quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Ensaio Sobre a Cegueira


Eu sei que José Saramago é um autor aclamado, com fãs pelo mundo inteiro. Tampouco ignoro o fato de que o escritor português tem um Nobel de Literatura na sua estante. Respeitado pela crítica e mais ainda pelos intelectuais, não raro a obra de Saramago é adjetivada de genial. Talvez seja. Mas eu não me identifico com ela. No caso de Ensaio Sobre a Cegueira, me incomoda sobretudo a grande alegoria sobre “cegueira para enxergar de verdade” que é o tema central da obra. Para mim, soa bíblico demais. Posto isso, não é preciso dizer que não fiquei muito empolgada quando soube que Fernando Meirelles resolvera filmar esse livro. Está estabelecida a saia-justa: como analisar objetivamente um filme que parte de uma história da qual você não gosta?

A trama (rodada em São Paulo) é situada em uma cidade indefinida que é vitimada por uma inexplicável epidemia de cegueira. Com a diferença de que, ao invés de escuridão, os infectados vêem tudo branco. O governo tenta deter a doença por meio do isolamento, trancafiando os afetados. O que pouco adianta, já que a cegueira continua se alastrando. A situação-limite reduz os cidadãos a feras lutando pela sobrevivência e logo surgem oportunistas e ditadores querendo tirar proveito do pânico alheio. Em meio ao caos e destruição, a esposa de um oftalmologista é a única imune à estranha moléstia.

Em primeiro lugar, é preciso destacar que Meirelles expressa a competência habitual neste seu novo trabalho. Depois de radiografar a escalada do tráfico numa favela e os crimes de um império farmacêutico contra os miseráveis na África, o cineasta agora volta seus dotes criativos para o desmoronar de toda uma sociedade dita civilizada. Sua visão de uma cidade mergulhada no caos é assustadoramente real, sem o distanciamento sci-fi que costuma estar associado a esse tipo de narrativa. Aquela cidade sem nome poderia estar em qualquer ponto do planeta, assim como aquele homem que pára o carro na cena de abertura e exclama “estou cego” poderia ser qualquer pessoa. Poderia ser você. A direção de arte perfeita nos põe frente a frente com uma visão de São Paulo entregue a um nível de primitivismo totalmente desconhecido, porém facilmente imaginável. E descobrir que o vazio nas ruas pode ser muito mais opressivo do que o trânsito, a fumaça e as buzinas é bastante perturbador.

O diretor de fotografia César Charlone (assim como Fernando, indicado ao Oscar por Cidade de Deus) usa sua experiência e talento para criar um visual saturado, esbranquiçado, asséptico, que contrasta com as condições de abandono a que são submetidos os cativos e também com a crescente violência que leva aquelas pessoas a um reinado de barbárie. A brancura, ao invés das trevas. Só que o terror inspirado é o mesmo.

O filme é dirigido com capricho, fotografado com arrojo, bem interpretado (a surpresa é o geralmente fraco Mark Ruffalo) e, a despeito de todas as suas qualidades técnicas, não consegue empolgar. Por quê? Volto ao tema inicial. O que incomoda não é nem o fato da tal epidemia não ter motivo para ocorrer, já que a humanidade enfrentou pragas desconhecidas de todos os tipos desde que o mundo é mundo. OK, eu também sei que a cegueira que assola as pessoas é uma metáfora do quanto a humanidade está cega para o que realmente importa, e as pessoas precisam passar por aquela provação para “enxergarem de verdade”. É bíblico, muito bíblico. E moralista também (sensação reforçada ainda mais pelo desfecho). E qual seria o sentido da mulher que enxerga? A personagem não é descrita como alguém essencialmente especial. Ela simplesmente é imune, e pronto. A escolhida. Mas, enfim, nada disso é culpa do filme propriamente dito. Fernando Meirelles é um grande diretor e fez um bom trabalho, embora esteja aquém dos resultados obtidos com uma obra-prima como Cidade de Deus ou um trabalho forte e coerente como O Jardineiro Fiel.

2 comentários:

  1. Erika: estou fazendo um teste com o blog, por causa da minha conta. Gostei da maneira como você abordou o filme do Meirelles, sendo sincera a respeito do Saramago. Apesar de ter visto (bem de looonge) as filmagens em SP, não pretendo ver o filme, pois não gostei do livro, pessimista ao extremo, me deprimiu... E, pelo que pude ver das filmagens, tb não me contagiou. Conseguiram enfeiar a Julianne, embora ela não seja exatamente uma beldade. SP vazia, sem fumaça, sem barulho e sem trânsito caótico, me deixa aliviada, em vez de perturbada. Acho que a cidade precisa de vez em quando de um silêncio. Já o lixo, tá sempre presente. Aliás, o Meirelles expalhou montanha de lixo no centro de SP, para o cenário da história, e a população indignou-se, pois não sabia que se tratava de filmagem. Gozado: essas mesmas pessoas não se indignam com a sujeira permanente. Nunca vi ninguém reclamar, no dia-a-dia.

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  2. É isso mesmo. Não é "Cidade de Deus" e nem "O Jardineiro Fiel", mas é um ensaio (com o perdão do trocadilho) do que Meirelles ainda vai fazer no cinema. Ótimo filme!

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