visto há pouco na TV como a Cíntia da minissérie Queridos Amigos.

Batismo de Sangue joga luz sobre mais um vergonhoso capítulo da história recente do país. Assim como ocorre em outras produções recentes, como Zuzu Angel, o longa evidencia o grau de histeria a que chegou a mão pesada do totalitarismo e faz parte de um rol de filmes que deveriam ser vistos hoje e sempre para lembrar aos desavisados que ninguém nem nada está imune à barbárie quando se vive num regime de terror. A reação desproporcional que sofriam os dissidentes, mesmo os que praticavam uma resistência pacífica como foi o caso dos dominicanos, é simplesmente grotesca. E o temível delegado Fleury não foi um caso isolado. Pelo contrário, não passa de um símbolo dos requintes de sadismo a que chegavam os agentes da repressão - abomináveis executores a serviço de uma sociedade que absolvia e legitimava suas ações.

sábado, 12 de abril de 2008

Um Beijo Roubado


Neste primeiro filme americano do cineasta Wong Kar Wai – dos cultuados Amor à Flor da Pele e 2046 –, a primeira coisa que chama atenção na ficha técnica é o nome da cantora Norah Jones à frente de um elenco de peso: Jude Law, Natalie Portman, Rachel Weisz, David Strathairn. OK. A atuação de Norah não chega a ser o desastre que muitos vêm alardeando, mas é fato que ela não está no mesmo nível de seus colegas de set. O que fica especialmente evidente nas seqüências que divide com a brilhante Natalie Portman. Fica o mistério. Por que o diretor teria apostado nela para ser o fio condutor de seu filme?

Elizabeth, personagem de Norah, conhece o sensível Jeremy em meio a uma grande desilusão: ele é o dono do bar onde ela vai repetidamente procurar o namorado que a trocou por outra. O tempo passa e ela continua a freqüentar o local, motivada pelas longas conversas com o novo amigo e a torta de blueberry que só ela parece apreciar. Mas sua dor ainda é profunda e, após uma noite de bebedeira, ela nunca mais retorna. Jeremy fica sabendo através de postais que Elizabeth partiu de Nova Iorque sem destino certo, numa tentativa de encontrar respostas que acalmem seu coração.

Elizabeth, em suas andanças, testemunha o que o amor pode causar nas pessoas. Casos prosaicos, como o policial que se afunda em uísque todas as noites para esquecer que ainda ama a ex-mulher e a jogadora de pôquer profissional que assume todos os riscos no jogo e nenhum quando se trata de resolver suas mágoas pendentes.

Um Beijo Roubado é bastante diferente dos trabalhos anteriores de Kar Wai. E eu gostei tanto do filme justamente pelo motivo que está levando os fãs mais radicais do cineasta a criticá-lo: por ele apresentar uma proposta completamente diversa do que se esperava. No lugar do clima pesado de melodrama oriental, pleno de cores saturadas e ambientes sufocantes, temos uma atmosfera mais leve e cenários mais "normais". O que não quer dizer que este seja um filme menos denso sentimentalmente. Pelo contrário, a estética mais naturalista, com um quê de road movie e poeira que lembra o estilo Wim Wenders, faz com que as angústias dos personagens se sobreponham ao fetiche estético.

O porquê de Kar Wai ter escolhido Norah Jones como protagonista continua um mistério insolúvel, mas podemos dizer que o resto do elenco compensa qualquer deficiência da protagonista. David Strathairn e Rachel Weisz estão arrasadores em cena como o ex-casal que carrega um caminhão de ressentimentos contra a outra parte. Natalie Portman, cada vez mais madura artisticamente, incorpora um personagem bem diferente que tudo que ela costuma fazer e reina absoluta em todas as suas cenas. E Jude Law parece ter finalmente se lembrado de que, além de um homem belíssimo, também é bom ator. Vamos torcer para que ele não torne a se esquecer disso em seus próximos filmes.

