sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Roma e a obra de Caravaggio


Eu sempre achei que a genialidade de Michelangelo Merisi – mais conhecido simplesmente como Caravaggio – era desproporcional à fama atingida ao longo dos séculos. Com isso, não quero dizer que o artista é pouco conhecido; apenas acho que seu estilo de vida polêmico e seu caráter questionável são excessivamente comentados, ofuscando o que realmente interessa, ou seja, as não poucas inovações que este verdadeiro gênio dos pincéis trouxe à arte e que vem influenciando uma legião de artistas desde então. Embora considerado por muitos um artista barroco, sua obra, na verdade, se situa entre os períodos maneirista e barroco e é tão única que não parece pertencer a um movimento e sim criar um estilo – tanto que muitos pintores posteriores seriam proclamados “caravagistas”.

Michelangelo Merisi nasceu em 1571 em Milano, mas durante muito tempo se acreditou ser o artista procedente de Caravaggio, província para a qual sua família se mudou quando ele era ainda criança – daí a alcunha. Em 1592, transfere-se para Roma, cidade onde conseguiria protetores poderosos e criaria a maior parte de seus trabalhos. Desde o início, sua vida é marcada por escândalos. Caravaggio era boêmio, brigão e sempre andava nas piores companhias. Foi acusado de agressões diversas e preso algumas vezes, mas acabava se livrando do cárcere graças aos amigos influentes que acumulou a despeito da fama de “maldito”. Mas nem mesmo seus protetores podem livrá-lo quando, em 1606, mata um desafeto durante um jogo de pallacorda (uma espécie de tênis medieval). Condenado à morte, o artista foge para Napoli e, posteriormente, para a Ilha de Malta, com a intenção de juntar-se à Ordem dos Cavaleiros de Malta e, desse modo, conseguir imunidade. Por algum tempo seu plano dá certo, já que ele de fato é nomeado cavaleiro, mas em 1608 seu passado é descoberto e seus companheiros o expulsam com desonra e o encarceram. Mais uma vez, Caravaggio consegue escapar em circunstâncias misteriosas e se refugia na Sicília, de onde retorna a Napoli. É nessa época que, prematuramente, começam a circular os boatos sobre sua morte.

Uma observação curiosa: depois da condenação à morte, podemos ver que em alguns trabalhos Caravaggio se coloca em situação análoga à de seus personagens, como, por exemplo, em David con la Testa di Golia, onde o gigante degolado tem as feições do artista. Em 1610, ao saber que o papa Paolo V estava concedendo indultos, Caravaggio decide retornar a Roma e implorar pelo perdão papal, mas sua vida termina em modo operístico: o navio que o reportaria à cidade é castigado pela malária e o artista acaba morto em Porto Ercole. Tinha 39 anos.

Embora Caravaggio tenha obras expostas por toda a Itália e em museus de outros países europeus, em nenhuma outra cidade do mundo está reunida uma quantidade tão grande de trabalhos como em Roma. Considerando que o artista realizou cerca de sessenta pinturas ao longo de sua curta e conturbada vida e que mais de vinte que se encontram espalhadas pela capital italiana, podemos considerar Roma como a cidade fundamental para quem deseja conhecer a sua obra.

Madonna dei Pellegrini (Sant'Agostino)

A boa notícia? Seis destas pinturas se encontram em três igrejas no centro histórico da cidade e podem ser apreciadas não somente de graça, mas em uma só manhã, dada a pequena distância entre elas. Em San Luigi dei Francesi está a “trilogia” sobre São Matheus: Vocazione di San Matteo, Martirio di San Matteo e San Matteo e l’Angelo. O primeiro é muito famoso pela luz oblíqua que incide sobre a cena, marcando uma das principais inovações de Caravaggio, que é o efeito de luz e sombra, ou seja, a pintura deixa de ter uma luminosidade uniforme e passa a ter partes dela realçadas enquanto outras são obscurecidas. A técnica conhecida como chiaroscuro é usada de forma extrema, sendo essa luminosidade em tons escuros e terrosos, típica de Caravaggio, posteriormente chamada “tenebrismo”. Na igreja Santa Maria del Popolo encontram-se Conversione di San Paolo e a impressionante Crocifissione di San Pietro, que mostra o apóstolo como um homem velho, cansado e com a expressão carregada de medo diante da iminente crucificação. Essa visão realista e despida de heroísmo dos santos seria outra característica bastante emblemática do estilo caravagístico. Já na igreja de Sant’Agostino está a naturalista Madonna dei Pellegrini, que mostra a mãe de Jesus em pose de grande informalidade diante de dois peregrinos sujos e de aspecto miserável.

