quarta-feira, 15 de outubro de 2008

No Covil de Allan Sieber


O gaúcho Allan Sieber é um dos mais importantes cartunistas e animadores da atualidade. Autor de tirinhas de sucesso como Preto no Branco e Vida de Estagiário (publicada na Folha de São Paulo), Allan é um dos sócios do estúdio Toscographics e já dirigiu um total de sete curtas, incluindo o premiado e polêmico Deus é Pai. Entre uma lata e outra de cerveja, o bem-humorado o cartunista me recebeu para um papo no seu estúdio em Copacabana.

Em que momento da tua vida você optou por uma carreira nesta área?

Eu gostava de desenhar quando moleque, acho que toda criança gosta, só que os desenhistas continuam. Eu gostava de tiras de jornal, chegava a recortar e colecionava em um caderno, fazia tipo um pequeno álbum. Meu pai também gostava de quadrinhos, então na minha casa sempre tinha muitos gibis. No colégio, eu desenhava os meus amigos, sacaneando eles, coisa de moleque. E segui desenhando, até que aos dezoito anos eu comecei a ser pago pra isso. O primeiro trabalho foi para um jornal de Canoas (cidade próxima a Porto Alegre), e daí não parei mais.

Você mora no Rio há dez anos. O que ocasionou essa mudança?


Eu vim em 1999 para abrir um estúdio de animação aqui. Eu tinha acabado de fazer o Deus é Pai, que teve uma certa repercussão, e foram aparecendo outros trabalhos. Aí na época eu e minha mulher resolvemos nos mudar de Porto Alegre para o Rio porque achávamos que o mercado era maior aqui e seria mais fácil para viabilizar nossos curtas.

Tuas tirinhas, pelo caráter autobiográfico, são muito associadas ao estilo do Robert Crumb. Você realmente tem essa influência? E que outras, além dessa?

Sem dúvida, o Crumb é um modelo para qualquer cartunista. Embora ele não tenha inventado o quadrinho autobiográfico, ele se embrenhou bastante nisso do autor ser o personagem das suas histórias. Sem ser o herói, eventualmente se colocando até numa posição meio escrota. Conheci esse tipo de quadrinho através do Crumb e depois dele comecei a ler outros caras que fazem isso, em geral americanos. Mas influências eu tenho várias: Crumb, Angeli, Jaguar, Millôr, o Reinaldo.

E fora do universo das histórias em quadrinhos?


Eu sempre gostei muito de cinema e leitura. Em cinema, caras meio óbvios, como Scorsese, Jim Jarmusch, Takeshi Kitano... E o Sergio Leone que, para mim, é o maior cineasta de todos os tempos.

Engraçado que você não citou o primeiro cara que eu lembro quando leio o Preto no Branco, que é o Woody Allen.

Adoro Woody Allen, sem dúvida está nos meus preferidos. E o cara tem uma média de um filme por ano, né?

E tem aquela coisa do humor auto-depreciativo...

Exatamente, mas isso é uma coisa que os humoristas judeus têm muito, de ficar se sacaneando, tirando um sarro deles como pessoa, como judeu, da mãe, enfim, coisas da comunidade. Mas o que eu gosto do Woody Allen é que volta e meia ele se aventura fora do terreno do humor, faz uns filmes super sérios e densos. Enfim, é um gênio.

Deus é Pai, teu primeiro filme, foi premiado no Festival de Gramado e também no Anima Mundi. Conta pra gente como foi o processo de realização desse filme.

É engraçado, porque esse filme foi feito num computador bem tosco que eu tinha na época. Na verdade, eu não entendo muito de computador, mesmo usando o dia inteiro. Mas, então, eu queria fazer um curta. Eu trabalhei muito tempo com o Otto Guerra, de 1993 a 1997, e tinha aprendido o processo de como se faz um desenho animado. Se bem que eu fiz um desenho animado que não é exatamente animado, é um desenho desanimado. E aí eu tentei contrabalançar fazendo uma montagem mais esperta, de plano e contra-plano, mas se você reparar os personagens quase não se mexem.

