segunda-feira, 15 de março de 2010

Ensaio Sobre Carolina


Um dos grandes baratos de assistir a uma peça ou a um filme do qual pouco ou nada se sabe é a possibilidade de ser surpreendido. E eu confesso: o motivo inicial de ter ido ao espetáculo Ensaio Sobre Carolina foi o fato de ter recebido um convite, já que ainda não conhecia o excelente trabalho da companhia teatral Os Crespos. A informação básica de que dispunha sobre a peça foi que tinha como ponto de partida o livro Quarto de Despejo, Diário de Uma Favelada, escrito no início dos anos 60 pela catadora de papel Carolina Maria de Jesus. Na época, a tiragem de 14 mil exemplares esgotou rapidamente e o relato foi traduzido para 13 idiomas. Carolina estudou somente até o segundo ano do ensino fundamental e era moradora da favela do Canindé. Logo me preparei para assistir a um espetáculo engajado e sisudo. Engano meu. Engajado, com certeza; sisudo, de modo algum.

O grupo formado pelas atrizes Maria Gal, Lucélia Sérgio, Mawusi Tulani, Joyce Barbosa e pelo ator Sidney Santiago (dos filmes Os Doze Trabalhos e O Signo da Cidade) é oriundo da ECA (Escola de Arte Dramática da USP) e convidou para a direção deste espetáculo seu ex-professor José Fernando de Azevedo. A montagem tira partido de muito bom humor e doses cavalares de ironia para dramatizar, de forma episódica, trechos do diário de Carolina. A concepção cênica é simples e extremamente eficiente, formada por cadeiras dispostas por todo o espaço, sendo que este é delimitado por um varal com roupas dependuradas. A peça não separa os atores do público e literalmente acontece em todos os lugares, ao alternar os focos da ação e com os atores se deslocando entre as pessoas.

A abordagem proposta dribla com inteligência o tom panfletário e o sentimentalismo barato e torna ainda mais cortante os preconceitos sofridos não apenas pela personagem, mas pelo brasileiro em geral. O que Ensaio Sobre Carolina evidencia é que as agruras vividas pela protagonista, na verdade, são comuns a todo cidadão nascido negro ou pobre ou de algum modo desprovido de status social. O elenco, formado apenas por atores negros, se reveza no papel de Carolina e de seus diversos algozes, o que reforça essa idéia e ainda tem a vantagem extra de deixar a encenação bem dinâmica e ágil. Vale destacar que os atores vão fundo nesta linha de deboche e autoironia. Um momento curioso é quando eles ilustram os preconceitos sociais reproduzindo algumas piadas racistas e se pode sentir um certo ar de constrangimento pairando pela platéia.

O grupo utiliza o canto, a dança e a expressão corporal como ferramentas de representação, além de um telão em que imagens são por vezes projetadas em tempo real. E que domínio vocal e corporal tem o elenco! Com o auxílio do músico Giovanni Pereira, eles não somente interpretam como cantam o cotidiano de Carolina em músicas que tiram sarro dos grandes musicais da Broadway, com a diferença de que as letras, em geral, relatam privações terríveis. Perucas platinadas, vestidos de debutante e até a Globeleza servem de mote para a ferina crítica social, sempre usando para isso os próprios símbolos de subserviência que escravizam e discriminam. Genial mesmo. Numa cena teatral quase sempre dominada por comédias descerebradas ou musicais exuberantes, é preciso conhecer o vigor e a originalidade do trabalho da companhia Os Crespos. E considerando o valor módico do ingresso (10 reais), não tem desculpa para deixar de ir.

Serviço:
Ensaio Sobre Carolina, sábados às 20h e domingos às 19h, no Espaço Teatro de Anônimo da Fundição Progresso (Rua dos Arcos, 24 – Lapa – Telefones: 2240-2478 / 2524-0930). Ingressos a 10,00. Duração: 100 minutos. Até 25 de abril.

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