quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O Artista



A transição do cinema mudo para o falado, ocorrida gradualmente a partir de 1928, pode ser considerada a mais definitiva de todas as reviravoltas ocorridas na história da sétima arte, já que nenhuma outra foi responsável por decretar o fim de tantas carreiras consagradas ao mesmo tempo em que fazia surgir do nada tantas novas estrelas. O assunto, sempre fascinante, triste e polêmico, já foi enfocado antes em diversos filmes, seja em abordagens melancólicas como Crepúsculo dos Deuses, seja em explosões de alegria como Cantando na Chuva – na minha opinião, o filme que melhor retrata essa passagem.

O francês Michel Hazanavicious, no entanto, queria contar essa história da maneira mais radical possível, ou seja, realizando em pleno século XXI um filme sobre o cinema da década de 20 feito nos moldes da época retratada: mudo e preto-e-branco. Dizem que muita gente riu a princípio de tal ideia, mas o cineasta foi em frente e provou a delícia de rir por último com esta sincera e comovente declaração de amor à sétima arte.


No já citado Crepúsculo dos Deuses, a diva do cinema mudo Norma Desmond resume todo seu desprezo pelos filmes sonoros com a seguinte frase: "não precisávamos de diálogos, tínhamos rostos". A frase parece perfeita para expressar a fagulha de encanto que os carismáticos Jean Dujardin e Bérénice Bejo parecem acender em cada espectador. Ele é um vaidoso astro do cinema mudo que se recusa a considerar a possibilidade de encarar os novos tempos; ela é uma jovem estrela em ascensão que sabe aproveitar a demanda por novos rostos surgida com a sonorização. Assim, assistimos o antes célebre George Valentin – que parece um misto de Errol Flynn, Rodolfo Valentino e Douglas Fairbanks – entrar em declínio enquanto a ex-figurante Peppy Miller ganha as telas em carreira vertiginosa.

A coquetice de Bérénice e as expressões exageradamente bufas de Jean nos transportam diretamente para essa era mágica do cinema americano, quando fazer filmes ainda era mais uma grande empreitada do que uma indústria rigorosamente estruturada e a sétima arte ainda não vivia o dilema entre ser arte ou entretenimento – não que uma coisa exclua outra. Outro “ator” que tampouco podemos deixar de citar é o cãozinho Uggie, responsável por algumas das imagens mais fofas do filme. Também são muito bem sacadas as referências auditivas, que se utilizam do som direto para criar leituras metalinguísticas bem interessantes. Destaque para o pesadelo que o protagonista tem quando constata que o cinema falado veio para ficar.


De antemão, prevejo que vai ter gente acusando o filme de ingênuo. Sim, O Artista é totalmente ingênuo em sua aparência, assim como o eram os filmes da época mostrada, mas é uma produção realizada com tamanha propriedade que parece desafiar qualquer amante da sétima arte a não sentir a pele arrepiar ou as lágrimas chegarem perto dos olhos em determinadas passagens. Do início impressionante ao desfecho espetacular, é um filme concebido com os dois pés no saudosismo, mas não um saudosismo amargurado: o sentimento preponderante em O Artista é a ternura. Pelo fim de uma era e também pela capacidade inesgotável da sétima arte em reinventar a si mesma.

O Artista venceu três Golden Globes (melhor filme, ator e diretor) e concorre a nada menos do que dez Oscars no próximo dia 26. Merece ser premiado não apenas pelo lindo filme que é, mas por sua proposta e pela coragem de levá-la adiante, mesmo contra o consenso geral de que o público de hoje rejeitaria um filme mudo. O que nos leva à velha questão: é o público que não aceita propostas arrojadas ou são os realizadores que não tem coragem de bancá-las? Fica o exemplo e o agradecimento de todos nós que adoramos cinema ao notável Michel Hazanavicius. Possa ela ter outras ideias estranhas e geniais. Amanhã nos cinemas.


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