quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Cisne Negro


O inimigo mais perigoso que uma pessoa pode ter é a sua própria mente. Capaz de desestabilizar, pregar peças, enganar os sentidos, adulterar a realidade. Nenhum outro inimigo é tão implacável, capaz de perseguir sem descanso e fazer tremer o mais valente guerreiro. Vejam o Macbeth de Shakespeare como exemplo, imbatível em sua maldade e valentia até começar a se deparar com os fantasmas de sua culpa. Lugar nenhum é seguro para uma mente doente. É com esse desafio, o de manter a sanidade em meio a uma espiral descendente, que se depara Nina Sayers, personagem de Natalie Portman no impressionante Cisne Negro.

Nina é bailarina em uma prestigiada companhia nova-iorquina. Obcecada com a perfeição, toda sua vida é dedicada à dança, atitude incentivada por sua mãe Erica, ex-bailarina que busca compensar sua carreira frustrada através do sucesso da filha. Quando o diretor Thomas Leroy decide substituir a estrela da companhia para a nova temporada, Nina tem sua grande chance. O problema é que o espetáculo escolhido, O Lago dos Cisnes, exige uma bailarina que possa personificar tanto a suavidade e delicadeza do Cisne Branco quanto a luxúria e malícia do Cisne Negro. Nina, a despeito de sua técnica apurada, tem dificuldades em fazer emergir o Cisne Negro, ao mesmo tempo em que a novata Lily encanta Leroy com sua graça natural e sensualidade. A concorrência de Lily e a insegurança da própria Nina começam a exercer uma pressão insuportável sobre ela, fazendo com que a doce menina entre em contato com partes muito obscuras de sua personalidade.

Todo o filme é conduzido com maestria por Natalie Portman, que a princípio demonstra ser uma pessoa tão dócil que parece irreal. Nina não tem vontade própria, assim como não tem privacidade, todos os seus passos são vigiados muito de perto pela mãe invasiva. A ótima ambientação da casa, com seu longo corredor cheio de quadros e suas portas sem trancas, ajuda a dar o tom certo. Nina não poderia viver em suspensão para sempre, e sua ilusão de vida de princesa é quebrada quando ela é posta à prova, primeiro conseguindo o papel dos seus sonhos (literalmente) e segundo sentindo-se ameaçada de perdê-lo. É quando emerge o seu lado sombrio e, por trás da bela e delicada bailarina, vislumbramos uma garota traumatizada, competitiva e com baixíssima auto-estima.


A direção de arte, fotografia e figurino são atrações à parte, criando ilusões visuais deslumbrantes, com predominância da oposição de cores e desdobramento de imagens através de espelhos. Há toda uma questão de duplicidade pontuando o filme, com destaque para o contraste feito entre a perfeição estética tão característica do ballet clássico com o lado mais brutal e menos glamouroso, ou seja, os machucados, unhas quebradas, contusões.

Natalie Portman se entrega totalmente à personagem, com uma intensidade e fervor admiráveis. O contraste entre a doçura inicial de Nina e seu destroçamento mental só poderiam ser retratados por uma grande atriz mesmo. Outro ponto importante é a questão física, já que o filme é pontuado de cenas de dança e Natalie realmente convence como uma bailarina profissional. Claro que a atriz não partiu do zero, já havia estudado ballet quando criança, mas, ainda assim, é qualquer coisa de incrível como ela incorpora a precisão e elegância de gestos característicos das bailarinas profissionais – e isso certamente é ainda mais complexo do que ser coreografada para dançar em cena.

Darren Aronofsky, conhecido pela ousadia estética e complexidade psicológica de seus filmes, alcança a maturidade total neste estonteante passeio pelos mais sombrios recantos da psiquê humana. No final das contas, não é uma história especificamente sobre o ballet e sim sobre a que extremos uma pessoa pode chegar em busca de perfeição – ou seria compensação? Aronofsky, espertamente, deixa bem difuso todos os limites de seu filme. Não apenas os limites entre realidade e delírio da protagonista, mas também entre o real e o metafórico. O paralelo entre a degradação de Nina e a transformação do Cisne Branco em Negro ganham representações concretas na tela, fazendo com que o longa remeta ao clássico O Retrato de Dorian Gray.


