quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Trem Noturno para Lisboa


Ao contrário do que se pensa, adaptar uma obra já existente para a linguagem cinematográfica geralmente é muito mais complicado e desafiador do que escrever um roteiro original. Sem contar que automaticamente surgem as comparações, muitas vezes injustas e sem levar em conta as necessidades próprias da sétima arte. Trem Noturno em Lisboa é adaptado do romance do suíço Pascal Mercier que já vendeu dois milhões e meio de exemplares e foi traduzido para mais de trinta idiomas desde que foi publicado na Alemanha em 2004.

Na versão para a telona, Jeremy Irons dá vida ao professor de línguas antigas Raimund Gregorius, um homem metódico e respeitado por seu intelecto, mas, por outro lado, considerado previsível e entediante. Em uma manhã como outra qualquer, sua vida é transformada pelo encontro com uma jovem portuguesa que está prestes a saltar da ponte que ele atravessa diariamente para chegar ao trabalho. Ele consegue impedir o suicídio, mas a moça desaparece e deixa para trás o sobretudo. No bolso, um livro escrito por um médico português e, dentro dele, uma passagem de trem para Lisboa. As palavras contidas no livro tocam profundamente Gregorius e, movido por um impulso incontrolável, ele utiliza a passagem e parte em busca de mais informações sobre Amadeu de Prado, o autor que mudou sua vida.

Embora o protagonista seja impulsionado a realizar uma viagem, o verdadeiro foco do livro é um mergulho muito pessoal em questões íntimas como a sua suposta incomunicabilidade, as escolhas feitas ao longo da vida e a implacabilidade do tempo. O filme dirigido pelo dinamarquês Bille August (o mesmo de A Casa dos Espíritos) é um belo exemplo de adaptação feliz, já que ressalta ou cria situações que tornam a trama mais adequada para o cinema e, ao mesmo tempo, consegue manter intacto o espírito contemplativo e filosófico do livro. Claro que muita coisa é deixada de fora nessa transposição, mas August e os roteiristas Greg Latter e Ulrich Herrmann realizam a tarefa com muito bom senso.


Quantas vezes ouvimos alguém dizer que determinado livro (ou filme) mudou sua vida? Evidente que quando isso ocorre a mudança tem mais a ver com o momento pelo qual passa o indivíduo do que com a obra em si, mas, de todo modo, não se pode menosprezar o poder transformador de ler ou ouvir as palavras certas no momento oportuno. O protagonista apenas vai mais longe, ao realizar o mergulho dentro de si mesmo através de uma atitude externa. Porém abandonar o trabalho e empreender uma viagem intempestiva e sem sentido aparente parece também uma forma de provar ao mundo que ele não é tão previsível assim.

Esse é um dos ângulos do filme. O outro é a história que surge, pouco a pouco, quase brotando das ruas de Lisboa. Amadeu de Prado, o dedicado médico e profundo questionador que tanto encantou Gregorius também foi parte atuante na resistência à ditadura imposta por Salazar. Um homem admirável, mas que carregava culpas e contradições. Uma figura capaz de, tanto tempo depois, ainda inspirar e promover uma revolução pessoal em um professor de meia-idade.


O elenco internacional tem como grande destaque um inspirado Jeremy Irons no papel principal, mas também conta com outras atuações interessantes, como a do inglês Jack Huston (da minissérie Boardwalk Empire) como Amadeu de Prado e ainda Christopher Lee, Charlotte Rampling, Mélanie Laurent, Martina Gedeck, August Diehl, Bruno Ganz e Lena Olin.

É bem verdade que o fato do filme ser todo falado em inglês quebra um pouco do seu encanto. Nem tanto por grande parte da trama ser ambientada em Lisboa, mas principalmente pelo papel fundamental que as palavras em língua portuguesa desempenham na trama. É estranho quando o protagonista abre o livro – que sabemos ser escrito em português – e cita diretamente uma passagem, mas falando em inglês com personagens que são portugueses. OK. É uma produção internacional, com atores das mais diversas nacionalidades, tudo isso é compreensível, mas não deixa de ser um pouco frustrante.

Descompasso que não apaga o brilho de uma produção de delicadeza e beleza raras, com uma fotografia que valoriza o charme clássico de Lisboa, com seus bondes e ladeiras estreitas. Bille August, que há muitos anos não dirigia um filme de peso, realiza este filme sensível e que dribla sem demais dificuldades o desafio de condensar na projeção quase quinhentas páginas de um livro denso e profundo. 

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