A viagem de Elizabeth para longe da cidade que lhe causou tanta mágoa acaba sendo uma fuga para longe de sua melhor possibilidade de recomeço também. E ela acaba descobrindo que não é com a distância geográfica se que remenda um coração partido. Talvez porque se depare com pessoas mais destruídas sentimentalmente do que ela própria. Ou pode ser que as melhores coisas – assim como a tal torta de blueberry do título original – estejam o tempo todo debaixo do nosso nariz, mas precisemos do distanciamento para enxergá-las.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Não Sobre o Amor


Amantes do teatro, comemorai! Está em cartaz no CCBB do Rio um novo espetáculo da Sutil Companhia de Teatro. Fundada há 15 anos pelo diretor Felipe Hirsch e pelo ator Guilherme Weber (visto recentemente na telinha como o Benny de Queridos Amigos), a companhia curitibana tem no currículo maravilhas como A Vida é Cheia de Som e Fúria (2000) e Avenida Dropsie (2005) e coleciona em torno de uma centena de prêmios teatrais. Não é sempre que temos a oportunidade de ver um trabalho deles aqui no Rio.

Não Sobre o Amor é inspirada em Letters not About Love, livro que reúne a correspondência trocada entre os escritores russos Victor Shklovsky e Elsa Triolet – representada no espetáculo sob o codinome Alya. Também são utilizados trechos da correspondência entre a também escritora Lilia Brik (irmã de Elsa) e o poeta Vladimir Maiakovski, seu amante. O título se refere a uma proibição de Elsa: Victor, que está exilado na Alemanha, pode lhe escrever, desde que não fale de amor.

Entre cartas verídicas e fictícias, é construída a bela dramaturgia desta peça de câmara. O espaço cênico ajuda a criar a atmosfera de cumplicidade e intimidade com a platéia. Ao entrar no pequeno Teatro III do CCBB, o público se depara com um cenário surrealista e levemente claustrofóbico: uma representação de um quarto com os móveis dispostos pelas paredes: uma cama com mesinha de cabeceira, uma máquina de escrever sobre uma escrivaninha, uma porta, um aquecedor enferrujado. Tudo meio franciscano, um quarto que mais parece uma cela de prisão. Sentado num canto, está Leonardo Medeiros. Quieto, cabisbaixo, olhar parado. Toca o terceiro sinal e a porta se fecha, encerrando também o espectador no claustro. Sem uma palavra, ele se levanta e se deita na cama presa à parede. Uma prateleira quase invisível sob seu corpo cria a ilusão perfeita de que o ator está suspenso no ar, como num sonho. Ou pesadelo.

Ao longo da peça, o personagem utiliza seu amor como veículo para discorrer sobre todas as coisas que o fazem sofrer: o exílio, a solidão e sua dificuldade de adaptação no país alienígena. Entre lembranças reais e acontecimentos que tomam forma apenas em sua mente, Victor não consegue se livrar de sua obsessão por Alya. Ele não pode falar sobre amor e, ainda assim, tudo que diz parece tão impregnado deste sentimento que a interdição soa totalmente inútil. Confesso que não sabia nada sobre Shklovsky antes de assistir ao espetáculo. Descobri que o escritor, também teórico e crítico literário, criou em sua literatura o conceito de desfamiliarização, técnica similar ao estranhamento brechtniano, que consiste em retirar um elemento de determinado contexto e fazer com que ele seja percebido justamente a partir de sua ausência.

Elsa – ou melhor, Alya – aparece como uma representação do não-ter. Mais do que um amor não correspondido, ela representa a dor do irrealizável. Enquanto Victor se mostra em cena pleno de fragilidade, ela aparece sempre fria, distanciada e até mesmo desdenhosa de todo o sofrimento que causa. O texto – cujas passagens mais significativas são sublinhadas em projeções na parede – é de uma poesia e beleza cruel e nos faz pensar: será que um grande amor só é grande se tivermos que amargar sua não-correspondência? Como diz o personagem "É fácil ser cruel. Basta não amar". Talvez uma idéia complementar a esta seja "É fácil amar. Basta ser rejeitado".

