segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Inveja dos Anjos


Existe uma certa mística de que o público carioca, quando se dá ao trabalho de ir ao teatro, só quer saber de diversão descompromissada. O teatro dito sério, mais poético e dramático, deve se abrigar em outros portos porque no Rio só vingam as comédias. Preconceito, puro preconceito. Aqui na Cidade Maravilhosa algumas companhias de teatro desmentem essa máxima através da solidez de sua trajetória.

O Armazém Cia. de Teatro, criado em Londrina, existe como grupo há 21 anos e há dez mudou sua sede para a Fundição Progresso, no Rio. A companhia ficou realmente conhecida perante o grande público a partir de 1999, graças ao inesquecível Alice Através do Espelho. Algumas características sempre presentes nos trabalhos da trupe dirigida por Paulo de Moraes são a cenografia arrojada, um olhar poético que não teme ser “teatral” e o altíssimo rendimento de todo o elenco, sem distinções. E assistir a uma peça do Armazém é um convite para se surpreender, seja encenando Beckett (Esperando Godot), Nelson Rodrigues (Toda Nudez Será Castigada) ou dramaturgia própria, como é o caso deste Inveja dos Anjos.

Os trilhos de um trem que cruzam o palco simbolizam tanto dolorosas partidas como inesperadas chegadas. Tomás é dono de um sebo e escritor frustrado: não gosta das coisas que escreve. Ainda assim, acha importante escrever; nem que seja para queimar as lembranças um dia. A menina Natália aparece do nada com um bilhete que a declara sua filha. Na casa ao lado, Luísa gastou a juventude cuidando da mãe louca e vive essa rotina há tanto tempo que não consegue mais se lembrar de seus gostos pessoais. Já Cecília cansou de esperar pela volta do homem que um dia embarcou num trem sem nem ao menos se despedir. Rocco foi viver aventuras, mas agora sente falta de suas raízes. Como fio condutor da trama, um carteiro que lê escondido a correspondência e só então decide se deve entregar a carta ou não.

Inveja dos Anjos seduz o espectador aos poucos: começa de modo leve e cômico, embora em nenhum momento abandone uma certa poesia. Aos poucos, a teia de relações se aprofunda e entrevemos as dores ocultas e sonhos frustrados de cada um. E os personagens parecem muito vivos, porque, assim como nós, soterram os traumas sob uma máscara de normalidade. Mas os trilhos do trem não são apenas despedidas, podem ser reencontros, novidades, esperança. Ou não. É difícil analisar aqui, por escrito, um espetáculo que foi totalmente concebido para ser visualizado e sentido. Inveja dos Anjos é particular e universal ao mesmo tempo, falando de modo onírico e simbólico sobre gente que poderia ser a gente.

O elenco é de um preparo corporal, vocal e dramatúrgico perfeito. Tão bem nivelado que talvez seja um pouco injusto destacar alguém, mas, por outro lado, não posso deixar de mencionar Patricia Selonk, uma das mais incríveis atrizes que eu já tive o prazer de ver num palco. Patricia tem a habilidade de sempre se reinventar de modo sutil para seus papéis, alterando inflexões e gestual, mas nunca deixando de olhar o espectador no olho e transmitir toda sua verdade com uma força que chega a intimidar.

Quem quiser assistir a este belo espetáculo ainda em 2008 deve se apressar. A peça fica na Fundição Progresso de quinta (18) até domingo (21), às 20h. Depois, é interrompida para o festejos de fim de ano e retorna somente no dia 8 de janeiro. Ingressos a 30 reais e reservas pelo telefone 2210-2190. Aconselho reservar. Não acreditem na tal preferência do carioca pelas comédias, porque peça nova do Armazém é sinônimo de casa cheia.

2 comentários:

  1. Assisti a peça e achei de uma sensibilidade ímpar. Paulo de Moraes e seu Armazém de talentos acertaram mais uma vez.
    Gostaria do email do autor do blog para que pudesse enviar dicas culturais. Meu email é contato@teatrodaestrutura.com.br

    Otto Caetano.

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  2. Olá, Otto

    Você e todos os leitores podem me contactar pelo e-mail erikaliporaci@uol.com.br

    Abraços,

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