E por que você pensou logo em Deus e Jesus como protagonistas?

Na verdade, é uma situação clássica de pai e filho às turras. Só que elevada à milésima potência, com Jesus e Deus, que teoricamente convivem há milhões de anos.

O filme passou antes das sessões do longa Dogma, do Kevin Smith. Como você conseguiu essa distribuição?

Isso daí foi muita sorte. Quando o filme passou lá em Gramado uma pessoa da Lumière, que era a distribuidora do Dogma aqui no Brasil, assistiu ao filme e achou por bem usar o Deus é Pai como complemento da sessão do Dogma (comédia também de temática religiosa). Não foram em todas, mas em grande parte das sessões passou o curta antes e eu achei do caralho um curta passar no cinema numa sessão normal, sem ser em festival.

Como surgiu isso do Paulo César Pereio se tornar um mentor?

Eu conheci o Pereio quando fiz o curta Os Idiotas Mesmo, que era sobre publicitários. Quando eu escrevi o roteiro, eu pensei numa situação em que precisasse de um cara conhecido, para fazer uma locução classuda, de macho, para o produto. Logo pensei no Pereio, mas não sabia se ele ia topar, tinha vários boatos de que ele era louco...

Mais ou menos o que rola no filme.

Isso. Ele morava em Brasília, mas por acaso eu conhecia o sobrinho dele e aí entramos em contato com o Pereio, mandamos o roteiro e ele gravou lá num estúdio. Aí logo depois ele voltou a morar aqui no Rio e nós ficamos amigos. Tinha uma idéia até de fazer um documentário sobre ele, mas nunca entrou grana pra gente terminar, uma vergonha.

De vez em quando, alguns personagens das tirinhas têm a cara dele. É intencional?

É que eu desenho tanto ele que volta e meia eu me pego desenhando um personagem para alguma tira que sai, como um carimbo, aquele personagem que eu convencionei achar que é ele.

Não só teu trabalho é para adultos como você também costuma ironizar as animações tradicionais. Você acha que no Brasil ainda tem esse conceito antigo de que animação é para criança e tem que ser bonitinha?

Tem ainda, sem dúvida. É o mesmo problema dos quadrinhos, o pessoal acha que super-herói e Turma da Mônica é a mesma coisa. Complicado, porque não é assim há milhões de anos, acho que desde o filme dos Beatles (Yellow Submarine). Mas ainda tem esse conceito de que animação é para criança, por mais que tenha Os Simpsons, O Rei do Pedaço, enfim, uma infinidade de séries para adultos. Os canais de TV ainda são muito reticentes quanto a investir numa série de animação para adultos. Sem contar que tem gente que acha que Os Simpsons é para criança só porque eles são amarelos e o traço é bem cartoon, bem caricato. Às vezes esses desenhos passam de manhã, em programa da Xuxa. Eu vejo isso e fico imaginando quem faz essas grades de horários. Acho até bom que as crianças vejam... só que elas não vão entender.

Você fez as animações para o filme O Homem que Copiava, do Jorge Furtado. Você acha que esse tipo de parceria faz com que teu trabalho seja mais conhecido por essas pessoas que têm preconceito com animação?

O Jorge é uma pessoa super antenada, que gosta de quadrinhos e animação. E eu acho muito interessante isso, inserir animação em filmes de imagem real. O Tarantino também fez isso no Kill Bill.

O que você pensa sobre a Disney e a Pixar?

Na verdade, eu vejo muito pouco porque não tenho paciência. O Monstros S.A. eu até acho interessante esteticamente. O que acontece é que geralmente eu acho a animação em 3D uma coisa meio de mau gosto, tudo muito brilhoso... Não me agrada. Claro que os filmes da Pixar fogem um pouco disso porque, como tem muita grana envolvida, não fica muito tosco. Mas eu tenho um certo preconceito com 3D, não tenho muito saco.

