sexta-feira, 18 de março de 2011

Não Me Abandone Jamais


A clonagem, desde seus primeiros experimentos, vem levantando polêmicas. Em sua maioria, por restrições de ordem religiosa. Estaria o homem querendo tomar o lugar de Deus? Confesso que tais opiniões sempre arrancaram de mim um sorriso irônico, por considerar seus emitentes ingênuos e/ou retrógrados. Claro que a clonagem é um avanço, um benefício capaz de curar pessoas e salvar vidas. Mas e se tal avanço da medicina fosse levado a extremos cruéis, reproduzindo em série seres humanos para serem utilizados como uma grande loja de departamentos? É com essa perspectiva sombria que flerta a trama de Não Me Abandone Jamais.

Kathy, Tommy e Ruth foram educados no tradicional internato de Hailsham, situado numa propriedade campestre afastada do restante da civilização. Criados sob severas regras e ouvindo histórias ameaçadoras sobre crianças que teriam encontrado um terrível destino ao se aventurar fora dos limites da escola, os três cresceriam na mais absoluta inocência não fosse a atitude destemperada de uma professora, que revela aos alunos o indefectível destino reservado a todos. Como clones criados para suprir transplantes em seres humanos, eles devem começar a doar seus órgãos vitais assim que atingirem a idade adulta e estão, portanto, fadados a perecer dentro de um curto período de tempo.

Mesmo diante de tão chocante revelação, os personagens não se revoltam ou experimentam rancor. Talvez porque seja difícil para aquelas crianças dimensionar exatamente a que estão condenadas. O futuro parece irreal em perspectiva de sentimentos muito mais palpáveis, como, por exemplo, a descoberta do primeiro amor e da sexualidade. Kathy se apaixona por Tommy, que parece corresponder, mas depois cede aos encantos de Ruth. Permanecendo unidos, apesar dos desencontros amorosos, os três se tornam adultos e, a exemplo do andróide de Blade Runner, o valor da vida só lhes chega em toda sua plenitude conforme se aproxima o momento de deixá-la para trás.


Baseado em romance Kazuo Ishiguro, o mesmo autor de Vestígios do Dia, o longa faz uma filosófica investigação sobre o que, afinal de contas, tornaria alguém um ser humano. A trama lembra em alguns aspectos a história de Isaac Asimov, O Homem Bicentenário (também já transformada em filme). A grande e dolorosa diferença é que, enquanto o robô Andrew tinha diante de si uma existência longa e ilimitada por conta da sua condição de andróide, os personagens de Não Me Abandone Jamais tem sobre suas cabeças uma ameaça oposta: a brevidade de suas vidas.

O que torna a história ainda mais triste e chocante é sua ambientação. Ao invés de ser baseada em um futuro asséptico e distante, a trama parte de uma realidade paralela na qual os avanços da medicina teriam dado um enorme salto por volta dos anos 60, o que faria com que o que ocorre aconteça não em um suposto futuro e sim na nossa sociedade contemporânea, tornando cada espectador um cúmplice daquela situação. Ou como diz um dos personagens, ao ter seus limites éticos questionados “mas se perguntássemos às pessoas se elas querem voltar aos tempos do câncer de pulmão, elas diriam que não”.

Apesar de sua beleza comovente, o filme tem alguns pontos fracos. Mesmo com a opção de focar mais na parte filosófica e sentimental, a porção científica que sustenta a trama merecia um pouco mais de atenção. Ninguém queria um tratado sobre clonagem, mas sente-se falta de um embasamento maior sobre as experiências que levaram à criação de todo um sistema de reprodução em massa de clones, assim como a repercussão política que isso causaria na sociedade. Todos estavam cientes disso ou apenas uma parcela representativa? Não ficamos sabendo. Outro aspecto que é apenas mencionado diz respeito às pessoas usadas como “molde”. Por que indigentes? O filme não precisava abordar nada disso, é claro, mas acaba frustrando o espectador pelo simples fato de tocar no assunto e depois não explicar mais nada.


Mas essas lacunas do roteiro não chegam a invalidar um filme tão interessante, que já merecia crédito só pela temática. E ainda mais tendo a maravilhosa Carey Mulligan à frente do elenco. A atriz sustenta toda a carga dramática da história, com sua personagem sensível e introspectiva. Andrew Garfield e Keira Knightley também dão conta do recado, mas nem de longe são tão intensos quanto Carey. O diretor Mark Romanek, o mesmo de Retratos de Uma Obsessão e com uma carreira mais voltada para os videoclipes, conduz a trama com segurança e sobriedade na medida certa. Resumindo, um bom filme que merece ser visto e, principalmente, discutido.

Um comentário:

  1. Erika, acho muito pertinente os pontos que você levanta e que não foram devidamente justificados no filme, mas acredito que a falta de informações também seja positiva no sentido de que isso permite aos personagens aceitarem suas condições passivamente. Creio que em determinados momentos nem eles compreeendem o próprio destino.

    Considero desde já um dos filmes mais interessantes neste primeiro trimestre que se encerrou e, fora Carey, a performance que mais me chamou a atenção foi a de Sally Hawkins. Acho que a participação dela é tão ou mais chocante do que aquela em "Educação", também com a Carey. É incrível o poder que essa inglesa transmite em cena, tornando tudo tão humano, verdadeiro, mesmo num papel minúsculo.

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