A trilha sonora que permeia todo o espetáculo é nostálgica e triste, dando uma noção exata não apenas da melancolia do exílio, mas da alma russa em geral. O já citado cenário de Daniela Thomas, colaboradora constante nos trabalhos de Hirsch, é fascinante justamente por sua criatividade vir do despojamento e da sintonia perfeita com os efeitos de iluminação. Complementando, as imagens projetadas se revelam fundamentais para que o espectador tenha uma dimensão do quanto a lembrança de Alya era constante na mente de Victor.

Leonardo Medeiros, que já trabalhou com a companhia no grandioso Avenida Dropsie, carrega a grande carga dramática da peça, enquanto cabe à expressiva Arieta Corrêa personificar a mulher enigmática e inacessível – quase um fantasma. Não é exagero nenhum dizer que Leonardo é um dos melhores atores da última década – se alguém tiver dúvidas quanto a isso, basta dar uma olhada em Cabra-Cega ou Não por Acaso – e isso fica ainda mais claro quando temos a oportunidade de vê-lo ao vivo. Sua interpretação é minimalista e, ao mesmo tempo, tão cheia de humanidade que traz esse personagem para muito próximo de cada um de nós. Seus questionamentos, dores e abandono se universalizam e nos remetem às nossas próprias carências. Sobre o amor. Ou não sobre ele. Tanto faz. No final, acaba sendo tudo uma coisa só.

Não Sobre o Amor. Direção de Felipe Hirsch. Com Leonardo Medeiros e Arieta Corrêa. CCBB – Teatro III (quarta a sexta e domingo, às 19h, sábado, às 18h e 20h). 90 minutos. Ingressos a R$ 10,00. Até 4 de maio.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Traduttore, Traditore

O Retorno "de" Jedi: uma letrinha que muda todo o sentido de um título

Tradutor, traidor. A máxima italiana define bem o calvário que é traduzir uma obra de um idioma para outro. Por vezes, é preciso recriar toda uma imagem, já que expressões consagradas numa língua resultam incompreensíveis se vertidas ao pé da letra para outra. E com o cinema não é diferente: alguns títulos de filmes precisam ser repensados para se adequarem a seu novo público-alvo. Existem os intraduzíveis, como Pulp Fiction. Como traduzir de forma eficiente algo como "literatura policialesca de encadernação vagabunda"? Aliás, outro exemplo que Tarantino nos dá é Kill Bill. A sonoridade só funciona em inglês mesmo – existe, inclusive, uma piada que diz que em Portugal o filme se chama "Matem o Bill". Maldade, pura maldade.

Sofia Coppola fez um filme que enfocava bem as dificuldades de transposição de culturas, no caso entre a japonesa e a americana. Mas o próprio filme de Sofia, que originalmente se chamava Lost in Translation (perdido na tradução) foi vítima do conflito que procurava retratar e aqui virou... Encontros e Desencontros.

Mas não é de hoje que grandes filmes são prejudicados por títulos estranhos. Muita gente nem ficou sabendo que o filme de Pedro Almodóvar, Tudo Sobre Minha Mãe era uma homenagem ao clássico de 1950, All About Eve (Tudo sobre Eva). A referência não era clara simplesmente porque aqui no Brasil All About Eve sempre se chamou A Malvada. Além de cometer a heresia de deixar óbvio o caráter de Eva antes mesmo de vermos o filme, é um modo muito simplório de definir a ardilosa alpinista social. "Malvada" soa como bruxa de filme da Disney.

Muitas vezes, basta uma única letrinha para desvirtuar todo o sentido. Uma tradução que entrará para a História como o erro mais simples e, ao mesmo tempo, mais crasso da sétima arte é O Retorno de Jedi. Como assim, "de"? Será possível que alguém tenha pensado que Jedi é um nome próprio, ao invés de um qualificativo? E olha que nem era preciso assistir ao filme para entender o espírito da coisa: o título original, The Return of the Jedi, deixa bem claro que trata-se de O Retorno do (cavaleiro) Jedi.

