quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Feliz Natal


Selton Mello é uma pessoa admirável. Não apenas por ser um ator genial, mas principalmente pelas escolhas que fez ao longo de sua carreira. Ator e dublador desde criança, em certo momento Selton se apaixonou pelo cinema e começou a voltar todos os esforços para essa área. Nem sei se foi uma decisão deliberada, mas é inegável que ele é um “homem de cinema”. Mais do que um rosto assíduo na telona, um incentivador e propagador da indústria. Daí para sentar na cadeira do diretor era só questão de tempo. Eis que, depois de rodar apenas um curta, Selton estréia na direção de longa-metragem com a mesma competência e paixão sempre demonstrada em seus projetos como ator.

Feliz Natal é um filme sentimentalmente intenso que parte de um argumento aparentemente simples: acompanhar as mazelas de uma família desestruturada durante as festas de Natal. A história começa na noite do dia 24 e termina na manhã do dia 26. Caio é um homem que cometeu muitos erros no passado, mas agora conseguiu se reerguer. É dono de um ferro-velho, tem uma namorada, abandonou as drogas. Na noite de Natal, ele resolve rever a família, de quem andava afastado, e aparece na casa do irmão Theo. A recepção não é das mais calorosas. Mas seria Caio o renegado, o pária? Ou ele incomoda por ser o único que teve uma segunda chance?

A primeira coisa a chamar atenção no filme é seu aspecto visual, totalmente integrado com a história que está sendo contada. A fotografia escura e granulada, os planos fechados, o rosto dos atores sempre em primeiríssimo plano. Usando de ousadia estética, Selton coloca o espectador junto dos personagens e transfere para nós toda a carga de dor e angústia que cada um guarda dentro de si. Mesmo quando sorriem e dizem estar bem, o desespero em que se afundam não pode ser disfarçado. Não com aquela proximidade quase indecente. E isso faz com que nos sintamos mal, como se fôssemos voyeurs da desgraça alheia, invasores de horrores que não temos o direto de espreitar.

A casa onde acontece a festa de Natal, apesar de espaçosa, transmite uma sensação de confinamento muito forte. E isso ocorre não somente pelo filme ser feito quase todo em closes, mas pela atmosfera de abandono e decadência expressa em pequenos detalhes como a piscina suja, a tapeçaria feia da escada, a apatia presente nos convidados. O mais curioso é fazer um contraponto desta casa da família com a casa dos amigos de Caio, onde o calor humano e aconchego torna a precariedade do local secundária.

Mas todo esse capricho em termos de concepção, embora demonstre o cuidado com cada aspecto do longa, está longe de ser o mais importante. Não tenham dúvidas: Feliz Natal é um filme de atores. Inspirado no universo de John Cassavettes, o roteiro expõe a fragilidade, a solidão, a incomunicabilidade. Feridas que numa suposta data festiva vêm à tona com uma violência muito maior do que no cotidiano justamente porque existe uma pressão para que as pessoas se sintam felizes. Mas como é que vai ter Natal feliz para um homem só sabe suprir a expectativa dos outros? Ou para uma esposa que não ama mais o homem com quem casou? Ou para um pai amargurado que não consegue perdoar o filho? Ou para uma mãe que tem como único refúgio incorporar a louca?

O elenco perfeito é liderado por Leonardo Medeiros, que faz as vezes de protagonista e também de observador do hospício que é sua família. Seus momentos mais belos em cena são justamente os que mostram sua emoção com poucas ou nenhuma palavra. Paulo Guarnieri, que andava há alguns anos sem atuar, interage muito bem com Leonardo como o irmão travado. Se eu tivesse que eleger a cena mais bela dentre tantas, seria justamente a conversa entrecortada de diálogo e plena de emoção dos dois numa cozinha decrépita tendo uma geladeira enferrujada como plano de fundo. Podemos observar que, mesmo sendo aparentemente tão diferentes, os dois irmãos têm a mesma dificuldade de verbalizar seus sentimentos. Dá um nó na garganta quando, ao final desta cena, Theo pergunta a Caio se ele queria lhe dizer alguma coisa e este responde “queria” sem ir além disso.


Uma caracterização que vale destacar é a da diva Darlene Glória como a mãe, personagem que não existia originalmente no roteiro e foi criado às vésperas das filmagens. Ela tem uma espécie de loucura com glamour que lembra personagens clássicas como a Norma Desmond de Crepúsculo dos Deuses ou a velha dama de Grandes Esperanças. Inesquecível sua imagem rodopiando no jardim imersa em seu delírio.

Também brilham no elenco uma sofrida e forte Graziella Moretto como a esposa que está no limite das forças, Lucio Mauro como o pai rancoroso e cabeça-dura, Thelmo Fernandes como o amigo de copo falastrão e desbocado (prestem atenção para seu hilário discurso sobre o cigarro, é uma pérola) e o fofíssimo Fabrício Reis. Mais do que um momento de leveza numa história angustiante, o menino representa o último resquício de inocência naquele ambiente viciado.

Feliz Natal ganhou três prêmios no recém-criado Festival de Cinema de Paulínia: melhor diretor, atriz coadjuvante (dividido entre Darlene Glória e Graziella Moretto) e menção especial para Fabrício Reis. Mesmo não tendo assistido a todos os filmes em competição, torço entusiasticamente para que saia vitorioso do Festival do Rio também. Um filme dessa qualidade e que gera um grau de emoção tão forte – ainda mais vindo de um cara como Selton Mello – tem mais é que ganhar todos os prêmios.

Feliz Natal, de Selton Mello. Com Leonardo Medeiros, Darlene Glória, Lucio Mauro, Paulo Guarnieri, Graziella Moretto, Thelmo Fernandes, Fabrício Reis. BRA, 2008. 104 min.

Première Brasil - Mostra Competitiva

Nota: 10,0

3 comentários:

  1. Erika, não vi Feliz Natal. O que mais me chamou atenção na sua crítica foi a parte do casarão com jeito abandonado, decadente, piscina suja, gente apática, ou seja, uma cena de Pântano, de Lucrecia Martel, outra preferida do Selton. Por isso não gostei de Pântano, me senti desconfortável com essa sensação de decadência, o calor sofocante do filme. Os personagens não fazem nada de especial, estão ali jogados, indolentes,tentando se refrescar e nem se importam se a piscina está suja. Pode ser que seja uma simbologia mas, não me agradou.
    Não me lembro de nenhum filme sobre reunião de família no Natal em que as coisas não desandem. Dou o maior valor pro Natal, pelo significado, mas essa época me deprime, justamente pela obrigação de uma felicidade e bondade, o estresse do consumo, a correria em busca de presentes. Há bons filmes sobre o tema. Em que revelações familiares vêm à tona; os rancores; as verdades; as máscaras que caem. Parente é Serpente é o primeiro que me vem à mente.

    ResponderExcluir
  2. Oi Emily

    Embora tenha algumas semelhanças estéticas com Martel, o filme do Selton Mello no geral tem muito mais a ver com um filme como Festa de Família ou com o cinema do Cassavetes (que é a influência assumida pelo próprio Selton).

    De todo modo, você vai ter oportunidade de conferir esse belíssimo filme já no dia 21 de novembro, quando ele entra em cartaz.

    Abração pra ti!

    ResponderExcluir
  3. Boa noite Erika.


    Tá bom, vou aguardar.

    Outro abração pra ti.

    ResponderExcluir