Então você nem cogitaria trabalhar com animação em 3D?

Não. Eu acho muito mais interessante o trabalho feito à mão. Porque o que eu acho legal no desenho animado é justamente a falha, entendeu? A coisa humana mesmo, o que dá um pouquinho errado, uma tremida. Já o 3D é à prova disso, não dá margem ao erro humano, que é o que eu gosto no desenho. De estar desenhando com o pincel e salpicar muita tinta ou então estar meio seco e daí sai um traço meio esquisito que você não planejou, mas apareceu ali e faz sentido.

Tua animação é muito mais calcada no roteiro, nas idéias, do que no traço em si. Isso é uma opção estética, ideologia ou falta de verba mesmo?

Uma combinação de tudo isso, mas sem dúvida é uma opção estética. O princípio e o fim de tudo é um bom roteiro. Uma coisa que você vê constantemente em festivais, mesmo no Anima Mundi, são filmes muito bem executados mas que não são nada. Acaba sendo um filme sobre a arte da animação. Pode ser bonito, mas é quase um portfólio.

Você então é contra a animação pela animação, sem uma história a contar?


Sou. Eu acho muito chato. Eu quero contar uma história.

Quais são os teus próximos projetos?


Tenho alguns roteiros de longas, mas que dependem de captação de recursos. Tem um roteiro pronto de um filme de ficção chamado Manolo, que é sobre um ator de novela meio psicopata. Tem outro longa em captação, esse de animação, chamado De Mão em Mão, que é meio inspirado na história do Carlos Zéfiro. E tem um curta que eu fiz esse ano, chamado Animadores, que ainda está pelos festivais.

Para finalizar, tem uma declaração sobre você que eu li na Wikipédia e gostaria que você comentasse. A frase é a seguinte “normalmente, tem seu trabalho associado à heresia, crítica comportamental (sexual ou não) e escatologia”.

Não se pode confiar na Wikipédia (risos)... Mas tem a ver. Religião e sexo são dois assuntos aos quais eu dedico um certo tempo. Quando eu era moleque, eu era adventista fanático e perdi alguns anos da minha infância e pré-adolescência nessa religião. Aí volta e meia, isso aparece no meu trabalho.

Você batendo em Deus...

É, sempre aparece... Você tenta se livrar, mas não tem como isso ser apagado de você tão facilmente.

4 comentários:

  1. Que desleixe o meu como gaúcho. Não sabia que ele era do sul!!! Ótima entrevista.

    Off: Erika, estou começando um site (em manutenção) com mais 4 amigos meus. E vou linkar o seu blog por lá, ok? E inclusive gostaria de deixar um convite aberto para que você (se quiser e puder, é claro) faça algumas participações especiais por lá (com textos etc...). Ah, é site de cinema viu?

    Abraço!

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  2. Com certeza, Pedro. Assim que o site estiver em funcionamento, não esquece de deixar o endereço aqui (não apenas para mim, mas para que todos possam visitar). Ótima sorte pra vocês!!!

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  3. Erika:

    Lendo a entrevista, aprendi algumas coisas sobre HQ.
    Penso que existe um certo preconceito contra adultos apreciarem quadrinhos - principalmente, se esse adulto for do sexo feminino...
    Minha iniciação na leitura se deu tb através do meu pai, um fã de Mandrake, Fantasma, Disney, Recruta Zero, Bolota, Brotoeja, Sobrinhos do Capitão, Mafalda... êta raridades!! Hoje, coleciono algumas Mafaldas e Luluzinhas/Bolinhas.
    Fui ver Persépolis de novo e, não sei se porque dessa vez foi gratuito, tava assim de molecada bem pequena. Resultado: muita gente, inlusive marmanjo, saiu antes da metade da sessão. Talvez por perceberem que não se tratava de um filme infantil e/ou de pura diversão...

    Beijão pra ti.

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