O complicado é que a maioria das traduções estapafúrdias que grassam por aí são motivadas mais por razões mercadológicas do que lingüísticas. Mesmo porque os títulos inadequados não costumam ser obra e graça dos tradutores e sim de executivos que provavelmente nem gostam de cinema. Tal conclusão, embora leviana, é a única a que se pode chegar quando analisamos alguns títulos, digamos, criativos que certos filmes recebem em terras tupiniquins. Tem o caso dos títulos que tentam pegar carona em produções anteriores. Nos anos oitenta, o sucesso estrondoso do filme de vampiros A Hora do Espanto (Fright Night, algo como noite de pavor), desencadeou o batismo de inúmeros filmes de terror com a palavra "hora" em seu título: A Hora do Pesadelo (na verdade, A Nightmare on Elm Street ou pesadelo na rua Elm), A Hora da Zona Morta (simplesmente The Dead Zone – a zona morta), e o mais gritante de todos: A Hora do Lobisomem, que se chamava Silver Bullet (bala de prata). Não deixa de ser irônico ressaltar que nem o filme que desencadeou tal frisson tinha "hora" em seu título original.

Outra categoria curiosa é a dos filmes que continuam com seu título original e ganham um subtítulo alienígena: Erin Brockovich - Uma Mulher de Talento, Kinsey - Vamos Falar de Sexo, Hitch - O Conselheiro Amoroso, Sicko – SOS Saúde e o já citado Pulp Fiction - Tempo de Violência são apenas alguns poucos exemplos. Ou pior, quando o original em inglês é sonoro demais para ser desprezado e o subtítulo entra em cena tão-somente como uma tradução deste, caso de Closer – Perto Demais e Sin City – A Cidade do Pecado.

Para encerrar, vamos para dois exemplos recentes - e inexplicáveis, já que a tradução literal caberia perfeitamente. Um Amor de Tesouro, que não é lá essas coisas, talvez até soasse mais simpático com seu título original: Fool’s Gold (Ouro de Tolo). A Era da Inocência, que não tem nada a ver com o filme de Martin Scorsese, foi batizado por seu diretor com um título contrário ao que recebeu aqui: A Idade das Trevas (L'Âge des Ténèbres). Vai entender...

segunda-feira, 7 de abril de 2008

2 Dias em Paris


Existem filmes que chegam devagarinho no circuito, sem fazer estardalhaço, e vão ficando. Geralmente com marketing zero, cativam seu público no boca-a-boca mesmo. Um exemplo recente é A Culpa é do Fidel, que estreou em dezembro do ano passado e continua se segurando no circuito até hoje. E o que dizer do fenômeno O Corte, que ainda continuava em salas esparsas quando chegou ao DVD? Um candidato que tem tudo para repetir essa trajetória cult é 2 Dias em Paris.

O americano Jack e a francesa Marion estão juntos há dois anos e se consideram um casal estável. Mas seu relacionamento será posto à prova quando, na volta de uma viagem à Itália, resolvem passar dois dias em Paris antes de retornar a Nova Iorque. É quando Jack é confrontado com um lado desconhecido de Marion: além da família assustadora e de hábitos bizarros e do fato dele não entender quase nada em francês, ainda há o duro teste de sobreviver ao encontro com incontáveis ex-namorados e um passado que até então ele ignorava.

Essa incursão da atriz Julie Delpy atrás das câmeras certamente remeterá o espectador a Cèline, sua personagem em Antes do Amanhecer e Antes do Pôr-do-Sol – vale lembrar que a atriz colaborou no roteiro deste último, assim como seu partner Ethan Hawke. Não faço essas comparações como uma crítica, muito pelo contrário. O longa de Julie tem identidade própria e, se considerarmos apenas o quesito humor, até supera Antes do Pôr-do-Sol. Mas é impossível não reconhecer o quanto o longa influenciou esse seu belo trabalho como cineasta, até mesmo pelo fato dela escolher, mais uma vez, uma história envolvendo um americano e uma francesa. E as diferenças entre eles, que aparentemente passavam despercebidas quando ambos se encontravam em solo americano, ganham uma nova dimensão na Cidade-Luz. Seria uma crítica velada da roteirista-diretora à baixa tolerância americana com os costumes alheios?