Cisne Negro é exagerado, intenso, cheio de sensações cruéis e cores dramáticas. Filme de ares operísticos e devidamente protagonizado por uma grande diva. Indigesto em vários trechos, vigoroso do começo ao fim, indefinido em seus limites, enfim, uma experiência eletrizante desde a lírica cena de abertura até o desfecho de tirar o fôlego. Não recomendável aos corações fracos. Para os que ousarem, a partir de amanhã nos cinemas.

6 comentários:

  1. Erika, não gostei de "Cisne Negro". Winona Ryder aparece pouco. =P

    Brincadeiras à parte, gosto muito ddo jogo psicológico usado na narrativa de "Cisne Negro". Um ponto que você apontou e que acho um dos mais interessantes dentro do filme é o contraste entre a beleza das apresentações e os infernos dos bastidores - vida de bailarina de fato não é feito apenas de maravilhas.

    Ainda assim, acho que não é sempre que o longa-metragem equilibra bem as suas pretensões. Não há nele, ao menos em seu primeiro e segundo ato, a maluquice esperada; essa brincadeira com reflexos, sócias, são meio óbvias. Assim como achei o ato final imperfeito na revisão. Não gostei da decisão de apressarem a apresentação de Nina, o corte de montagem me soou pouco sutil. Ainda assim, é o lançamento mais curioso do mês.

    ResponderExcluir
  2. Não sabia que você era fã da Winona, Alex. De qualquer modo, achei esse papel um bom retorno para ela.

    ResponderExcluir
  3. Erika, sou sim. Aliás, ela é uma das minhas atrizes favoritas. Quando mais novo suas interpretações em filmes como "Adoráveis Mulheres", "Edward", "Colcha de Retalhos" e "As Bruxas de Salem" me impressionavam. Infelizmente, ela se perdeu na última década da sua carreira. Embora ninguém mencione ela ao escrever sobre "Cisne Negro", acho que o filme levantou um pouco da sua moral perdida em projetos equivocados como "Outuno em Nova York".

    ResponderExcluir
  4. Erika, ainda estou me refazendo de Cisne Negro. Já agendei outra "visita" a ele. A gente fica atordoada com tanta beleza, intensidade, lembra Repulsa ao Sexo... Percebo que gosto de um filme quando ele não me sai da cabeça. Sabe quando vem o fim e você quer continuar naquela sala mágica, no escuro? Agora, achei o coreógrafo caricato, tirano, exigente, "malvado", o que você me diz? Não gostei da parte de "terror" barato, dos sustos provocados por imagens repentinas de rostos sangrando. Quando Nina ensaia e a luz se apaga, ela vê um vulto e se depara com uma figura mascarada de Cisne Negro, na transa com a Lily. Depois, a figura se "transforma" no coreógrafo. Achei besta. De resto, amei o filme. Legal você ter mencionado o contraste entre a beleza/perfeição do balé e o que acontece por trás, a dor, os ferimentos, os excessos físicos/mentais - ah! E a rivalidade!
    Beijinho.

    ResponderExcluir
  5. Oi Emily,

    As cenas que você mencionou, para mim, são representações externas da psiquê degradada da Nina. Daí os exageros, os sustos, os sangramentos. Acho que é tudo muito simbólico, assim como as asas negras despontando. Por isso acho válido, não considero terror barato.

    O diretor é um sádico, que não mede esforços para alcançar a perfeição. Li em algum lugar que o gozo dele não é sexual e sim estético. Concordo muito. E achei o Vincent Cassel muito adequado.

    Enfim, acho que todo o filme tem uma viagem extrema, exagerada sim, mas totalmente intencional.

    Beijos!!!

    ResponderExcluir
  6. É, imaginei que fosse a psiquê perturabada. Além do quê, é o primeiro filme do diretor que vejo. Sabe o que acontece, Erika? A gente já vê tantas cenas assim, em filme de terror, que dá nisso, acaba sem paciência, não leva a sério... Mas o filme é lindo demais, demais. Visceral, né?Ontem, fui ver de novo. O público tem saído com várias interrogações: "Terror? Loucura? Nina seria esquizofrênica? A transa com Lily aconteceu? Não aconteceu? Sonho? Delírio?" Não encontram "definições".
    O legal é isso, provocar debate.
    Gozo estético? Uaauuu...!
    Eu gosto do Vincent. As atrizes coadjuvantes não se apagam, diante de Natalie. Tristeza ver Barbara deformada visualmente. Não precisava fazer isso.

    Besos procê.

    ResponderExcluir