sábado, 9 de agosto de 2008

Revendo Pecados Íntimos


A classe média sempre foi excelente tema para análise. Nem rica nem pobre, tentando alcançar o nível dos privilegiados e, ao mesmo tempo, fazendo de tudo para não cair na vala comum dos desprovidos. Enfim, o tipo de gente que vive em eterno estado de tensão, já que basta um passo em falso para derrubá-los do frágil pedestal sobre o qual se equilibram. E na sociedade americana, tão fortemente norteada pela obsessão em dividir todos em winners (vencedores) ou losers (perdedores), essa luta para se afirmar ganha dimensões de tragédia. É preciso se agarrar a conceitos e símbolos - de preferência conservadores - que afirmem sua identidade. E ai de quem tentar bagunçar o equilíbrio desse castelo de cartas.

Logo na seqüência de abertura de Pecados Íntimos, somos apresentados a Sarah Pierce. Uma jovem sagaz e inteligente, com mestrado em literatura, que passa seus dias em silenciosa angústia, desempenhando o papel de mãe amorosa e esposa dedicada. Todos os dias Sarah leva o filho ao parquinho e fica ali, à margem do mundo de perfeição e eficiência das outras mães. Richard, marido de Sarah, é um executivo de marketing bem-sucedido cujo ponto alto do dia é interagir virtualmente com uma garota num site pornográfico. Brad Adamson, advogado que não consegue passar no exame da Ordem, também costuma fazer as vezes de mãe do pequeno Aaron enquanto sua eficientíssima esposa sustenta a casa. Frustrados com a própria vida e desesperados por algo que os tire da monotonia, Sarah e Brad logo iniciam um caso. Já Larry, ex-policial afastado após atirar acidentalmente em um garoto, continua obcecado em manter a cidade em ordem e inicia uma verdadeira cruzada quando descobre que Ronnie, solteirão com distúrbios sexuais preso por se exibir para menininhas, foi libertado e está de volta à vizinhança. Mas a mãe de Ronnie acredita que tudo se ajeitará se conseguir arrumar para o filho uma namorada da sua idade.

O filme trabalha de acordo com a máxima “olhando de perto, ninguém é normal”. Volta e meia o cinema produz uma ácida análise da suposta perfeição e paz das cidadezinhas ou subúrbios americanos. Um exemplo é o premiado Beleza Americana, com o qual, aliás, Pecados Íntimos guarda inúmeras semelhanças. Por trás de uma vida idílica, casas bem-estruturadas e ausência de problemas financeiros, esconde-se uma rotina massacrante. As famílias perfeitas, dignas de comercial de margarina, servem de fachada para uma existência anestésica, só restando a um espírito livre como Sarah a traição. Não por acaso, uma das seqüências mais interessantes do filme é justamente a que a mostra numa roda de leituras dando sua opinião sobre as razões que teriam levado Madame Bovary a cometer adultério. Ao que uma agressiva vizinha só consegue argumentar que a personagem seria uma “vagabunda”, insulto que fere diretamente Sarah. Interessante também o modo como as mulheres mais velhas parecem mais receptivas à experimentação do que a mais jovem.

Já o segmento que enfoca a dificuldade de readaptação do personagem pedófilo lembra a abordagem do ótimo O Lenhador, ao desmistificar um tabu como o da disfunção sexual. Ronnie tem consciência de seu distúrbio e gostaria de levar uma vida normal, embora tenha dúvidas quanto à sua capacidade em superar tal problema. É óbvio que ninguém gostaria de ter alguém como ele perto de seus filhos, mas daí a promover um clima de Ku-Klux-Klan vai uma grande diferença. Donde se conclui que as “criancinhas” do título original não têm nada a ver com pedofilia e sim com a dificuldade dos chamados adultos em se comportarem como tal.

O roteiro inteligente e bem amarrado encontra ótima contrapartida em seu elenco. Jackie Earle Haley surpreende com sua interpretação minimalista de um personagem extremamente complexo. E Kate Winslet, mais uma vez, prova que é uma das grandes atrizes da atualidade. Sua interpretação sóbria, porém intensa, cativa o espectador desde a primeira tomada, quando ela observa com expressão irônica o comentário orgulhoso da mulher que marca dia e horário para ter relações com o marido. Por este filme, Kate obteve sua quinta indicação ao Oscar - a terceira como atriz principal. Creio que já está mais do que na hora da atriz ser premiada. Kate tem um histórico profissional irretocável e uma filmografia pra lá de diversificada que vai desde filmes alternativos como Almas Gêmeas até grandes produções como Em Busca da Terra do Nunca. Nem mesmo o malfadado Titanic abalou seu prestígio, já que até os maiores detratores do filme de James Cameron se apressam em reconhecer a apaixonada atuação de Kate como a melhor coisa da produção.

Pecados Íntimos, que teve o modesto orçamento de US$ 14 milhões, recebeu três indicações ao Oscar: atriz (Kate Winslet), ator coadjuvante (Jackie Earle Haley) e roteiro adaptado. Infelizmente, não venceu em nenhuma das três categorias. Mas, premiações à parte, trata-se de um grande filme. O diretor Todd Field, que tem como único filme relevante de seu currículo o mediano Entre Quatro Paredes, conseguiu para si um excelente cartão de visitas com este longa.

Um comentário:

  1. Filmaço. Bem filmado e fotografado. Com atuações excelentes e um roteiro, como você bem disse, inteligente.

    Abraço!!

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