quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Dúvida


Existe um motivo forte para que Capitu seja a personagem mais famosa e discutida de Machado de Assis: a dúvida que paira sobre seu caráter. Dependendo do ponto de vista, ela pode ser uma vítima atormentada por um homem ciumento ou uma mulher fútil e sem coração. Machado deixou que coubesse única e exclusivamente ao leitor de Dom Casmurro tal decisão. O filme Dúvida apóia-se nessa mesma estrutura, deixando ao espectador a conclusão final a respeito do padre Flynn. Seria ele um homem bom condenado por uma víbora que não entendia sua pureza ou um pedófilo cínico e dissimulado?

A história, roteirizada e dirigida pelo próprio autor da peça teatral que a originou, é ambientada nos anos 60 e se passa praticamente inteira nas dependências de uma escola mantida pela igreja católica. Irmã Aloysius, a diretora, é uma freira rígida, inflexível e cheia de códigos morais arcaicos. Ela não gosta nada de seu superior, o padre Flynn, um sacerdote de discurso progressista, modos afetuosos, unhas bem-cuidadas e que adora tomar seu chá com muitos cubos de açúcar. Quando a jovem irmã James, influenciada pelas desconfianças implantadas pela própria Aloysius, revela suas suspeitas de que Flynn pode ter ultrapassado os limites com um dos alunos, a irmã Aloysius está pronta - ou melhor, ansiosa – para acreditar na culpa do padre e inicia uma cruzada pessoal para expulsá-lo da paróquia.

O fascinante na trama é o modo como Flynn parece a nossos olhos alternadamente inocente e culpado. Existem elementos suspeitos levantados pela investigação de Aloysius sim, mas nada realmente conclusivo. Assim como a argumentação do padre parece inocente e indignada. Mas ele é um homem articulado e inteligente, e nos perguntamos o quanto ele é sincero em suas palavras. O espectador certamente sairá do cinema ainda em dúvida e terá que reavaliar suas próprias crenças acerca de questões como verdade, autoridade e religião antes de chegar a uma conclusão sobre o personagem. Sem contar a inevitável influência externa, por conta dos recorrentes casos de pedofilia envolvendo o clero que são mostrados no noticiário. E qualquer que seja a conclusão, dificilmente esta será plena de certeza. Resta a dúvida, sempre.

E a dúvida não atormenta apenas o espectador, mas também os personagens. A começar pela irmã James, que aparenta ir perdendo a inocência e a paz de espírito a partir do momento em que se vê como o pivô da guerra entre seus superiores. Mesmo a personagem de Meryl Streep, fanática em sua caça às bruxas, chega ao ponto de confrontar-se com o desmoronamento de sua verdade absoluta. É como se a enfática alegação de inocência de Flynn minasse a certeza de sua culpa na irmã Aloysius ao mesmo tempo em que a aparente certeza inabalável desta despertasse nele questionamentos sobre a própria inocência.

A irmã Aloysius é uma megera, sem dúvida. Também é bem verdade que ela começou a perseguir o padre Flynn motivada por sua própria intolerância e preconceito. Mas e se ela estiver certa, ainda que pelos motivos errados? E se Flynn, mesmo inocentes em atos, descobre através deste confronto que suas intenções não eram tão puras assim? O quanto teria ele de responsabilidade sobre tais instintos? E o menino que desencadeou todo o conflito, qual seu papel nessa história? E o que dizer da mãe do garoto e suas prioridades distorcidas pelo desespero? São questões como essas, que o roteiro faz questão absoluta de deixar em aberto, que tornam o filme tão inteligente e perturbador.


Há que se ressaltar o excelente trabalho de todo o elenco – um filme que tem quatro de seus atores indicados ao Oscar não é pouca coisa nesse quesito –, com especial destaque para a sensacional atuação de Meryl Streep como a irmã Aloysius. Seria relativamente fácil caracterizar essa personagem como a grande vilã, mas não é o que acontece. Meryl recheia a maldade de humanidade e faz de Aloysius uma pessoa amarga e intransigente, mas que acredita na retidão do que está fazendo e que ama sinceramente sua congregação e seus alunos.

Mais do que tudo, Dúvida coloca em xeque a questão do preconceito e da intolerância de modo tão equilibrado que a cada cena a balança parece pender para um lado. Felizmente, não se trata de um julgamento e o espectador está isento do difícil encargo de emitir um veredicto.

O filme obteve cinco indicações ao Oscar: atriz (Meryl Streep), ator coadjuvante (Philip Seymour Hoffman), atriz coadjuvante (Amy Adams e Viola Davis) e roteiro adaptado. Estréia aqui no Brasil semana que vem, dia 6 de fevereiro.

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