De qualquer modo, Julie toma o cuidado de não transparecer o irritante ar superior da maioria dos franceses e faz essas críticas de modo realmente engraçado e, por vezes, até comovente. E também coloca em xeque vários hábitos pouco lisonjeiros dos franceses, como o desleixo com higiene e o temperamento exageradamente passional. No final das contas, acaba sendo mais uma questão de relacionamento íntimo do que propriamente choque entre culturas. Adam Goldberg, sua cara-metade na telona, faz de seu Jack uma figura simpática, com a qual nos identificamos. Talvez por não ter uma imagem excessivamente ianque, ou seja, também fugir do estereótipo esperado. Memorável a hilária seqüência em que ele sacaneia turistas americanos que procuravam o Museu do Louvre com a justificativa "essas pessoas votam no Partido Republicano!". Outro momento que merece destaque é a curta porém hilária participação de Daniel Brühl, assim como as discussões em família e o motivo de pai de Marion odiar Jim Morrison.

Uma curiosidade: Julie Delpy – que já dirigiu anteriormente dois curtas e um longa, todos inéditos por aqui – escalou os próprios pais como intérpretes dos pais de sua personagem. Vamos ficar de olho nos próximos passos dessa moça e torcer para que a qualidade demonstrada em 2 Dias em Paris se repita em novas produções.

sábado, 5 de abril de 2008

O Estranho Mundo de Tim Burton

Existem inúmeros grandes cineastas. Eu mesma tenho uma lista extensa: Pedro Almodóvar, Woody Allen, David Lynch, Billy Wilder, Roman Polanski... Todos grandes ícones, embora nenhum desperte mim a adoração irrestrita que sinto por Tim Burton. Obviamente existem realizadores mais importantes, mas cinema também é identificação e, nesse quesito, o californiano Timothy William Burton não tem concorrentes.

Nascido em 1958, Tim Burton gostava de desenhar desde criança e sempre foi fascinado pelos filmes clássicos de horror. Estudou numa escola de artes, graças a uma bolsa oferecida pela Disney, iniciando lá sua carreira como aprendiz de animação. Após participar da criação de alguns filmes (mas sem ter seu nome nos créditos), teve sua primeira oportunidade no curta Vincent. Nesse desenho de seis minutos em P&B, Burton presta uma homenagem a seu ídolo Vincent Price (que atua como narrador), além de já demonstrar tendência pela estética gótica que o tornaria famoso. Apesar do relativo sucesso, o jovem talento logo entendeu que o padrão Disney estava longe do tipo de filme que ele pretendia realizar.

Seu primeiro sucesso veio alguns anos depois, com a comédia de humor negro Os Fantasmas se Divertem. Foi, então, escolhido para dirigir a aguardada versão para o cinema de Batman. O resultado causou controvérsias e esteve longe de ser uma unanimidade, mas não se pode negar que o cineasta realizou um longa estiloso e marcante, assim como sua seqüência - não se pode dizer o mesmo dos filmes seguintes realizados pelo burocrático Joel Schumacher.

Em Edward Mãos de Tesoura, Tim Burton iniciou a parceria com um ator que também demonstra ter uma queda por produções pouco usuais: Johnny Depp. Funcionou tão bem que eles fizeram seis filmes juntos até agora: Ed Wood - que Burton considera seu projeto mais pessoa e eu considero o melhor filme da dupla - A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, A Fantástica Fábrica de Chocolate, A Noiva-Cadáver e Sweeney Todd. Durante as filmagens do remake de O Planeta dos Macacos, Burton iniciou outra bem-sucedida parceria, desta vez amorosa, com a atriz Helena Bonham Carter. Eles namoraram, casaram, tiveram um filho e seguem trabalhando juntos. Olhando o casal, percebe-se que foram feitos um para o outro. Helena, além de ótima atriz, é uma figura tão exótica quanto as criações de seu marido.

Alguns aspectos são constantes na obra de Tim Burton e já viraram uma assinatura do seu estilo: estética dark, direção de arte arrojada e um certo humor negro mesclado a temas infantis como Natal ou Halloween. O Estranho Mundo de Jack, por exemplo, faz uma bisonha mistura de ambos. OK, Burton não é creditado como diretor e sim como roteirista e produtor… Mas alguém realmente considera que esse filme foi dirigido por Henry Selick?

