segunda-feira, 7 de abril de 2014

Pacto de Sangue: a essência do film noir faz 70 anos



O termo film noir foi utilizado pela primeira vez em 1946 por um crítico chamado Nino Frank. Antes disso, alguns cineastas realizaram filmes do estilo sem que ele assim fosse nomeado. Quando pensamos no exemplar mais marcante deste gênero que teve sua era de ouro no cinema americano das décadas de 40 e 50, o primeiro longa que vem à mente é Pacto de Sangue. Um dos primeiros filmes da carreira de Billy Wilder, Pacto de Sangue pode ser considerado a própria essência do noir.

Vejamos as principais características do estilo: atmosfera pessimista, fotografia escura e estética influenciada pela angulosidade dramática do expressionismo alemão. Confere. No lugar do herói sem mácula, um homem comum de moral duvidosa. Em vez da mocinha voluntariosa, a mulher fatal cínica e ambiciosa que talvez, no final das contas, ame o protagonista. Confere. Diálogos espertíssimos e cheios de duplo sentido, onde conversas corriqueiras ganham forte conotação sexual. Confere. Essas são apenas algumas das características que foram criadas por esse filme em 1944 e continuam sendo copiadas mundo afora setenta anos depois.

Logo na cena de abertura, numa ousadia semelhante à que o diretor cometeria anos depois em Crepúsculo dos Deuses, o próprio protagonista resume para o espectador o desfecho da trama. Em vez da voz em off, ele faz sua confissão para um ditafone, de corpo presente na tela. A gravação é endereçada a seu chefe e amigo Barton Keyes: ele, Walter Neff, agente de seguros até então sem manchas na reputação, matara um homem:

“Sim, eu o matei. Matei por dinheiro. E por uma mulher. Não consegui o dinheiro nem a mulher. Bonito, não?”

Podemos dizer que o restante do filme é um longo flashback. Numa tarde ensolarada na Califórnia, Neff bate à porta do Sr Dietrichson para tentar renovar uma apólice de seguro prestes a vencer. Quando Phyllis, a sra. Dietrichson, aparece no alto de uma escada, o espectador já pressente que Walter está irremediavelmente condenado. Como em todo bom film noir, o protagonista é esperto o suficiente para saber que está se metendo numa enrascada e fraco o suficiente para, ainda assim, se deixar enredar nela.


“ - Você quer que ele tenha a apólice sem saber disso. E sem que a seguradora saiba que ele não sabe. É uma cilada, não?
- Há algo errado com isso?
- Não, acho adorável.”

Seduzido não apenas por Phyllis mas também por um certo orgulho intelectual que o faz se julgar capaz de cometer um crime perfeito debaixo das barbas de Keyes, seu eficiente e intuitivo supervisor, Walter Neff arquiteta um intrincado esquema para que o assassinato do Sr Dietrichson pareça um acidente: na noite em que ele vai fazer uma viagem de trem, matam-no a caminho da estação. Depois Walter embarca no trem e, evitando fazer contato visual com quem quer seja, passa-se por Dietrichson. O passo seguinte é pular do trem no ponto em que combinara com Phyllis, retirarem o cadáver do carro e jogá-lo nos trilhos do trem. Definitivamente, um acidente. E tendo acontecido em um trem, tal fatalidade daria à beneficiária do seguro uma indenização dupla (double indemnity, como no título original) graças a uma cláusula que a seguradora usa como chamariz, cobrindo em dobro situações que raramente acontecem.

Engenhoso? Sim. Perfeito? Em teoria. A polícia dá-se por satisfeita, mas não Keyes. E é como diz o velho ditado, quem procura acha. E, de tanto pensar, um dia ele deduz passo a passo todo o plano (mais ou menos como faz aquele policial no final de Match Point, de Woody Allen). A única coisa que Keyes não consegue deduzir, e nunca conseguiria sozinho, é a identidade do cúmplice de Phyllis. Não por inépcia e sim por sua objetividade estar obliterada pelo afeto que sente por Walter. O próprio Walter parece temer menos a polícia e seu destino do que a decepção que inevitavelmente causará a Keyes. Interessante notar que a relação de amizade entre os dois homens é o único sentimento verdadeiro e inequívoco da história.

A fotografia excepcional de John Seitz, que criou toda uma gama de texturas e nuances para a penumbra opressiva na qual vive mergulhada a casa dos Dietrichson, tem um apelo fundamental para a trama. As imagens por si só contam uma história. Mesmo o espectador mais desatento não pode deixar de se maravilhar com as tomadas que mostram os personagens perpassados pelas faixas de sombra e luz das persianas. Simplesmente genial. Outro ponto interessante é o fato da trama ser ambientada na Califórnia, o que faz um contraste bem significativo entre a luminosidade exterior e a atmosfera sombria dentro da casa dos Dietrichson. Intenções que a intensa e dramática trilha sonora de Miklós Rózsa ajuda a sublinhar com perfeição.


Baseado numa das histórias do livro Three of a Kind, de James M. Cain, Double Indemnity foi adaptado para as telas pelo próprio Wilder em parceria com Raymond Chandler. Hoje em dia considerado não apenas um grande noir, mas um dos melhores filmes de todos os tempos, Pacto de Sangue foi um projeto recusado por muitos atores, que tinham medo de queimar seu prestígio interpretando um personagem amoral como Walter Neff. Também Barbara Stanwick tinha suas reservas em relação ao trabalho, mas não podia recusá-lo por estar sob contrato. O resultado é que essa excepcional trama de adultério, corrupção e assassinato foi indicada a sete Oscars, incluindo melhor filme e melhor atriz para Stanwick.

A atriz certamente ficou marcada (positivamente, é claro) por esse papel. Com seu penteado exótico e sua dissimulação à toda prova, Phyllis pode ser considerada a primeira femme fatale de Hollywood. Também acertada foi a escolha de Fred MacMurray, que faz um tipo essencialmente simpático a despeito das ações vis que comete. Completando o trio, Edward G Robinson é brilhante em cada cena com sua verve irônica e sua metralhadora giratória de sarcasmo.

Coroando tantos acertos felizes, pode-se dizer que Pacto de Sangue não seria o filmaço que vem assombrando gerações se não fosse capitaneado por um gênio da estatura de Billy Wilder, que transformou os maiores percalços em qualidades. Wilder conseguiu realizar um filme totalmente calcado em assassinato e adultério sem mostrar nenhum dos dois na tela. Hollywood vivia uma época de auto-censura e o Código Hays não permitia que “certas coisas” fossem mostradas. Sugeridas, sim. Nunca exibidas. Assim, o que vemos no momento em que Walter assassina Dietrichson é o rosto de Phyllis, mostrando um leve sinal de satisfação. O que, convenhamos, é muito mais instigante do que um estrangulamento explícito. Já a sugestão de sexo é a própria simplicidade: eles se beijam no sofá. Corte. Na próxima cena, estão sentados um em cada canto. Ela retoca a maquiagem, ele acende um cigarro.

E a cena final, perfeita, também foi uma alternativa ao desfecho original censurado. Depois de uma exibição-teste em que foi rejeitada (por ser excessivamente realista) a cena em que Walter Neff morria na câmara de gás, o cineasta opta por cortar a história no encontro de Neff e Keyes e com o magistral diálogo:

“- Sabe por que você não adivinhou, Keyes? Eu te digo. Porque o homem que você estava procurando estava muito próximo. Bem do outro lado da sua mesa.
- Estava mais perto do que isso, Walter.
- Eu te amo também.”

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