sexta-feira, 1 de maio de 2009

Leite Derramado

Às vésperas da estréia da esperada versão cinematográfica de Budapeste – prevista para 22 de maio –, conferi o novo romance de Chico Buarque. Leite Derramado narra, em primeira pessoa, as memórias do centenário Eulálio Assumpção. Agonizante em um leito de hospital, o protagonista rememora não apenas sua vida mas também toda a saga de sua outrora ilustre família. Descendente de uma nobre estirpe que inclui um barão do Império e um senador da primeira República, Eulálio viu o prestígio e poder aquisitivo de sua família decair a partir de sua geração. Sem rumo desde que a esposa, Matilde, saiu de sua vida, foi um pai omisso para a confusa Maria Eulália. Cheio de descendentes que levam seu nome – neto, bisneto, tataraneto –, ele confunde e funde todos esses eulálios cujo parentesco não consegue mais distinguir.

Essas são apenas algumas das pequenas histórias que conta num fluxo de consciência, perdido entre delírios e lembranças. Dirige-se a uma enfermeira, à filha, ou a quem mais se dispuser a ouvir. Desrespeitando a ordem cronológica e menosprezando a acuidade, Eulálio é um narrador nada confiável, visto que falseia a própria história. E o leitor enreda-se nas idas e vindas do personagem, aos poucos montando o estranho quebra-cabeça de sua biografia. Algumas questões cruciais, como o destino da amada esposa Matilde, ficam abertas à interpretação. Outras aos poucos são desveladas a contragosto, como seu racismo e sua negação irracional do fato de ter se casado com uma mulata.

Em seu quarto romance, Chico Buarque distancia-se do tom kafkiano de suas obras anteriores e segue em um estilo diverso, porém igualmente genial. Com naturalismo e singeleza, o autor cria uma narrativa refinada, cheia de associações diretas e indiretas. Através de suas mentiras e omissões, Eulálio deixa entrever mágoas seculares e feridas não cicatrizadas. O título do livro, que parece abstrato a princípio, faz todo sentido quando terminada a leitura. Uma curiosidade: comenta-se que um dos primeiros leitores dos originais foi Rubem Fonseca, que recomendou a Chico que trocasse o título.

Para quem é fã do nosso grande compositor-cantor-dramaturgo-escritor, a dica é obrigatória. E aqueles que ainda não conhecem sua porção literária, certamente se encantarão com sua maturidade e domínio da arte literária.

Um comentário:

  1. Um belo exercício de literatura este! Não sou fã do trabalho literário do Chico - prefiro ele 'musicalmente', mas este me cativou.

    A leitura fluiu em apenas algumas horas e terminei o livro, rapidamente.

    Eu gostei muito do resultado, até comentei ele no Apimentário, se puder confira meu ponto de vista.

    Um belo livro, sim! Ainda que não o considere excepcional.

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