quarta-feira, 2 de abril de 2008

Gota d’água Reestréia no Rio


"Você é viagem sem volta, Joana." A frase, que Jasão diz a Joana durante uma das inúmeras discussões que o ex-casal tem ao longo de Gota d’água, resume com perfeição o caminho perigoso no qual se lançou a protagonista. Joana é uma mulher de temperamento forte, que ama e odeia até o limite da loucura. Com Joana não tem mais ou menos. Com Joana é matar ou morrer. Ou as duas coisas. Gota d’água - texto de Chico Buarque e Paulo Pontes que atualiza a tragédia grega Medéia - é uma das peças mais importantes da dramaturgia nacional. Eu confesso que Medéia está longe de ser um dos meus clássicos preferidos, talvez porque tenha uma certa dificuldade em me comover com uma mulher que mata os próprios filhos e foge num carro de fogo. Mas aí também vai uma implicância minha com o recurso Deus Ex Machina, ou seja, acontecimento exterior à trama que surge para solucionar um impasse.

A genialidade de Gota d’água está justamente em humanizar sua protagonista. No lugar da feiticeira altiva e calculista, temos uma mulher comum enlouquecida pela dor. Humilhada pelo homem que ama e acossada por um aproveitador da miséria alheia, Joana vive dilemas que podemos entender nos dias de hoje. No lugar da vilã que foge triunfante sobre os cadáveres dos filhos, uma mulher destruída em comunhão com os inocentes. Mas, apesar de sua indiscutível importância, montar a peça não é tarefa para qualquer um. Se apresentada na íntegra, constitui um espetáculo longo, pesado e que ainda termina com três mortes.

Eis que reestréia hoje no Teatro Carlos Gomes uma bem-sucedida e apaixonante versão de Gota d'água. Para dar maior fluência ao espetáculo, foram acrescentadas algumas músicas que não constavam da montagem original, como Partido Alto - usada na cena de abertura. O primeiro ato começa com tom mais leve e carrega no humor, mesmo em instantes de conflito. Um exemplo disso é a cena entre Jasão e Creonte e a canção que fala da correlação entre sentar e mandar. A peça só começa a ganhar contornos mais sombrios com a aparição de Joana, o que acontece apenas na segunda metade do primeiro ato. A partir daí, a trama vai crescendo em tensão gradualmente. O destaque desta primeira parte é a cena final, com a discussão que se repete enquanto o resto do elenco faz coro para O que Será? (À Flor da Pele) e que culmina com Joana jurando vingança sob imagens de santos e orixás. Desafio qualquer espectador a não se arrepiar enquanto as cortinas se fecham. E boa parte desta magia deve-se à atuação visceral de Izabella Bicalho, que, mesmo jovem demais para o papel, tem uma força dramática incrível e um olhar eletrizante que intimida e comove ao mesmo tempo.

O segundo ato já começa com elevadíssima carga dramática e daí até o desenlace o espectador não consegue mais relaxar na cadeira diante da tragédia anunciada. Mas a grande vantagem de se trabalhar com um enredo cujo final a platéia já conhece é justamente essa: a tensão se impõe por si própria, paira no ar. A cada passo, a cada desatenção – como diz a música-título –, Joana se aproxima mais desse precipício que no final das contas vai engolir a todos.

A montagem de João Fonseca (o melhor diretor em atividade no Rio) é certamente um dos melhores espetáculos que estrearam por aqui ano passado e continua sua carreira vitoriosa em 2008, depois de ter obtido duas indicações ao Prêmio Shell: melhor música e melhor ator para o Creonte cheio de nuances de Thelmo Fernandes. A cenografia é básica e funcional, deixando o grande foco e responsabilidade no trabalho dos atores. Que, diga-se de passagem, realizam seu trabalho com perfeição absoluta. Não há um único ator inadequado no elenco inteiro. Mas Izabella e Thelmo acabam se sobressaindo pela força de seus personagens antagônicos e pela segurança que demonstram em cena, inclusive na parte musical. Não deixem de conferir. Eu assisti três vezes.

Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes. Direção: João Fonseca. Elenco: Izabella Bicalho, Thelmo Fernandes, Lucci Ferreira, Kelzy Ecard, Luca de Castro, Karen Coelho. Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes, S/N), quinta às 19h, sextas e sábados às 20h e domingos às 18h. 150 minutos. Ingressos a 20,00 (qui), 25,00 (sex e dom) e 30,00 (sab).

5 comentários:

  1. Quando começou eu achei "legal". Depois foi ficando massante. Em alguns momentos eu tava até disperso.
    Só que quando a Joana entra em cena, tudo começou a mudar gradativamente. Eu fui ficando mais e mais envolvido com a história. E acabei abalado. Nunca reagi a uma peça como reagi à Gota d'Água. Saí do teatro quieto. Evitei falar por um bom tempo até o efeito começar a passar.
    Muito boa a peça. O elenco é fantástico. A direção também.

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  2. Como sempre textos fluidos, relevantes e de indiscutível bom gosto. Continue assim menina. Para o alto e avante!

    Sorte nas novas empreitadas, talento você já tem de sobra.

    Bjos

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  3. Amo Chico Buarque e definitivamente este é um dos textos mais incríveis de toda a sua dramaturgia, principalmente pela excelente adptaçao de Medéia, de Eurípedes, como já citado aqui. Acho que para mim só perde para 'Calabar - do amor à traição', que é, definitivamente, o meu texto preferido.

    Se já estava com vontade de conferir esta montagem, depois de seu texto, com certeza, não deixarei de assistir! ;)

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  4. É realmente FANTÁSTICA!!!
    Assisti somente uma vez, mas pretendo ir de novo!! Saí do teatro aos prantos, como estava em boa parte da peça... Maravilhosa!

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  5. Essa peça é sensacional... já havia lido a peça, mas ler nao tem o mesmo efeito de assitir... os dialógos são emocionantes, o elenco é fera e as músicas do Chico dão todo o efeito... simplesmente sensacional!

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