terça-feira, 28 de julho de 2009

À Deriva


Logo nas primeiras imagens de À Deriva, o espectador pode ter a impressão de que já sabe o que esperar do filme. Mathias, escritor francês radicado no Brasil e casado com uma professora brasileira, passa férias em Búzios com a esposa Clarice e os três filhos. Ele está na praia com a família quando seu olhar se cruza com o de uma bela mulher enquanto a Clarice nada parece notar. A seguir, algumas cenas esclarecem que a relação do casal não está nada bem. Então é um filme sobre adultério e separação? Sim e não. Neste novo filme de Heitor Dhalia tudo é e, ao mesmo tempo, não é como parece à primeira vista.

A trama é centrada no olhar de Filipa, adolescente de 14 anos e filha mais velha do casal. A viagem é uma tentativa desesperada de restaurar a relação alquebrada e Filipa é a primeira a perceber o motivo real daquelas férias, ao flagrar pequenos lampejos de ressentimento entre os pais: Clarice está sempre embriagada e direciona um certo desprezo ao marido e seu trabalho, enquanto Mathias deixa os problemas financeiros da família em segundo plano em nome da integridade artística. A sensação de que algo está errado se transforma em certeza para Filipa quando ela descobre o envolvimento do pai com outra mulher. Mas a crise em sua família é muito mais complexa e vai muito além dessa escapulida, como Filipa e o próprio espectador descobrirão mais adiante. Ao mesmo tempo, a menina sente a sexualidade aflorar e faz as primeiras descobertas amorosas numa relação confusa com um dos meninos da turma.

O roteiro, também escrito por Heitor Dhalia, busca inspiração nos próprios sentimentos do cineasta à ocasião em que seus pais se separaram. Tanto que o filme é ambientado no início da década de 80, época em que o fato ocorreu. O espectador pode sentir que trata-se de um filme feito com o coração, mas a trama, a despeito de qualquer motivação pessoal, vai além disso e apresenta uma historia de apelo universal. O desapego de Dhalia e seu senso de medida ficam bem evidentes pela própria decisão de transformar a protagonista em uma menina, o que certamente requereu da produção uma maior delicadeza e poesia. Filipa vive o famoso rito de passagem para a idade adulta em meio a uma grande decepção com a figura paterna que outrora idolatrava, e isso logicamente dá um nó nas suas ideias. Paradoxo também representado no contraste entre a beleza ensolarada de Búzios durante o dia e as sombras difusas de algumas tomadas noturnas, não por acaso as cenas mais dramáticas – mérito também da riqueza de nuances da fotografia de Ricardo Della Rosa.


Como fã de carteirinha do trabalho anterior do cineasta/roteirista e sua linguagem expressionista, confesso que não sabia bem o que esperar da tão anunciada “normalidade” de À Deriva. Agora entendo com muita clareza o óbvio: Heitor Dhalia sabe trabalhar com precisão e competência seus personagens, independentemente da linguagem utilizada, e seus filmes anteriores não seriam tão apaixonantes se fossem pura linguagem. O que os torna realmente memoráveis é o modo como o desespero kafkiano de Nina e a carência travestida de perversidade de Lourenço nos comovem.

Em À Deriva, a invasão do espectador na intimidade daquela família bacana de classe média que está a ponto de implodir torna-o tão cúmplice que todos sofremos ao perceber que o fim do sonho é inevitável. A certa altura do filme, há uma pequena Filipa no coração de cada um de nós. Momentos singelos começam a incomodar pelo simples fato do conhecimento de que aquela união familiar está irremediavelmente comprometida, como na bela cena em que Mathias dança com a esposa e a filha ao som de Be My Baby (aliás, puro revival dos anos 80 incluir uma canção do filme Dirty Dancing).

A direção de arte de Guta Carvalho e os figurinos de Alexandre Herchcovitch ajudam a criar o clima de nostalgia que combina bastante com a questão da perda de inocência que permeia a trama. Também há um clima retrô no gestual, no modo como os personagens fumam e discutem relação, enfim, é toda uma atmosfera que pode ser muito mais sentida do que explicada em minúcias.


O elenco é soberbo, desde a conhecida presença cênica de Débora Bloch ao naturalismo com que Vincent Cassel atua em português. Aliás, um grande acerto nesse sentido é não tentar disfarçar o sotaque e assumir o ator como um personagem francês mesmo. Não deixa de ser curioso que Vincent e Débora em cena transmitam uma excelente química como casal a despeito de seus personagens estarem se desentendendo. Também o modo como os dois se relacionam com os filhos passa uma sensação de verdade e intimidade familiar muito intensa. Isso sem falar o achado precioso que é a menina Laura Neiva – e olhem que ela nem queria ser atriz.

Mais do que pinçar os talentos individuais, é preciso aplaudir a direção sensível e, ao mesmo tempo, segura de Heitor Dhalia, que faz com tudo funcione como um conjunto, um bloco único e perfeito. À Deriva é, até o presente momento, o melhor filme nacional deste ano. É necessário dizer mais alguma coisa?

Saiba mais no blog do filme: http://www.aderivafilme.com.br/blog/

2 comentários:

  1. Eu gostei muito do primeiro filme do diretor, "Nina". Gostei muito de como a personagem é construída e pela direção da história dramática dela. É um dos meus filmes brasileiros preferidos. Já havia lido em outros espaços e em depoimentos do próprio Heitor Dhalia que "À Deriva" se baseia em muitas passagens que presenciou no seu passado, especialmente a separação de seus pais. Gostaria de ver como ficou o resultado, inclusive em relação das interpretações do elenco - só espero que seja lançado nas salas do meu município.

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  2. É um dos filmes que eu mais aguardo para esse ano. Deve ser bom demais!

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