sexta-feira, 12 de março de 2010

Ilha do Medo


Quando um cineasta da importância de Martin Scorsese realiza um filme como Ilha do Medo logo depois de finalmente receber o seu tão aguardado Oscar, a gente tem que se curvar ao cara. Eu explico: como qualquer cinéfilo bem sabe, Scorsese construiu sua fama e prestígio a partir de verdadeiros épicos sobre o crime organizado americano – caso do longa que lhe deu o Oscar, Os Infiltrados. Ou então produziu com esmero filmes históricos e grandiosos, como A Última Tentação de Cristo ou o recente O Aviador. E eis que agora, aos 68 anos de idade e com mais de 40 filmes no currículo, o cineasta mais uma vez abandona sua zona de conforto e se permite mergulhar nessa trama que transita entre o film noir e o terror psicológico. É claro que ele sabia que os entendidos iriam rotular seu Ilha do Medo como um “filme menor”, a exemplo do que ocorreu com Cabo do Medo há quase duas décadas. Sim, ele sabia. E fez o filme assim mesmo. Não é pra tirar o chapéu?

O fidelíssimo roteiro de Laeta Kalogridis é baseado no livro Paciente 67, de Dennis Lehane. Para quem não está ligando o nome à pessoa, Lehane é o autor de Sobre Meninos e Lobos e simplesmente o melhor escritor de romances policiais da atualidade. Também é dele Gone Baby Gone, que ganhou as telas e conseguiu transformar Ben Affleck em um diretor de primeira. E para quem conhece o universo noir de Lehane, a primeira surpresa já vem daí, pois Ilha do Medo inicia como uma trama policial semelhante às outras e depois vai lentamente se transformando em algo mais. Mais doentio, mais difuso, mais perturbador. É importante ressaltar que a história é ambientada nos Estados Unidos pós-guerra, com todas as teorias de conspiração, paranóias e terrores que a época acarreta.

Leonardo DiCaprio e Mark Ruffalo são os policiais federais Teddy Daniels e Chuck Aule, que são chamados para investigar o desaparecimento de uma interna de um presídio psiquiátrico localizado em uma ilha de difícil acesso. Conforme somos informados logo na chegada, só existe uma entrada e saída do local. Rachel Solando teria desaparecido, descalça, de uma cela trancada sem deixar vestígios. Para onde poderia ter ido, em uma ilha cercada de mar bravio e penhascos intransponíveis? Ao mesmo tempo em que um furacão deixa o local ainda mais isolado e cresce a sensação de claustrofobia, Teddy começa a desconfiar que os médicos realizam experiências ilegais com os presos e teme que os responsáveis pela instituição tomem medidas para silenciá-lo.

Com um certo ar de filme B e múltiplas referências ao cinema de Alfred Hitchcock, Martin Scorsese nos leva a um universo pontuado por terrores, culpa e arrependimentos. Teddy tem motivos ocultos para estar ali e isso faz com que não confie em ninguém, nem mesmo em seu parceiro. Paranóia? Cautela? Tudo é possível. Dizem que antes do início das filmagens, Scorsese pediu a toda sua equipe que assistisse a Um Corpo Que Cai (Vertigo, no original). Faz sentido. Vertigem, claustrofobia, pânico. Sentimentos que escorrem de Teddy e vazam para o espectador, que “entra” na Ilha Shutter e a enxerga pelo seu olhar neurotizado.


O excelente elenco também ajuda, com um Leonardo DiCaprio totalmente maduro e seguro de si. Em sua quarta colaboração com Scorsese, Leo está ainda mais à vontade do que em Os Infiltrados e leva o filme nas costas. Em ótimo contraponto ao seu angustiado personagem, um Mark Ruffalo tranquilo e um Ben Kingsley dúbio dão solidez à trama. O filme ainda se dá ao luxo de ter atores como Max Von Sydow, Patricia Clarkson e Jackie Earle Haley em pequenas e marcantes participações.

Outro ponto que é preciso destacar é a perfeição técnica. O visual é soberbo: ângulos inusitados, fotografia assustadora, e uma trilha sonora dramática e estridente que remete mais uma vez a Hitchcock e ao próprio Scorsese, já que se pode notar uma semelhança desta trilha com a de Cabo do Medo. Tudo isso finalizado com uma edição eficiente, capaz de levar o cinéfilo para um estranho passeio nos recantos mais sombrios do ser humano. Outra discussão interessante, e que estava em alta na época em que se passa o filme, diz respeito ao conflito entre a corrente da psiquiatria que defendia intervenções cirúrgicas (ou seja, a medieval lobotomia) e a mais progressista, que se apoiava na farmacologia.

Por fim, vale lembrar que sacar ou não a virada final (que algumas pessoas estão comparando às pegadinhas picaretas do Shayamalan) não é tão importante assim. E mesmo que o espectador perceba o que está de fato acontecendo, com certeza não entenderá o mistério em sua totalidade. Só posso dizer que ter lido o livro e, portanto conhecer toda a trama de antemão, não impediu em nada que eu apreciasse o filme. E, de todo modo, o roteiro é bem alinhavado em sua progressão. As atitudes de alguns personagens que causam estranheza – como, por exemplo, o ar de deboche do guarda que os recepciona – fazem bastante sentido mais adiante.

Ilha do Medo não é um típico filme de Scorsese. Mas isso, definitivamente, não o torna menor. A partir de hoje nos cinemas.

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