sexta-feira, 22 de maio de 2009

Budapeste


Ao término de Budapeste, certamente será difícil para o espectador tirar da cabeça os sons exóticos e incrivelmente melodiosos de Feijoada Completa (aquela do “e vamos botar água no feijão”) em versão húngara. Chico Buarque em húngaro? Pois é, e o pior é que faz todo sentido. Budapeste, adaptação do romance homônimo de Chico, narra a viagem – muito mais interior que exterior – de um carioca chamado José Costa. Casado com uma bela mulher, estabilizado financeiramente como um ghost writer de sucesso, Costa parece estar com a vida mansa. Só que, considerando as particularidades de sua profissão, ser bem-sucedido significa viver nas sombras e ver seus clientes, um após o outro, colherem todos os louros do seu intelecto. José vive pela metade. Tem de tudo e não possui nada. Está nos lugares e é como se não estivesse em parte alguma. Até que um pouso forçado o apresenta a Budapeste e, do outro lado do mundo, ele se redescobre. Inventa para si uma nova biografia. Um novo nome. Encontra um novo amor. Encontra a si mesmo. Tanto que escuta Feijoada Completa em húngaro quando, na verdade, a canção está sendo cantada em português. É uma cena bastante ilustrativa. José Costa virou Zsoze Kósta.

Adaptar Chico Buarque para o cinema nunca foi tarefa simples. Com um estilo literário pleno de metáforas e um pé no surrealismo, transpor uma obra de Chico para a tela grande sempre requer soluções criativas. Para tanto, basta lembrar o delírio estético proposto por Ruy Guerra em Estorvo – filme que se caracteriza por levantar as mais diversas e radicais opiniões. Neste aspecto, a produtora e roteirista Rita Buzzar optou por uma abordagem mais simples e direta em Budapeste. O roteiro não é exatamente fiel, mas consegue compreender de modo eficiente o espírito geral da história. A produção também foi bastante favorecida pelo fato de parte do longa ter sido, de fato, filmado em Budapeste, já que obviamente não seria boa idéia falsear uma locação que é para a trama um personagem tão importante quanto seus protagonistas.

O espectador, juntamente com Costa, mergulha na bela cidade amarelada e no modo como sua estranheza inicial em relação ao frio, ao idioma estrangeiro e a uma cultura totalmente sem parâmetros para nós cede ao encantamento e à possibilidade única de criar uma nova biografia para si a partir do nada. Uma nova identidade, húngara, como um homem diante de um jogo de espelhos. De cara, ele se apaixona pelo idioma incompreensível e de cadência ritmada que lembra a poesia. Costa se admira por não conseguir reconhecer onde começa uma palavra e termina outra e fica ainda mais intrigado quando uma linda nativa lhe declara, enigmaticamente, que o húngaro é “a única língua que o diabo respeita”. Está criada a magia.

As sequências filmadas na Hungria tem um apelo tão forte que, em contrapartida, cria-se um pequeno desnível emocional em relação ao trecho rodado no Rio de Janeiro. Por Budapeste – neste caso, a cidade – simbolizar a magia do sonho e o Rio de Janeiro a crueza cotidiana, por vezes tem-se a impressão de que a trama é menos sutil e poética quando ancorada na cidade maravilhosa. Como se as reações do próprio protagonista fossem anestesiadas em solo brasileiro e totalmente expandidas em solo húngaro. Espelhamento também presente nas duas mulheres em sua vida: Vanda, a esposa brasileira, é contida e cheia de asperezas enquanto a Húngara Kriska é um sopro de alegria fluida.

Outro destaque vem da dedicação incansável do sempre talentoso Leonardo Medeiros, que interpreta em húngaro como se realmente compreendesse o idioma. Leonardo declarou na coletiva de imprensa do filme que decorou as falas e se limitou a tentar reproduzir as frases com exatidão, mas sua fé cênica é tão grande que em nenhum momento o espectador deixa de acreditar naquele homem que foi viver em Budapeste e absorveu o idioma a ponto de poder trabalhar e viver seu dia-a-dia lá.

O diretor Walter Carvalho, grande mestre da fotografia, assina seu primeiro longa-metragem sozinho (ele foi co-diretor de Cazuza, entre outros) e evidencia sua maturidade habitual na função. Há que se parabenizar também a determinação de Rita Buzzar, que, desde que leu o livro, se empenhou pessoalmente na obtenção dos direitos de filmagem e em cada etapa necessária para a realização do que se vê agora na tela. Diferente do livro? Certamente que sim, porém sem nenhum demérito ao filme. Adaptar é também uma forma de criar mais um espelhamento, o que soa perfeitamente natural na história de um homem que se desdobra em dois.

Nenhum comentário:

Postar um comentário