sexta-feira, 20 de março de 2009

Romance


Está chegando às locadoras um dos melhores filmes que passaram por nossos cinemas em 2008: Romance. O filme acompanha a história de amor de Pedro e Ana, dois atores que se conhecem e se apaixonam perdidamente ao interpretarem a tragédia de Tristão e Isolda no teatro. Mas Ana é descoberta por um executivo da TV, que a contrata para uma novela. Ela acha que pode conciliar as duas atividades e que seu sucesso trará público para a peça; ele sente-se ofendido pela súbita popularidade da amada e, corroído pelo ciúme, rompe com a parceria afetiva e profissional. Três anos depois, Ana é uma estrela da televisão e Pedro segue fiel à sua devoção pelo palco. Ainda apaixonados, os dois se reencontram quando Pedro aceita dirigi-la em um especial para a TV e apresenta como projeto uma versão sertaneja da peça que marcou o encontro deles.

Não é de hoje que o talentoso Guel Arraes, diretor consagrado primeiramente por sucessos televisivos como Armação Ilimitada e TV Pirata, vem namorando o cinema. Em 2000, Arraes aproveitou o enorme sucesso que sua minissérie O Auto da Compadecida obteve na TV no ano anterior para editá-la e lançá-la nos cinemas como um longa-metragem. O mesmo aconteceu a seguir com Caramuru – A Invenção do Brasil. Em 2003, a peça Lisbela e o Prisioneiro, encenada por ele nos palcos cariocas, também ganhou as telonas do Brasil. Com esse histórico, não é de se admirar que o roteiro de seu primeiro filme pensado diretamente para o cinema apresente um casamento dessas três artes.

O roteiro, escrito por Arraes e Jorge Furtado, mostra o relacionamento dos atores com seu ofício e a tênue linha que divide a boa oportunidade do mercantilismo: as concessões, as dificuldades, o idealismo, enfim, todos os conflitos das pessoas que fazem da sua arte uma profissão de fé. Pedro acredita no trabalho puro, radical, motivado apenas pela paixão. Ana quer fazer desvios de rota em nome de um bem maior. E o filme traz para a tela de cinema os bastidores do teatro e da televisão, colocando em xeque as inúmeras diferenças e particularidades de cada veículo e as dificuldades que os atores têm de transitar entre cada um. Uma coisa que chama bastante a atenção é o contraste entre a intensa carga dramática de Ana nos palcos como Isolda e a superficialidade de sua personagem televisiva – e a ironia dela ficar famosa pela segunda.

Um aspecto muito presente nos trabalhos de Jorge Furtado é um certo didatismo, no bom sentido. Romance é uma aula fundamental sobre teatro, passando para o espectador conceitos importantíssimos de modo quase imperceptível. Um exemplo disso é quando Pedro explica para Ana que Tristão e Isolda morrem de amor para que o público sinta tamanha emoção sem precisar morrer na vida real. Esse diálogo exprime em poucas e simples palavras a idéia de catarse, um dos pilares fundamentais do teatro – e imprime a marca de Furtado no ótimo roteiro.


Também é belíssimo o uso de obras clássicas como pano de fundo: além da lenda de Tristão e Isolda, casal mítico que serviu de inspiração para Romeu e Julieta e está na origem de todas as histórias de amores trágicos escritas desde então, Pedro também se vale de Cyrano de Bergerac quando escreve em seu roteiro tudo que gostaria de dizer a Ana – falas que ela ouvirá da boca de outro ator. Então não se enganem: embora a arte esteja sempre na berlinda, o tema principal do longa é o amor. Seja correspondido, impossível ou trágico, os efeitos da paixão vão além da teoria e se refletem na vida real. Como diz Letícia Sabatella em uma das cenas, cada ator coloca um pouco de si quando interpreta uma cena romântica na ficção. Sua personagem, Ana, é cativante em suas emoções à flor da pele e contradições. E o que o filme mostra (e eu concordo) é que o fato de um ator se sentir mexido quando interpreta uma cena de amor com alguém por quem sente atração não demonstra de falta de profissionalismo e sim humanidade.

O espectador pode estranhar que Romance seja um filme com menos características cômicas do que os trabalhos anteriores de Guel Arraes, embora o humor esteja presente através dos personagens de Vladimir Brichta e Andréa Beltrão. Ela é uma produtora com os dois olhos no lucro e nenhum na sensibilidade artística, que considera o teatro algo velho e ultrapassado; ele, um tipo cafajeste que faz qualquer coisa para conseguir um bom papel. O interessante na relação desses dois personagens é eles se caracterizarem como uma inversão do velho clichê da atriz ambiciosa que dorme com o produtor para subir na vida.

Wagner Moura e Letícia Sabatella estão simplesmente maravilhosos no papéis principais, transmitindo com igual intensidade grande paixão pela arte e um pelo outro. Inesquecível a cena em que Pedro e Ana quebram o barraco no camarim e se separam aos prantos ao som de Nosso Estranho Amor, uma das mais lindas canções já escritas por Caetano Veloso. Aliás, todo o longa é de uma beleza que salta aos olhos. Na trilha inspirada de Caetano, nas imagens que retratam Tristão e Isolda, nos figurinos e concepção das obras “de dentro”, na perfeição plástica das cenas de amor. Enfim, tudo no visual do filme toca os sentidos e cria um clima propício à emoção.

No final das contas, Romance – como o próprio título já insinua – é um filme que atinge o espectador através dos sentimentos. Seja interpretando o próprio romance ou os desdobramentos dele na pele de seus personagens, Pedro e Ana são loucos um pelo outro e transmitem a força desse amor muitas vezes sem precisar de palavras. O casal certamente inspirará no espectador o desejo de se perder numa paixão semelhante, ignorando a advertência que Pedro faz logo no início do longa sobre as trágicas conseqüências de se apaixonar.

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