quinta-feira, 16 de julho de 2009

Nelson Rodrigues e Vestido de Noiva


Reza a lenda que um dia qualquer, em 1941, Nelson Rodrigues, recém-casado e imerso em apertos financeiros, passava em frente ao Teatro Rival quando viu uma enorme fila que se formava para assistir a uma chanchada e pensou: “por que não escrever teatro?” Assim, meio por acaso, nasceu o dramaturgo. Sua peça de estréia foi A Mulher sem Pecado, encenada no ano seguinte com pouca repercussão perante o público e a crítica.

Mas eis que, em janeiro de 1943, o autor escreve sua segunda peça: a revolucionária Vestido de Noiva. Hoje em dia ninguém mais duvida que Nelson Rodrigues desempenhou um papel vital na dramaturgia brasileira. E tal ruptura com todo um passado de influência européia se deu justamente com esta peça. Nela, o autor trabalha com simultaneidade de tempo e ação e planos dramáticos diferenciados, sem contar a até então inédita utilização de um ritmo narrativo picotado bastante próximo da linguagem cinematográfica moderna. Vestido de Noiva possui três atos com passagem de tempo indefinida entre eles. A ausência de linearidade cronológica situa a peça no teatro contemporâneo, de princípios realistas. O cenário é uma representação do subconsciente da protagonista: passado, presente e futuro se misturam e se influenciam, fazendo com que não haja uma verdade absoluta.

Cópias do texto foram enviadas a jornalistas, críticos e amigos. Dentre eles, Manuel Bandeira, que gostou e escreveu um artigo elogioso sobre ela. Os jornais falavam sobre Vestido de Noiva, mas, ainda assim, ninguém se dispunha a encená-la. Dizia-se que era uma peça inviável, que exigia cenário complexo e teria custo muito alto. Somente Thomaz Santa Rosa - ex-funcionário do Banco do Brasil, cantor lírico, desenhista, músico e poeta - achou que era possível. Juntou-se à trupe o polonês Zbigniew Ziembinski, que, recém-chegado ao Brasil, leu a peça e entusiasmou-se, dizendo não conhecer nada no teatro mundial que se comparasse a ela. A opinião foi profética, pois, passados mais de 60 anos, ainda não voltou a ocorrer no teatro nacional evento que supere a ruptura que Vestido de Noiva significou à época para os palcos brasileiros. O espetáculo, dirigido e iluminado por Ziembinski, provocou uma revolução estética graças à pioneira utilização de recursos do expressionismo na interpretação dos atores e na direção cênica.

Após sete meses de ensaios diários, em 28 de dezembro de 1943, mais de dois mil espectadores lotam o Theatro Municipal do Rio de Janeiro para a estréia. Ao fim, silêncio total na platéia. Nos bastidores ninguém sabia o que fazer. Ziembinski, entre palavrões em polonês, manda subir o pano. Os artistas surgem e o aplauso é ensurdecedor.

Podemos dizer que a dramaturgia nacional divide-se entre antes e depois de Vestido de Noiva. Sua estrutura, que segue três diferentes planos narrativos - realidade, delírio e memória -, é até hoje considerada inovadora. A trama parte de um argumento aparentemente simples: uma jovem toma o namorado da irmã e casa-se com ele, mas o rapaz não deixa de cortejar a cunhada e os dois chegam a desejar a morte da esposa que de traidora passa a ser a traída. Mas a trama noir que poderia daí advir não chega a se concretizar, pois antes que qualquer plano seja executado a indesejada esposa é atropelada, assim liberando o caminho para o casal de amantes. Contada assim, de modo objetivo e linear, a história não soa nada original. Pelo contrário, insinua até um certo anticlímax por prometer um grande mistério e acabar de modo tão prosaico e conveniente.

Mas é aí que entra a genialidade de Nelson Rodrigues, que montou sua história de um modo tão anti-convencional que fez a peça ganhar fama de “impossível de ser montada”. Em primeiro lugar, Alaíde, a esposa traída, parece não ter lá muito afeto pelo marido tão disputado. Seu interesse logo se desvia dele e transfere-se para uma inusitada descoberta que faz no sótão de sua casa: o diário de Madame Clessi, uma cafetina que morrera apunhalada pelo amante adolescente décadas antes. Alaíde fica tão obcecada por Clessi que passa os dias a tentar descobrir mais sobre ela. Alheia a tudo o mais, atravessa a rua sem olhar e é atropelada. O fato é mostrado ao espectador na primeira cena, fazendo de grande parte da trama um longo e surrealista flashback. Levada ao hospital com vida, é na mesa de cirurgia que Alaíde relembra sua vida. Nesses momentos finais, anestesiada e delirante, sua fantasia se mescla à memória.

Sempre suspensa por um quê de tensão, a história mergulha na mente da personagem. Perturbada e confusa, a protagonista descobre junto com a platéia pedaços de sua história, para só então juntá-los e enxergar no todo alguma coerência. Entre a vida e a morte, entre o delírio e a realidade, entre a sanidade e a loucura, todos nos tornamos Alaíde, ansiosos em entender o que se passara em sua vida até o fatídico atropelamento.

Talvez seja difícil para o público de hoje entender o grau de revolução que Vestido de Noiva representou não apenas para o teatro nacional, mas também considerando todo o contexto artístico de então. Embora nos dias atuais seja muito natural misturar recursos e linguagens de diferentes mídias, em 1943 o teatro seguia as regras estritas da linguagem teatral. Em Vestido de Noiva, Nelson trabalha com recursos do teatro, mas também da crônica de jornal (estilo fragmentado e cortante presente no plano da realidade) e do cinema (uso da voz em off, flashbacks, cortes bruscos). Sem contar que é uma tragédia desprovida de formalismo, que ousa utilizar a linguagem do dia-a-dia e colocar no palco a classe média e todas suas questões prosaicas.

Nelson Rodrigues escreveu Vestido de Noiva aos 31 anos. Era sua segunda peça e, para ele, apenas um meio de melhor sustentar a família. Certamente não imaginava que estava criando uma obra de referência, um símbolo de modernidade e um marco na ruptura com um teatro arcaico que a cena brasileira não poderia sustentar por muito tempo mais. Vestido de Noiva, casamento perfeito entre o popular e o erudito, uma inédita tragédia carioca com elementos do cotidiano, a colocar o dedo na ferida do dilema da mulher pré-feminista, enfim, uma revolução tão grande que o público da época não pode digerir em todas as suas ramificações. Afinal de contas, os grandes acontecimentos só com o devido distanciamento temporal podem ser devidamente avaliados.

Um comentário:

  1. Adorei ler Vestido de Noiva, porém nunca vi encenada, o que é uma pena.ineersi

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