O trabalho mais recente de Burton, Sweeney Todd, passou pelas telas brasileiras neste começo de ano. Embora até então desconhecida por aqui, a lenda sobre um certo barbeiro que mataria seus clientes e os transformaria em recheio de tortas remonta ao final do século XIV, na forma de uma balada francesa que as mães usavam para amedrontar filhos desobedientes – uma versão medieval do bicho-papão. Só em 1846 Sweeney Todd aparece por escrito, como personagem de um folhetim chamado The String of Pearls e logo o sangrento personagem ganha os palcos (e posteriormente também as telas). Em 1973, Stephen Sondheim assiste, em Londres, à versão teatral mais famosa até então e imagina transformá-la num musical, ambição que realiza seis anos depois. E agora o barbeiro demoníaco de Fleet Street ganha definitivamente o mundo pelas ousadas mãos de Tim Burton.

Em sua versão para a telona - calcada no musical de Sondheim -, o assassino ganha ares de herói trágico. Assim como o Conde de Monte Cristo, Sweeney Todd era uma homem pacato até ter sua vida feliz destruída por uma condenação injusta. O motivo? O desejo de um juiz corrupto e poderoso por sua bela esposa. A história começa quando Todd, já transformado pelo desejo de vingança, retorna a Londres e trava amizade com a decadente Sra. Lovett que, esperançosa em conquistá-lo, se torna sua cúmplice. A trama de Sweeney Todd casa tão bem com o estilo de Tim Burton que chega a ser difícil conceber que não seja uma história original. Que o filme seria primoroso em termos visuais ninguém tinha dúvidas. Mas parecia estranho pensar na junção de tão tenebrosa trama com o gênero musical, geralmente associado à leveza e beleza. Afinal de contas, trata-se de um musical regado a litros e litros de sangue. Sweeney Todd é um filme sombrio, sinistro, mergulhado em sangue e humor negro, mas, ao mesmo tempo, com ares operísticos e um exagero estético que torna toda aquela carnificina meio falsa (no bom sentido). O resultado é uma jóia barroca que só poderia mesmo ser dirigida por Burton e protagonizada por Johnny Depp. Muito bem coadjuvado, é claro, pela ótima Helena Bonham Carter (não por acaso a senhora Burton). Ou seja: todo o projeto está entre amigos e não poderia estar em melhores mãos. E não nos esqueçamos de que o elenco ainda dá conta de cantar, e muito bem. Destaque também para as criativas letras, em especial a que fala sobre a qualidade (ou falta dela) das tortas da Sra. Lovett.

Sweeney Todd foi indicado a três Oscars: ator, figurino e direção de arte. Ganhou apenas o último e a Academia perdeu mais uma ótima oportunidade de fazer justiça ao incrível Johnny Depp, que, além de compor seu personagem com a genialidade habitual, ainda se revelou um intérprete interessantíssimo também na parte musical. Também foi uma grande injustiça o longa ter ficado de fora das categorias melhor filme e direção, ainda mais considerando a inclusão de um filme mediano como Conduta de Risco. E Helena Bonham Carter bem que poderia ter ficado com a vaga da Cate Blanchett, indicada por um repeteco do mesmo papel pelo qual já havia sido indicada em 1998 (Elizabeth). Mais um capítulo da longa história da má-vontade da Academia com Tim Burton.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Encantada


Uma novidade interessante nas locadoras é Encantada. O material publicitário do filme nos dá uma idéia totalmente equivocada do que ele realmente é. Em vez de mais um filme infanto-juvenil no estilo O Diário da Princesa, o esperto roteiro faz humor inteligente ao utilizar num novo contexto a doçura exagerada dos contos de fadas – a exemplo do também bom Deu a Louca na Chapeuzinho. O filme conta a história da princesa Giselle, que vive num mundo mágico, musical e perfeito. Mas no dia do seu casamento, a madrasta de seu amado príncipe Edward a empurra num poço amaldiçoado. Giselle vai parar nas caóticas ruas de Manhattan, sem compreender onde está nem quem são aquelas rudes e apressadas pessoas. É quando Robert, um advogado pragmático, cruza seu caminho e resolve ajudá-la, criando um divertido contraste entre um personagem de contos de fadas e um advogado dos dias de hoje.