Vocazione di San Matteo...

... San Matteo e l’Angelo (esq) e Martirio di San Matteo (dir), todos em San Luigi dei Francesi

Partindo do público para o privado, o maior acervo de Caravaggio em um museu está na Galleria Borghese, que detém nada menos do que seis quadros: Ragazzo con Canestra di Frutta, Bacchino Malato (que mostra o deus pagão com ar doentio e traços inspirados em seu próprio rosto), San Girolamo Scrivente, San Giovanni Battista, David con la Testa di Golia e Madonna dei Palafrenieri. Este último foi objeto de polêmica à época de sua confecção, por mostrar uma Madonna mais voluptuosa do que os cristãos estavam acostumados e um menino Jesus nu já bem grandinho. Some-se isso ao escandaloso hábito do artista de usar suas amantes ou prostitutas como modelos para as figuras santas. O ingresso da galeria Borghese custa onze Euros (em torno de 30 reais), o que eu realmente não acho caro para conhecer um dos maiores acervos de arte do mundo, considerando que um filme em 3D já custa o mesmo. Outro ponto alto são as esculturas de Lorenzo Bernini, famoso arquiteto da Piazza San Pietro (Vaticano) e de algumas das mais belas fontes de Roma, como a Fontana dei Quattro Fiume (Piazza Navona) e a Fontana della Barcaccia (Piazza di Spagna). O visitante deve somente estar atento ao fato de que a Galleria Borghese trabalha com pré-agendamento, ou seja, o dia e o horário da visita (que compreende duas horas) devem ser reservados pessoalmente ou pelo site pelo menos um dia antes.

Também vale destacar as duas pinturas presentes na Pinacoteca Capitolina, que são San Giovanni Battista, retratado por Caravaggio como um sensual e vigoroso jovem nu (nesta o perfeccionismo anatômico do artista é mais evidente que nunca, com a musculatura que parece “saltar” da tela) e o enigmático Buona Ventura, no qual uma misteriosa cigana lê a mão de um mancebo e parece querer hipnotizá-lo com seu dissimulado sorriso. Outras pinturas presentes em Roma são Deposizione nel Sepolcro (Pinacoteca Vaticana), Giuditta e Oloferne, Narciso (ambas no Palazzo Barberini), Riposo Durante la Fuga in Egito e Madalena (ambas na Galleria Doria Pamphilj). Nestas, não há necessidade de pré-agendamento, ainda que a Pinacoteca Vaticana possa ter filas dependendo da época do ano. Se tiver que fazer uma escolha, aconselho o complexo Musei Capitolini, onde, com somente um ingresso, se pode visitar a pinacoteca e o museu, que tem como destaques o original da estátua equestre de Marco Aurélio que está na praça do lado de fora e a estátua da loba capitolina, símbolo de Roma.

Buona Ventura...

... e San Giovanni Battista, os tesouros da Pinacoteca Capitolina

Nunca é demais lembrar: não vá a nenhum destes locais com pressa. Reserve ao menos duas horas quando for a um museu ou galeria de arte. Já o acervo das igrejas exige menos compromisso, já que pode ser visitado gratuitamente. Esteja atento somente ao fato de que a maioria das igrejas está aberta para visitação até o meio-dia, reabrindo depois por volta das 15h ou 15h30. Mais importante que tudo: se for a Roma, não perca essa oportunidade única de conferir com seus próprios olhos o legado desse gênio da pintura.

Observação: As fotos usadas neste artigo são das obras originais e foram feitas quando era permitido fotografar sem flash. Justamente por isso a qualidade das mesmas não é muito boa, mas, ainda assim, optei por usar meu registro feito in loco em vez de fotos perfeitas tiradas da internet. 

O belo edifício da Galleria Borghese que, infelizmente, não permite fotografias em seu interior

4 comentários:

  1. Belo texto, Erika. Morei um ano em Roma e sempre visitava esses caravaggios. Outra viagem é acompanhar seus seguidores, os caravaggescos. O que mais me chamava a atenção era o napolitano Mattia Pretti, também encontrável em Roma.

    Helio

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  2. Obrigada pela dica, Helio. Eu morei lá bem menos tempo que você (dois meses) e em Napoli estive somente um final de semana, então não deu tempo de conhecer os seguidores. Com certeza o farei numa próxima oportunidade!

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  3. Muito legal seu texto, Érika. E o uso de suas próprias fotos dá um tom mais pessoal, fazendo com que o leitor se identifique mais profudamente com as obras de arte. Beijos! Tati BernaCCi

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  4. Você vai pirar no Caravaggio, tenho certeza! ;)

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