sexta-feira, 11 de abril de 2008

Não Sobre o Amor


Amantes do teatro, comemorai! Está em cartaz no CCBB do Rio um novo espetáculo da Sutil Companhia de Teatro. Fundada há 15 anos pelo diretor Felipe Hirsch e pelo ator Guilherme Weber (visto recentemente na telinha como o Benny de Queridos Amigos), a companhia curitibana tem no currículo maravilhas como A Vida é Cheia de Som e Fúria (2000) e Avenida Dropsie (2005) e coleciona em torno de uma centena de prêmios teatrais. Não é sempre que temos a oportunidade de ver um trabalho deles aqui no Rio.

Não Sobre o Amor é inspirada em Letters not About Love, livro que reúne a correspondência trocada entre os escritores russos Victor Shklovsky e Elsa Triolet – representada no espetáculo sob o codinome Alya. Também são utilizados trechos da correspondência entre a também escritora Lilia Brik (irmã de Elsa) e o poeta Vladimir Maiakovski, seu amante. O título se refere a uma proibição de Elsa: Victor, que está exilado na Alemanha, pode lhe escrever, desde que não fale de amor.

Entre cartas verídicas e fictícias, é construída a bela dramaturgia desta peça de câmara. O espaço cênico ajuda a criar a atmosfera de cumplicidade e intimidade com a platéia. Ao entrar no pequeno Teatro III do CCBB, o público se depara com um cenário surrealista e levemente claustrofóbico: uma representação de um quarto com os móveis dispostos pelas paredes: uma cama com mesinha de cabeceira, uma máquina de escrever sobre uma escrivaninha, uma porta, um aquecedor enferrujado. Tudo meio franciscano, um quarto que mais parece uma cela de prisão. Sentado num canto, está Leonardo Medeiros. Quieto, cabisbaixo, olhar parado. Toca o terceiro sinal e a porta se fecha, encerrando também o espectador no claustro. Sem uma palavra, ele se levanta e se deita na cama presa à parede. Uma prateleira quase invisível sob seu corpo cria a ilusão perfeita de que o ator está suspenso no ar, como num sonho. Ou pesadelo.

Ao longo da peça, o personagem utiliza seu amor como veículo para discorrer sobre todas as coisas que o fazem sofrer: o exílio, a solidão e sua dificuldade de adaptação no país alienígena. Entre lembranças reais e acontecimentos que tomam forma apenas em sua mente, Victor não consegue se livrar de sua obsessão por Alya. Ele não pode falar sobre amor e, ainda assim, tudo que diz parece tão impregnado deste sentimento que a interdição soa totalmente inútil. Confesso que não sabia nada sobre Shklovsky antes de assistir ao espetáculo. Descobri que o escritor, também teórico e crítico literário, criou em sua literatura o conceito de desfamiliarização, técnica similar ao estranhamento brechtniano, que consiste em retirar um elemento de determinado contexto e fazer com que ele seja percebido justamente a partir de sua ausência.

Elsa – ou melhor, Alya – aparece como uma representação do não-ter. Mais do que um amor não correspondido, ela representa a dor do irrealizável. Enquanto Victor se mostra em cena pleno de fragilidade, ela aparece sempre fria, distanciada e até mesmo desdenhosa de todo o sofrimento que causa. O texto – cujas passagens mais significativas são sublinhadas em projeções na parede – é de uma poesia e beleza cruel e nos faz pensar: será que um grande amor só é grande se tivermos que amargar sua não-correspondência? Como diz o personagem "É fácil ser cruel. Basta não amar". Talvez uma idéia complementar a esta seja "É fácil amar. Basta ser rejeitado".

A trilha sonora que permeia todo o espetáculo é nostálgica e triste, dando uma noção exata não apenas da melancolia do exílio, mas da alma russa em geral. O já citado cenário de Daniela Thomas, colaboradora constante nos trabalhos de Hirsch, é fascinante justamente por sua criatividade vir do despojamento e da sintonia perfeita com os efeitos de iluminação. Complementando, as imagens projetadas se revelam fundamentais para que o espectador tenha uma dimensão do quanto a lembrança de Alya era constante na mente de Victor.

Leonardo Medeiros, que já trabalhou com a companhia no grandioso Avenida Dropsie, carrega a grande carga dramática da peça, enquanto cabe à expressiva Arieta Corrêa personificar a mulher enigmática e inacessível – quase um fantasma. Não é exagero nenhum dizer que Leonardo é um dos melhores atores da última década – se alguém tiver dúvidas quanto a isso, basta dar uma olhada em Cabra-Cega ou Não por Acaso – e isso fica ainda mais claro quando temos a oportunidade de vê-lo ao vivo. Sua interpretação é minimalista e, ao mesmo tempo, tão cheia de humanidade que traz esse personagem para muito próximo de cada um de nós. Seus questionamentos, dores e abandono se universalizam e nos remetem às nossas próprias carências. Sobre o amor. Ou não sobre ele. Tanto faz. No final, acaba sendo tudo uma coisa só.

Não Sobre o Amor. Direção de Felipe Hirsch. Com Leonardo Medeiros e Arieta Corrêa. CCBB – Teatro III (quarta a sexta e domingo, às 19h, sábado, às 18h e 20h). 90 minutos. Ingressos a R$ 10,00. Até 4 de maio.

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