Giselle, como diz Robert numa cena, parece saída de um cartão da Hallmark. Ela canta, rodopia, sorri, conversa com animaizinhos e fala sem parar no príncipe com quem deve se casar e ser feliz para sempre. Imaginem uma figura dessas no meio do Central Park. E imaginem o Príncipe Edward, um cara que chega a caráter e mete uma espada no teto de um ônibus em plena Broadway, mas desconhece o que é uma televisão. Pois é. Encantada também brinca com a estrutura desse tipo de filme. Um bom exemplo disso é quando Robert dá de cara com o príncipe Edward e se desespera "Ah, não, você também canta". Muito legal também o detalhe dos personagens serem desenhos no mundo encantado e pessoas quando passam para o lado de cá.

O elenco é carismático e bem escalado, com boa química no trio formado por Amy Adams, Patrick Dempsey e James Marsden. E não se pode deixar de ressaltar a incrível semelhança entre Timothy Spall e seu equivalente em desenho – o problema é que é difícil olhar para o ator e não lembrar do Rabicho da série Harry Potter. O filme exagera um pouco no final e algumas coisas parecem acontecer tão-somente para servir aos propósitos do roteiro, mas esses pequenos escorregões não chegam a comprometer o bom desenvolvimento da história. Também não deixa de ser surpreendente (e saudável) ver a própria Disney bancando um filme que tira um sarro do tipo de produção pela qual o estúdio ficou famoso. Vale conferir o longa, é uma grata surpresa.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Awake - A Vida por um Fio


Existe um fenômeno raro, porém comprovado, onde um paciente sedado com anestesia geral não perde a consciência. Permanece acordado e vê tudo que está acontecendo, mas não pode se manifestar porque fica totalmente paralisado. Uma tortura comparável a ser enterrado vivo. Awake – A Vida por um Fio explica esse intrigante fenômeno logo em suas primeiras imagens, levando o espectador a crer ser esse o foco de sua história.

A seguir, somos apresentados a Clayton Beresford. Jovem executivo de sucesso, rico, inteligente, apaixonado pela namorada. Mas sua vida está longe de ser perfeita. Não bastasse o receio de contar à mãe dominadora que tem um relacionamento com a secretária desta, Clayton ainda tem problemas cardíacos extremamente sérios. Está na fila de transplante, correndo contra o tempo. Mas, como já entrega a sinopse do filme, aparece um doador e nosso caro amigo passa pelo tal fenômeno de estar acordado e incapaz de comunicar sua condição aos médicos que o cercam.

O mais bizarro nesse filme é que, no final das contas, o fato do protagonista estar paralisado na mesa de cirurgia nem faz muita diferença para o rumo que a história toma. Não, a trama absolutamente não é sobre o tal fenômeno. A história gira em torno de outra coisa e, a princípio, parece que a consciência de Clayton vai ser fundamental para o desfecho. Mas não é. Os acontecimentos se desdobram e se resolvem à revelia dele.

E ainda tem mais um agravante no que já não é bom, que é ter Jessica Alba e Hayden Christensen nos papéis principais. Fica difícil encontrar uma dupla mais apática e sem graça do que essa. Quem já o achava um horror na pele de Anakin Skywalker vai descobrir que ver o ator de expressão única sem um sabre-de-luz em punho pode ser ainda mais desagradável. E Jessica Alba continua atuando do modo que sabe, ou seja, fazendo beicinho e falando num tom de voz sussurrado todas as vezes que quer passar sensualidade. Lena Olin e Terrence Howard estão bem em papéis secundários, mas o estrago feito pela dupla central e pelo roteiro pseudo-hitchcockiano tornam o desastre inevitável.

