sexta-feira, 20 de abril de 2012

Vestido de Noiva 2012


A importância de certos textos teatrais transcende o que está escrito no papel, como é o caso de Vestido de Noiva, obra-prima de Nelson Rodrigues que é considerada marco inaugural da dramaturgia brasileira moderna. Encenada originalmente em 1943 em uma impactante montagem, a peça trouxe para o palco conceitos até então impensáveis, como a narração não-linear de uma trama que ocorre em três planos simultâneos e paralelos. Alaíde, a protagonista, é atropelada na primeira cena e, a partir daí, a trama se desenrola no plano da realidade (notícias sobre o acidente, médicos que tentam salvar sua vida), da memória (delirante e confusa, ela relembra fatos passados) e da alucinação (memórias reais se confundem com fantasias e obsessões). Isso faz com que grande parte da história, na verdade, se passe no subconsciente de Alaíde, cabendo ao plano da realidade fazer o cortante contraponto aos dramas psicológicos da atropelada, ou seja, os planos diferenciados são também estruturais e não meras passagens de tempo. 

Na montagem que ocupa a rotunda do CCBB atualmente, o diretor Caco Coelho aproxima esses planos não só em termos espaciais como também deixa mais difuso a separação entre eles, deixando que o tom imposto ao delírio invada o campo das recordações e até mesmo o da realidade. A decisão, embora possa ter o efeito colateral de confundir o espectador pouco familiarizado com o texto original, tem como saldo positivo proporcionar um espetáculo bastante orgânico e vibrante, onde está tudo interligado, deixando que também a plateia faça parte do impressionante espaço cênico. O espectador poderá ter impressões diversas ao longo de uma hora e quarenta minutos de espetáculo, vivenciando estar em meio a um cabaré, um circo, um globo da morte e, em determinados momentos, até mesmo dentro de um útero.

Contando em ordem cronológica, a história parece simples: Alaíde e Lucia são irmãs e rivais pelo amor de Pedro; Alaíde leva a melhor e casa-se com ele, mas logo fica entediada, já que tomou o namorado da irmã por capricho. Enquanto Lucia tenta recuperar o tempo perdido e se insinua para o cunhado, Alaíde encontra no sótão de casa o diário de uma cafetina assassinada 40 anos antes, tornando-se obcecada com a história. Atravessa a rua distraída, é atropelada e, agonizante na mesa de cirurgia, relembra sua história de amor, mas acaba por confundi-la com o que leu no diário de Madame Clessi.

O elenco demonstra bastante preparação corporal em uma concepção que se utiliza – e muito – de elementos da dança e do canto para impulsionar o ritmo do espetáculo, enquanto a parte vocal em determinadas passagens parece um pouco prejudicada pela demanda física que se exige dos atores, que correm, pulam e sobem escadas em ritmo alucinante, deixando a plateia igualmente agitada, alcançando uma atmosfera febril que vibra por todo o espaço cênico. Viviane Pasmanter se destaca no papel de Madame Clessi, dando o peso certo a um personagem fundamental, mas todo o elenco parece bem afinado e coeso, com uma identidade forte de teatro de grupo, de uma equipe que de fato se dedicou ao preparo dessa montagem de corpo e alma.


Confesso que a primeira impressão do espetáculo foi um pouco imprecisa, já que é difícil para quem é admirador dessa obra aceitar, em um primeiro momento, essa ideia de um Nelson Rodrigues mais, digamos, tropicalista. Dias depois, passado o choque inicial, o que foi visto ainda tem o poder de fervilhar na memória. Nelson Rodrigues certamente ficaria satisfeito com uma montagem que provoca tantas dúvidas e reflexão, já que ele mesmo declarava que “o verdadeiro teatro deve agredir sempre”. Não que a montagem em questão agrida, não seria essa a palavra, mas é certo que a explosão de hormônios, loucura e caos intencional criada por Caco Coelho abala as convicções que todos temos a respeito desse texto imortal.


O espetáculo fica até o dia 6 de maio no Centro Cultural Banco do Brasil, com ingressos (disputadíssimos) a 6 reais. De quarta a domingo, 21h. Vejam, sintam, analisem, concluam.

(Fotos:  Fabio Nagel / Divulgação)

Para ler texto anterior sobre Nelson Rodrigues e Vestido de Noiva, clique aqui.

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