Ontem conversei com uma amiga sobre Dogville. Ele me dizia que, apesar de ter achado o filme fantástico, não pretende nunca mais revê-lo. Algumas coisas no filme de Lars Von Trier a machucaram. Eu não fiquei tão afetada por esse filme em particular – talvez por sua abordagem ser assumidamente teatral –, mas tal reação me fez refletir sobre como determinadas obras nos afetam para além da sala escura. Ao me perguntar qual seria o filme que mais me feriu emocionalmente, a resposta surgiu em poucos segundos. Sem dúvida, esse filme é Irreversível.
Lembro que em 2002, acabado o Festival do Rio, uma das coisas que mais se falava era no tal filme violentíssimo que mostrava a linda Monica Bellucci sendo estuprada durante dez minutos. Pessoas passavam mal, saíam correndo da sala, diziam que tal filme nunca deveria existido, e por aí vai. Eu não tinha assistido e tive que segurar a curiosidade porque levou mais de um ano para que o filme maldito chegasse aos cinemas.
A exemplo do cultuado Amnésia, Irreversível é narrado em ordem inversa. Os créditos finais são exibidos todos no começo e as letras se apresentam invertidas, como se lidas através de um espelho. As letras reversas impossibilitam o espectador de reconhecer alguma coisa além dos sobrenomes de Monica Bellucci e Vincent Cassel. Mas isso é apenas o primeiro estratagema do franco-argentino Gaspar Noé para nos desorientar.
À primeira vista, trata-se de uma história de vingança: Marcus e Pierre se embrenham no submundo de Paris à caça do homem que violentou e espancou Alex, esposa de Marcus e ex-namorada de Pierre. A história retrocede no tempo, mostrando como os dois chegaram ao agressor, o que realmente aconteceu com Alex e, finalmente, o que antecedeu o fatídico momento.
Os primeiros blocos de Irreversível acompanham o estado de espírito de Marcus e Pierre: a câmera gira sem parar, em todas as direções, num ambiente sufocante e excessivamente vermelho que alguns críticos já correlacionaram ao inferno dantesco. É difícil controlar a vertigem e a sensação de desconforto. E, com isso, Noé joga a platéia dentro da tela. Não como espectador de um filme, mas sim como testemunha da barbárie.
Ao contrário do que se pode imaginar, a busca pelo culpado é o ponto de menor importância no filme. Logo no início da projeção, ouvimos uma frase que é repetida no final e resume o enfoque do longa: “o tempo destrói tudo”. E o filme, afinal de contas, é sobre isso: sobre como uma pequena passagem do tempo pode alterar todo um planejamento de vida. No caso, foram os tais dez minutos que colocaram a roda do destino em movimento. E não só Alex foi afetada: Marcus, Pierre e até mesmo o detestável agressor foram tragados pelos acontecimentos posteriores.
Quando começa a tão falada cena de estupro - ou melhor, sodomia -, o espectador já está tão abalado pelas conseqüências do que aconteceu que se sente aterrorizado antes mesmo de ver qualquer coisa. Tão incômoda quanto a violência do ato é a agressão verbal que a personagem sofre. Trata-se de ir muito além de um homem que quer possuir à força uma mulher bonita (o que já seria ruim o suficiente): o ser que temos diante de nós não cobiça a beleza. Pelo contrário, quer humilhá-la e aniquilá-la. E, nessa hora, a ágil câmera fica parada pela primeira vez. Como uma sádica janela indiscreta. Depois deste filme, a célebre seqüência de Laranja Mecânica em que o protagonista espanca um homem e violenta sua esposa cantando Singing in the Rain parece quase pueril.
Aliás, o que mais machuca em Irreversível é o fato dele retratar uma barbaridade não apenas possível como também aleatória. Jogar na nossa cara a que grau de involução chegamos. Não existem monstros do espaço sideral, nem do além. É um ser humano que comete uma monstruosidade. Um homem misógino e cruel mas, ainda assim, humano. O motivo? Nenhum. Simples casualidade, conforme já nos acostumamos a ler no noticiário todos os dias. E isso é algo que não vai embora das nossas mentes ao fim da projeção.
Quando o filme retrocede à calmaria, ou seja, à vida normal dos personagens antes que a desgraça se abatesse sobre eles, o que é mostrado não traz nenhum alívio. Pelo contrário, é mais uma fonte de angústia porque, ao contrário deles, sabemos que a paz tem horas contadas. Ao mesmo tempo, o filme mantém um certo distanciamento e não se aprofunda muito nos personagens. O que só reforça a desagradável certeza de que os personagens simbolizam qualquer um de nós.
Por estes e tantos outros motivos, Irreversível é o filme que mais me chocou em toda a minha vida. Depois de assisti-lo, lembro que sentei num banco da praça General Osório e chorei. Claro que não culpo o filme em si, já que ele nada mais é do que um reflexo do mundo em que (sobre)vivemos. A violência mostrada, por mais chocante que seja, está longe de ser gratuita e/ou estereotipada. Nenhuma cena surtiria um efeito tão violento se não fosse assustadoramente real. Em Botafogo, próximo ao shopping Rio Sul e ao Canecão, existe uma passagem subterrânea muito parecida com o cenário onde Alex é atacada. Embora seja bem iluminada e guardada por seguranças, eu não consigo evitar um arrepio sempre que passo por ali. Não que eu ache que exista algum perigo real. É apenas um efeito colateral de tudo de ruim que a lembrança do filme provoca em mim.
Irreversível assim.
Quando eu estava na escola, um professor de história sugeriu que assistíssemos a um filme que seria muito importante para nossos estudos visando o vestibular: Saló ou os 120 Dias de Sodoma, de Pier Paolo Pasolini. Baseado livremente em histórias de Marquês de Sade ("Círculo de Manias", "Círculo da Merda" e "Círculo do Sangue"), passa-se na Itália controlada pelos nazistas, onde quatro libertários fascistas sequestram 16 jovens e os aprisionam em uma mansão com guardas. A partir daí, eles passam a ser usados como fonte de prazer, masoquismo e morte.
ResponderExcluirEu tinha 16 anos e saí do cinema enojado e abismado como aquilo poderia ser verdade. Um filme violento e repulsivo.
Nunca esqueci este filme e nunca mais tive coragem de o rever. Mesmo hoje, com quase vinte anos de experiência a mais.
No final das contas, não me ajudou em nada com o vestibular.
Esse filme foi muito bem realizado. Praticamente todas a cenas são chocantes. Tive que ver sozinho pois meus familiares desistiram antes mesmo do estupro. Filme forte mas necessário.
ResponderExcluirOi Erika, ótimo tópico! Um filme que vi no cinema e disse que não veria mais foi "Requiem por um sonho", de Darren Aronofsky. Uma palavra descreve: perturbador. Perturbadora tb foi a Academia (sempre ela!) que deu um oscar para Julia Roberts ao invés de Ellen Burstyn. Nada contra a eterna pretty woman, mas acho q ela nos cinco minutos de briga com o Clive Owen em Closer está muito melhor do que em todo Erin Brocovich.
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