quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Ou Hamuretsu



Depois de investigar as expectativas que rondam o ser humano em Expectantes, a Companhia de Atores Invisíveis volta aos palcos enfocando a questão da escolha em Ou Hamuretsu. O espetáculo é resultante de cerca de dois anos de pesquisa teatral, num trabalho que envolveu treinamento em artes marciais, acrobacias áreas, modalidades de teatro japonês, filosofia oriental e, sobretudo, uma criação dramatúrgica bastante original a partir de Hamlet. A trama se desenvolve nos bastidores de uma companhia teatral que ensaia uma versão japonesa do clássico de Shakespeare. Telmah é a atriz principal do grupo e fica desnorteada quando o diretor Hamuretsu, seu mentor, desaparece sem explicações e William, ator canastrão em quem ela não confia, assume a direção e traz consigo novos atores para a trupe. Conforme crescem suas suspeitas, Telmah percebe que suas escolhas a deixam cada vez mais próxima de Hamlet.

Ao entrar no teatro, o espectador passa pelos atores e senta-se praticamente dentro de cena. Assim como ocorria em Expectantes, espectadores e atores são encerrados dentro do mesmo ambiente. Somos avisados de que podemos escolher desligar ou não nossos celulares. Torçamos para que nenhum engraçadinho “escolha” deixá-lo ligado. Mas é claro que os atores invisíveis sabem que toda e qualquer escolha é um risco. A certa altura, a plateia receberá sinistras máscaras douradas para ajudar a representar os fantasmas que atormentam a protagonista. Poderá usá-las. Ou não. Mais uma escolha.

Existe um motivo para que Shakespeare seja tão popular quase 400 anos depois de sua morte. O autor olhou para dentro da alma humana como poucos e trouxe à tona um manancial de sentimentos que preferiríamos ignorar: ciúme, inveja, cobiça, dúvida, covardia. E o mundo pode ter mudado muito, mas a obscuridade de tais sentimentos nem tanto. Por isso, é totalmente viável que Hamlet seja uma atriz angustiada, Claudius um diretor canastrão, Laertes uma moça orgulhosa, os coveiros um jovem casal gay e a doce Ofélia um rapazinho com ares e gestual de gueixa.



Katia Jórgensen interpreta Telmah/Hamlet, numa performance repleta de som e fúria (tá bom, eu sei que isso é de outra peça, mas tudo bem). Sua fé cênica é impressionante, desde o momento em que entra em cena de modo inusitado e com uma maquiagem que lembra pintura de guerra. Para quem está acostumado a ver o famoso monólogo do “ser ou não ser” dito cheio pose, é uma delícia ver como a atriz o faz de modo tão contemporâneo e nem por isso menos intenso. Pode-se notar também o quanto todo o elenco se preparou em termos físicos, já que a encenação usa elementos de artes marciais e circo, dentre outras influências.

Alguns personagens são usados de forma icônica, como Guildenstern e Rosencrantz, que são feitos por duas atrizes – Rose e Gilda – que se vestem e agem sempre de forma idêntica, nunca deixando claro quem é quem. Mas alguém consegue diferenciar um do outro no Hamlet original? Eles sempre foram um bloco único, característica que a concepção de Ou Hamuretsu apenas realça. Já o fantasma é difuso, mais uma ausência do que uma presença. Está no vídeo, na participação especial do ator/diretor japonês Yoshi Oida (mentor do grupo), está em atores com máscaras demoníacas e até mesmo na plateia, caso os espect-atores resolvam usar as já mencionadas máscaras. Está em toda parte, mas sobretudo na mente de Telmah.

É recomendável que o espectador conheça o texto de Hamlet para melhor apreciar as referências e citações, já que Ou Hamuretsu não é uma montagem da peça à moda japonesa. Embora sejam usadas diversas partes do texto original, muitas vezes assistimos a curiosas inversões, como ocorre no trecho em que Laura/Laertes luta com Telmah enquanto recita os conselhos que na verdade seu personagem ouve do pai na peça original (aquela fala sobre como deve um homem se portar em terra estrangeira). Outra interessante reinterpretação das palavras do bardo ocorre com a cena em que Hamlet ensina a uma trupe de atores como representar com naturalidade e o texto serve de mote para um enfrentamento entre Telmah e William. Ou deveríamos dizer Hamlet e Claudius? Sem contar que o fato do diretor se chamar William já remete ao próprio Shakespeare, e William é interpretado por Marcio Moreira, o próprio diretor do espetáculo. E por aí vai, numa série de desdobramentos sem fim, que envolvem citações à obra, a diretores teatrais, aos jogos de improvisação e até mesmo à própria companhia.



E como tudo é uma questão de escolha, os caros leitores podem escolher ir ao teatro ver mais este belo trabalho da Cia de Atores Invisíveis. Vale a pena tomar essa decisão.

Ou Hamuretsu. Dramaturgia: Cia. de Atores Invisíveis. Direção: Marcio Moreira. Com Katia Jórgensen, Marcio Moreira, Paula Larica, Cristiano Morais, Rangel Andrade, Nathália Lemos, Rubens Moreira, Ana Cecília Reis, Amanda Olivier, Pedro Naine, Carlos Veranai, Marcela Rodrigues. 90 minutos. Espaço da Cia. Armazém de Teatro (Fundição Progresso), sábados e domingos, às 18h30. Ingressos a R$20 ou R$80 (o público escolhe). Até 27 de setembro.

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