sábado, 26 de setembro de 2009

A Falta Que Nos Move


Os limites entre realidade e ficção podem ser facilmente confundidos e aproximados. O quanto um ator doa de si mesmo para um papel é assunto que vem sendo discutido desde sempre e não se chega a um consenso. Isso é pergunta sem resposta, mesmo porque cada um tem seu próprio e particular processo nessa subjetiva arte de criar uma personagem. E o quanto do que acontece em um filme pode ser controlado pelo roteiro, pela direção e demais limites profissionais? São questionamentos como esses que a diretora teatral Christiane Jatahy investiga com extrema perspicácia e originalidade em sua estreia atrás das câmeras.

A Falta Que Nos Move é a versão cinematográfica da peça homônima e foi rodada num único dia, durante treze horas ininterruptas de filmagem. Ao longo da noite de 23 de dezembro de 2007, três câmeras acompanharam os cinco atores. O cenário? A casa de Christiane, que pré-estabeleceu um roteiro que deveria ser seguido e dirigiu os atores durante a filmagem exclusivamente através de torpedos de celular. Vale lembrar que o elenco vinha trabalhando tal pesquisa de linguagem há quatro anos. A trama é simples: os atores se encontram para uma celebração e devem cozinhar, conversar e beber, preparando o jantar para uma sexta pessoa que pode chegar ou não.

Como bem definiu Eduardo Coutinho a respeito de seu filme Jogo de Cena, “diante de uma câmera, todo mundo atua”. Mas o contrário também é válido, ou seja, todo ator acaba doando algo de si para atingir um nível de interpretação verdadeiro. Seria possível viver exclusivamente um personagem ao longo de treze horas? Dificuldade imposta pelo fato dos personagens serem os próprios atores, com seus nomes reais. Nesta arrojada proposta, cabe ao espectador investigar em que momentos os atores estão sendo eles mesmos. Teriam sido pré-programados todos os conflitos ou algumas desavenças afloraram naturalmente depois de algumas taças de vinho? Conseguiram os atores manter seus papéis na íntegra, mesmo quando confrontados com a tensão máxima?

A pesquisa de Christiane encontra ecos no teatro do oprimido de Augusto Boal, dentre outros, mas, ao mesmo tempo, também se presta perfeitamente à linguagem moderna do cinema e mixa de maneira engenhosa o filme a seu making of, que acontecem simultaneamente e sem separação. Por diversas vezes o mecanismo por trás da ilusão é desvelado, ao mostrar o roteiro escrito nas paredes da cozinha, o torpedo que um ator recebe ou até mesmo fazer rebobinar uma cena que aconteceu antes do previsto. Outro ponto curioso é quando os atores discutem como deve ser interpretado um trecho do roteiro. Seria a discussão sobre o roteiro uma parte do roteiro em si, numa dupla metalinguagem?

Mas o melhor na produção é que ela não se limita a ser um filme-pesquisa. A Falta Que Nos Move vai além de sua forma e, como cinema, conta uma história tensa e comovente sobre as crises de identidade e angústias de um grupo de amigos vivendo um momento de ruptura em suas vidas e confrontados com a ausência de algo. Seja amor, rumo profissional ou qualquer outra falta que lhes mova, estão todos precisando se afirmar. O roteiro encontra ecos no cinema de Bergman e também de algumas obras anteriores de Woody Allen e é por si só interessante, mesmo sem considerarmos a pesquisa envolvida.

E certamente nada disso seria possível sem a incrível disponibilidade e entrega de Pedro Brício, Marina Vianna, Kiko Mascarenhas, Cristina Amadeo e Daniela Fortes a essa abordagem radical de desnudamento diante das câmeras. Os atores conseguem deixar bastante difuso o limite da realidade, mergulhando sem pudores na proposta do longa.

Uma mentida bem contada, como se diz em determinado momento? Uma realidade exposta? Revelações inesperadas? Ou estava tudo previsto? Cada espectador pode ter sua conclusão particular e é justamente isso que torna A Falta Que Nos Move não apenas um grande filme mas também um projeto de absoluta relevância para a linguagem artística contemporânea. Imperdível.

Nota: 10

(A Falta Que Nos Move, de Christiane Jatahy. BRA, 2007. 95 minutos. Première Brasil – Novos Rumos)

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