Ainda bem que Awake só tem 84 minutos. Resta desejar ao diretor estreante Joby Harold melhor sorte em seu próximo projeto.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Gota d’água Reestréia no Rio


"Você é viagem sem volta, Joana." A frase, que Jasão diz a Joana durante uma das inúmeras discussões que o ex-casal tem ao longo de Gota d’água, resume com perfeição o caminho perigoso no qual se lançou a protagonista. Joana é uma mulher de temperamento forte, que ama e odeia até o limite da loucura. Com Joana não tem mais ou menos. Com Joana é matar ou morrer. Ou as duas coisas. Gota d’água - texto de Chico Buarque e Paulo Pontes que atualiza a tragédia grega Medéia - é uma das peças mais importantes da dramaturgia nacional. Eu confesso que Medéia está longe de ser um dos meus clássicos preferidos, talvez porque tenha uma certa dificuldade em me comover com uma mulher que mata os próprios filhos e foge num carro de fogo. Mas aí também vai uma implicância minha com o recurso Deus Ex Machina, ou seja, acontecimento exterior à trama que surge para solucionar um impasse.

A genialidade de Gota d’água está justamente em humanizar sua protagonista. No lugar da feiticeira altiva e calculista, temos uma mulher comum enlouquecida pela dor. Humilhada pelo homem que ama e acossada por um aproveitador da miséria alheia, Joana vive dilemas que podemos entender nos dias de hoje. No lugar da vilã que foge triunfante sobre os cadáveres dos filhos, uma mulher destruída em comunhão com os inocentes. Mas, apesar de sua indiscutível importância, montar a peça não é tarefa para qualquer um. Se apresentada na íntegra, constitui um espetáculo longo, pesado e que ainda termina com três mortes.

Eis que reestréia hoje no Teatro Carlos Gomes uma bem-sucedida e apaixonante versão de Gota d'água. Para dar maior fluência ao espetáculo, foram acrescentadas algumas músicas que não constavam da montagem original, como Partido Alto - usada na cena de abertura. O primeiro ato começa com tom mais leve e carrega no humor, mesmo em instantes de conflito. Um exemplo disso é a cena entre Jasão e Creonte e a canção que fala da correlação entre sentar e mandar. A peça só começa a ganhar contornos mais sombrios com a aparição de Joana, o que acontece apenas na segunda metade do primeiro ato. A partir daí, a trama vai crescendo em tensão gradualmente. O destaque desta primeira parte é a cena final, com a discussão que se repete enquanto o resto do elenco faz coro para O que Será? (À Flor da Pele) e que culmina com Joana jurando vingança sob imagens de santos e orixás. Desafio qualquer espectador a não se arrepiar enquanto as cortinas se fecham. E boa parte desta magia deve-se à atuação visceral de Izabella Bicalho, que, mesmo jovem demais para o papel, tem uma força dramática incrível e um olhar eletrizante que intimida e comove ao mesmo tempo.

O segundo ato já começa com elevadíssima carga dramática e daí até o desenlace o espectador não consegue mais relaxar na cadeira diante da tragédia anunciada. Mas a grande vantagem de se trabalhar com um enredo cujo final a platéia já conhece é justamente essa: a tensão se impõe por si própria, paira no ar. A cada passo, a cada desatenção – como diz a música-título –, Joana se aproxima mais desse precipício que no final das contas vai engolir a todos.

A montagem de João Fonseca (o melhor diretor em atividade no Rio) é certamente um dos melhores espetáculos que estrearam por aqui ano passado e continua sua carreira vitoriosa em 2008, depois de ter obtido duas indicações ao Prêmio Shell: melhor música e melhor ator para o Creonte cheio de nuances de Thelmo Fernandes. A cenografia é básica e funcional, deixando o grande foco e responsabilidade no trabalho dos atores. Que, diga-se de passagem, realizam seu trabalho com perfeição absoluta. Não há um único ator inadequado no elenco inteiro. Mas Izabella e Thelmo acabam se sobressaindo pela força de seus personagens antagônicos e pela segurança que demonstram em cena, inclusive na parte musical. Não deixem de conferir. Eu assisti três vezes.

Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes. Direção: João Fonseca. Elenco: Izabella Bicalho, Thelmo Fernandes, Lucci Ferreira, Kelzy Ecard, Luca de Castro, Karen Coelho. Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes, S/N), quinta às 19h, sextas e sábados às 20h e domingos às 18h. 150 minutos. Ingressos a 20,00 (qui), 25,00 (sex e dom) e 30,00 (sab).